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Efeito direto das normas da Organização Mundial do Comércio na estrutura jurídica da União Europeia: caso Biret International

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12/01/2013 às 10:17
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4) Problemática do GATT/OMC e abordagem do TJCE

Com a soma da prevalência dos tratados de DIP sobre os atos derivados da Comunidade Europeia e a outorga de efeito direto a normas dotadas de clareza, não ambiguidade e incondicionalidade, não tardou chegar ao TJCE processos que rogavam especificamente a derrogação de normas comunitárias por violação ao GATT/OMC.

A Corte analisou o tema inicialmente no caso International Fruit Company [23], no qual reiterou a necessidade dos três requisitos para a outorga de efeito direto a normas de tratados de DIP, mas recusou-se a aplicar a referida doutrina ao GATT/47, sob o argumento de que este, diferentemente de outros acordos internacionais, teria suas bases ontológicas não no binômio direito-dever (na acepção kelseniana, ou seja, na coercitividade como elemento essencial da norma jurídica[24]), mas sim nas relações diplomáticas entre os países.

Em suma, entendeu o TJCE que as relações travadas no âmbito do GATT/47 seriam primariamente focadas em negociações e obtenção de soluções mutuamente vantajosas para os Estados, e que a concessão de efeito direto às normas elaboradas ao abrigo do GATT/47 desnaturalizariam o pacto, justamente por autorizar a exigência coercitiva de uma conduta do Estado-Membro ou da Comunidade.

Após a Rodada do Uruguai, na qual foi constituída a OMC, com uma efetiva reinvenção da sistemática do antigo GATT, ampliando o alcance de normas teoricamente  exigíveis do Estado-Membro, gerou-se uma expectativa de que o TJCE reformularia sua jurisprudência, outorgando efeito direto, se não ao Tratado como um todo, ao menos a normas específicas, analisadas caso a caso.

A despeito disso, ao julgar o caso Portugal v. Conselho[25], o Tribunal, ainda que reconhecendo a significativa alteração no cenário global trazida pela instituição da Organização Mundial do Comércio, manteve a negativa de efeito direto às normas decorrentes deste cenário.

Argumentou, sobre o ponto, que o fato de mesmo as decisões do OSC não serem plenamente exigíveis, na medida em que o Estado vencido, além do expurgo da violação, poderia encerrar o caso através do oferecimento de compensações ou da aceitação de retaliações, demonstrava que a tônica da OMC continuava sendo a busca pela solução mutuamente aceitável e a primazia da negociação sobre a execução forçada da norma.

Além desta linha argumentativa, defendeu, o Tribunal, que o fato de os maiores atores do comércio global (notadamente, Estados Unidos e Japão) não concederem efeito direto às normas GATT/OMC impediria fosse dispensado esse tratamento na União Europeia, pois isto afetaria em demasia o tênue equilíbrio de forças existente. Finalmente, a Corte levantou, como fator impeditivo de outorga de efeito direto, o fato de que, em o fazendo, estaria substituindo os demais órgãos (legislativo e executivo) da Comunidade, o que afetaria de forma indesejável o cenário político da União Europeia.

O TJCE, aprofundando seu entendimento, fixou, ainda, duas exceções à regra geral acima posta, chamadas estas de "exceções de implementação"[26]

A primeira delas, entabulada no caso Fediol[27], determina a existência de efeito direto dos acordos GATT/OMC sempre que o ato comunitário questionado fizer expressa menção ao tratado.

A segunda, fixada no caso Nakajima[28], aduziu que, sempre que uma medida comunitária almejar a expressa implementação/cumprimento de uma obrigação decorrente dos acordos GATT/OMC, essa obrigação terá efeito direto, podendo, assim, ser sindicado se a implementação pela Comunidade cumpriu a obrigação posta pelo DIP.

As críticas ao entendimento do TJCE, previsivelmente, foram incontáveis. Boa parcela da doutrina internacionalista focada no comércio mundial vislumbrava na apreciação da questão pelo Tribunal uma oportunidade de ampliar exponencialmente o poder e alcance da OMC, fomentando a realização de seus objetivos.  Kuilwijk, um dos mais ferrenhos defensores da outorga de efeito direto ao GATT/OMC, argumenta inexistirem diferenças substanciais entre o GATT e outros tratados internacionais aos quais o Tribunal concedeu efeito direto, levantando que a corte mantém uma "persistente aderência a uma visão tradicional-mercantilista, negativa e defensiva da política de comércio mundial"[29][30]. Referido autor ainda aduz que a Corte deveria conceder efeito direto ao GATT a fim de prover “a direção divina ... necessária para alcançar o paraíso econômico”[31]

No plano institucional, digno de nota que já no caso Portugal v. Conselho o Advogado-Geral opinou, em um embasado parecer, pela concessão de efeito direto ao GATT/OMC. Todavia, na medida em que os pareceres do Advogado-Geral não vinculam a Corte, nenhum efeito prático foi alcançado no sentido de induzir o Tribunal a alterar seu posicionamento.

