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Novos paradigmas na separação judicial e no divórcio:

possibilidade de retratação unilateral e indeferimento do pedido de homologação de acordo

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01/11/2001 às 01:00
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Retratação do acordo: a superação da Súmula nº305 do STF.

Não fosse bastante a possibilidade de negativa judicial à homologação do pedido de separação judicial ou divórcio consensuais, fulcrado em vícios volitivos ou na existência de cláusulas prejudiciais a interesses da prole ou de um dos cônjuges, é de se ver, por igual, a plena superação do entendimento sumular que veda a retratação unilateral do acordo.

É que no atual estágio de nosso direito a questão ganha novos ares, máxime com a instrumentalidade, que informa o processo civil moderno.

Afigura-se-nos que, editada em outra (e remota) época, antes mesmo da vigência da Lei do Divórcio, em paragens que conferiam ao STF competência distinta da que lhe é dada atualmente (art. 102 da Lex Fundamentallis), a Súmula nº 305 deve ser revista, reconhecendo-se sua superação, porque inaplicável na fase atual do Direito, encontrando-se divorciada dos mais comezinhos princípios jurídicos, do Direito Civil do Direito Processual Civil[35].

Giza, in litteris, a Súmula nº 305, STF, editada em decisão datada de 16.12.63, com base em precedentes de 1958 (RE 35915/DF, j. 30.4.58; in Ementário STF 337:693; RE 30698/DF, j. 16.7.58, in RTJ 6:83; e RE 41006/SP, in Ementário STF, 382:844): "Acordo de desquite ratificado por ambos os cônjuges não é retratável unilateralmente."

Funda-se, portanto, o entendimento sumular em valores culturais vigentes naquela distante época, quando sequer se admitia o divórcio, sendo voz corrente e assente a idéia de que o casamento era indissolúvel e o desquite (atual separação judicial) algo extremamente excepcional. Enfim, teve como pressupostos fatos passados, não mais existentes na vida moderna.

O Direito, todavia, não está entregue a valores eternos, imutáveis. Impõe-se que esteja susceptível às alterações impostas pelos novos valores sociais, suportando a hierarquia da inteligência e da cultura, afinal sua missão é exatamente pacificar a sociedade.

Averbe-se, assim, a existência de novos paradigmas do Direito de Família, com a necessária releitura de estatutos fundamentais nesse ramo do Direito "para compreender a crise e a superação do sistema clássico que se projetaram para o contrato, a família e o patrimônio", nas palavras claras de FACHIN[36].

"O transcurso do tempo e as alterações sociais geraram mudanças na estrutura do Direito, da família e de suas funções. A família, como fato cultural, está ‘antes do Direito e nas entrelinhas do sistema jurídico’. Mais que fotos nas paredes, quadros de sentido, possibilidades de convivência... Vê-la tão-só na percepção jurídica do Direito de Família é olhar menos que a ponta de um ‘iceberg’"[37]. É o alerta preocupado e importante do Prof. FACHIN, chamando a atenção para a necessidade de reconhecer-se um novo Direito de Família, inspirado numa família natural, e não em surreais famílias jurídicas.

De outro lado, sob o prisma processual, em face do acolhimento do princípio da instrumentalidade, não se pode admitir que possa o formalismo superar a finalidade almejada pelo processo, qual seja, a prestação jurisdicional. É necessário encarar o processo sob o prisma instrumentalista, destacando sua função precípua de meio de pacificação de conflitos individuais ou sociais, através da efetivação da ordem jurídica violada ou ameaçada de violação.