De outra banda, parcela da doutrina manteve-se alinhada ao posicionamento do TJCE, defendendo a existência clara de impedimentos de ordem jurídica e política ao reconhecimento de efeito direto às normas GATT/OMC. Além dos argumentos acima mencionados, cumpre observar o destaque dado pela doutrina à inerente complexidade do GATT/OMC, que inviabilizaria sua aplicação direta, por gerar efeitos nefastos ao papel da União Européia enquanto ator do comércio global.

O debate apresentado manteve-se relativamente estável, até o advento do caso Biret International, o qual deu novo fôlego à discussão, tanto pelo incisivo parecer do Advogado-Geral Alber, quanto pela aparente indeterminação do Tribunal, que deixou de apreciar a questão prejudicial do efeito direto para julgar diretamente o mérito do caso, criticando o modo com que o TPI analisou o ponto, mas sem explicitar se teria ocorrido alguma mudança de entendimento ou alguma especificidade do caso concreto que autorizaria a aplicação da doutrina do efeito direto.

Impõe-se, neste momento, aprofundar a análise do argumento jurídico utilizado pelo TJCE para negar ao GATT/OMC efeito direto, qual seja a falta de incondicionalidade das normas provenientes daquele sistema.

O argumento político, segundo o qual a ausência de reciprocidade dos principais atores do comércio internacional na concessão de efeito direto às normas GATT/OMC impediria a aplicação da doutrina pela União Europeia, por limitar o poder de manobra da União, e assim, afetar o tênue balanço de poder do cenário do comércio mundial, foge ao corte epistemológico adotado.

É que seu embasamento teórico se encontra no plano da política econômica global, fugindo do escopo deste trabalho determinar o acerto da compreensão da Corte. Cumpre, contudo, analisar se o arcabouço jurídico da Comunidade permite uma justificação lógico-racional da decisão tomada, bem como se o caso Biret International sinaliza alguma alteração da posição do Tribunal.

A análise da efetiva incondicionabilidade das decisões prolatadas pelo OSC e, por decorrência lógica, das próprias normas do GATT/OMC, passa necessariamente pela leitura do artigo que organiza o sistema de solução de conflitos.

Aduz o art. 19 do DSU[32]:

"1. Em o painel do Órgão de Apelação concluindo que uma medida é inconsistente com um acordo abrangido, ele deverá recomendar que o membro envolvido faça com que a medida entre em confirmidade com o acordo. Em adição a suas recomendações, o painel ou o Órgão de Apelação pode sugerir formas pelas quais o membro envolvido possa implementar as recomendações"[33]

Adiante, o artigo 21 trata da implementação das recomendações, devendo ser destacado o numeral 3:

"3. (...) Se for impraticável cumprir imediatamente as recomendações e diretrizes, o Membro envolvido deverá ter um período razoável te tempo para fazê-lo. (...)"[34]

Finalmente, o artigo 22 do DSU dispõe acerca das compensações e suspensão de concessões:

"1. Compensação e a suspensão de concessões ou outras obrigações são medidas temporárias disponíveis no caso de as recomendações e diretrizes não terem sido implementadas num período razoável. Entretanto, nem compensação nem suspensão de concessões ou outras obrigações são preferíveis à integral implementação de uma recomendação de conformar uma medida com os acordos abrangidos. Compensação é voluntária e, se concedida, deve ser consistente com os acordos abrangidos.

2. Se o Membro envolvido falhar em conformar a medida inconsistente com um acordo abrangido (...) deverá, (...) entrar em negociações com a parte que invocou o procedimento de resolução de litígios, com o objetivo de desenvolver compensações mutuamente aceitáveis"[35]

Uma interpretação sistemático-teleológica das normas acima transcritas dá conta de que o objetivo máximo do OSC é, de fato, expurgar a medida que confronte os acordos GATT/OMC, facilitando ao máximo a ação Estado infrator, inclusive com prazos de tolerância de até quinze meses, durante os quais não há previsão sequer de compensações para o Estado prejudicado. Todavia, não é impossível vislumbrar hipótese em que o estado-membro simplesmente não possa ou não queira dar cumprimento a uma decisão do OSC, utilizando, como margem de manobra, o prazo concedido e as medidas compensatórias.

Gize-se, por oportuno, que o próprio tratado prevê como último recurso, apesar de não desejável, o manejo de negociações e a entabulação de compensações, com a manutenção do ato desconforme com os acordos GATT/OMC.

Mervi Pere[36], abordando a questão da efetiva existência de obrigatoriedade de cumprimento das recomendações exaradas pelo OSC, menciona ocorrência de verdadeira cesseção doutrinária, reconhecendo, entretanto, que a linguagem do DSU permite ambas as interpretações. Posiciona-se, contudo, pelo caráter vinculante das recomendações, sob o argumento de que a manutenção de medidas compensatória falharia em obter o cumprimento dos objetivos da OMC, e que o DSU não autoriza a manutenção de norma não-precária das medidas ilegais.

Apesar de respeitável e bem embasada a opinião do mencionado autor, sua conclusão destoa da própria constatação da prática da OMC.

Observa-se, inicialmente, inexistir consenso sequer entre os próprios árbitros do OSC quanto ao verdadeiro objetivo das medidas compensatórias, conforme ilustram Palmeter e Mavroidis[37], mas não se pode negar que a doutrina tende a compreendê-las como meios de forçar ou induzir o Estado-Membro a se adequar aos acordos GATT/OMC.

Entretanto, o eventual reconhecimento desse papel das medidas compensatórias não implica presença de força coercitiva das recomendações do OSC.

Talvez o melhor exemplo do acima defendido seja o caso hormones, já explanado alhures. Segundo informação constante do site da Organização Mundial do Comércio[38], a recomendação do OSC, no sentido de a Comunidade Europeia adequar sua legislação, data ainda de 1998, não tendo sido até o momento alcançado consenso acerca de seu cumprimento. As medidas compensatórias, que segundo análise de Pere seriam meramente transitórias e teriam por objetivo apenas induzir o cumprimento do painel, começaram a ser aplicadas no ano de 1999, contando, hoje, com mais de uma década de vigência e, efetivamente, tendo se perenizado no tempo.

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Não há dúvida de que o objetivo final do OSC seja a adequação do Estado com os acordos GATT/OMC, e que as medidas compensatórias teriam um caráter meramente subsidiário e, idealmente, temporário. Nada obstante, observa-se que, na prática, é plenamente possível que um Estado-Membro, através das medidas compensatórias, possa manter em seu ordenamento uma norma não compatível com o sistema GATT/OMC, sem que sofra qualquer consequência jurídica que não as decorrentes das próprias medidas compensatórias.

É discutido, ainda, que a manutenção, por parte do Estado-Membro, da norma não compatível e das medidas compensatórias acabaria por prejudicar uma série de particulares absolutamente estranhos à situação. Tomando por exemplo o caso hormones, pode-se vislumbrar, dentre os prejudicados "indiretos", importadores de carne e comerciantes dos produtos sobre os quais recaíram as medidas compensatórias adotadas por Estados Unidos e Canadá, além do próprio mercado de consumo da União Européia.

De fato, a manutenção das medidas compensatórias tem o condão de interferir e prejudicar o Mercado como um todo e particulares específicos do Estado infrator, entretanto, tal constatação não tem relação, em absoluto, com a análise do caráter obrigatório das recomendações, não estando compreendida dentre os fatores relevantes para essa determinação. Ademais, não se pode deixar de observar que está dentro do poder-dever dos Estados a adoção de políticas públicas, ainda que elas venham a prejudicar este ou aquele setor da economia. Se isso não é sequer questionado quando, por exemplo, determinado Estado adota uma política de taxação de cigarros como forma de desestimular seu consumo, também não há razão para o questionamento da decisão de afetar a economia para, por exemplo, evitar a entrada no território de produtos considerados (justificadamente ou não) nocivos ou arriscados à saúde da população, como é o que ocorre no caso hormones.

De tão pungente quadro, tem-se ser impossível extrair a conclusão de que as recomendações exaradas no âmbito do OSC contêm caráter incondicional e vinculante.

Em assim sendo, o entendimento firmado na jurisprudência do TJCE mostra-se adequado à doutrina do efeito direto por ele desenvolvida, uma vez que as decisões do OSC e, por consequência lógica, as normas dos acordos GATT/OMC não possuem a indispensável incondicionalidade de aplicação.


5) Considerações finais

Ao longo do presente artigo demonstrou-se que, a despeito de algumas afirmações doutrinárias, o Caso Biret Internacional não representa sinalização de alteração da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias acerca da aplicabilidade da teoria do efeito direto às normas e decisões exaradas no seio da Organização Muncial do Comércio.

Além disso, o estudo da estrutura normativa da OMC e de seu OSC comprovou a adequação jurídica da posição adotada pelo TJCE, na medida em que, naquela Organização, a regra posta dá, sempre, margem de discricionariedade ao Estado-Membro, não exigindo de forma imediata e cogente o cumprimento de suas normas.

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Sobre o autor
Igor Fonseca Rodrigues

Procurador Federal em Novo Hamburgo (RS). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Igor Fonseca. Efeito direto das normas da Organização Mundial do Comércio na estrutura jurídica da União Europeia: caso Biret International. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3482, 12 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23440. Acesso em: 4 mai. 2024.

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