O processo não pode servir de óbice à aplicação do Direito Substantivo. Ao revés, deve servir-lhe de meio, instrumento hábil, para se materializar nos conflitos de interesses concretamente existentes. Por isso, entre privilegiar formalismos processuais em detrimento da aplicação do direito e dar eficácia e efetividade à norma, olvidando-se, se preciso, de procedimentos e exigências formais, opte-se por esta hipótese, fazendo valer o direito material, plano no qual se situam os interesses das partes.[38]

Não tem o processo um fim em si mesmo, mas sim busca a imprescindível aplicação do direito controvertido. Forte em CASSIO SCARPINELLA BUENO, "o processo não pode ser visto ou examinado como meio em si mesmo. É instrumento que serve a outras finalidades. E essas finalidades são as previstas no direito material."[39]

As formas se presumem existentes para facilitar a aplicação efetiva do direito, servindo de parâmetro para o aforamento e tramitação das ações e conseqüente prestação da tutela[40].

A melhor jurisprudência, inclusive, já sacramentou a instrumentalidade do processo como princípio norteador do processo civil, como evidenciam os arestos transcritos ilustrativamente: "A concepção moderna do processo, como instrumento de realização da Justiça, repudia o excesso de formalismo, que culmina por inviabilizá-lo."[41]e "O STJ vela pela exata aplicação do direito federal, atento à circunstâncias de que o nosso sistema processual é informado pelo princípio da instrumentalidade das formas. Daí que poderá o eventual descumprimento de determinada disposição legal não conduzir à inutilização do processo."[42]

É de se ver, assim, volvendo a visão para o teor da Súmula, que não é razoável se negar à parte o direito de retratação do acordo celebrado e ainda não homologado em juízo, forçando-a a voltar a juízo, posteriormente, com nova ação, agora para anular o acordo.

Negar o direito a retratar-se do acordo apresentado significa obrigar a um dos cônjuges que participa da ação de separação judicial ou divórcio consensual a retornar a juízo com outra ação (anulatória) para impugnar o acordo realizado e, por certo, tal providência atenta contra a instrumentalidade do processo, chegando mesmo a negar o direito de ação, obstando o acesso à ordem jurídica pretendida.

Outrossim, o reconhecimento da fragilidade emocional dos cônjuges em momento tão difícil como esse, marcado, não raro, por grandes conturbações psicológicas, vem a contribuir, por igual, para o afastamento do entendimento sumular, privilegiando a manifestação de vontade livre e desembaraçada dos consortes.

O Direito não pode se afastar da realidade fenomenológica. E, no particular o Direito de Família (sob o enfoque material e processual), deve espelhar as peculiaridades reais do cotidiano familiar. Enfim, deve regular a família natural, existente na sociedade moderna e não uma família apenas jurídica, existente tão-só em normas e papéis. O casamento não é apenas contrato ou instituição jurídica com reflexos legais. É convivência humana, marcada por encontros e desencontros, alegrias, tristezas, sucesso e fracasso. Tem sua marca registrada nas relações humanas. E a ruptura do vínculo matrimonial, é momento extremado, em que sobressaem os problemas e conflitos psicológicos de cada um dos consortes. Negar essa situação de instabilidade emocional no momento da ruptura dos vínculos conjugais é dar as costas à realidade e, por via oblíqua, à própria sociedade.

Daí, então, ser necessário detectar a impossibilidade de exigir-se daquele que está em momento de ruptura da sociedade conjugal o equilíbrio e certeza suficientes a uma decisão segura e imutável. Seria desumano e cruel!!! Seria exigir um completo desprendimento sentimental!

Na realidade, não seria crível que se pudesse exigir dos cônjuges, em momento tão difícil, uma manifestação de vontade isenta, segura e firme. Logo, decorre naturalmente, a possibilidade de eventual arrependimento e retratação de alguns dos pontos sobre os quais versou o consenso.

Pelo fio desse raciocínio, é fatal reconhecer a superação do entendimento sumulado, porque dissociado da realidade viva da sociedade e dos novos paradigmas do Direito de Família (material e processual).

Assim, impõe-se reconhecer que sempre e em qualquer caso, é possível retratar-se do acordo de ruptura conjugal proposto em juízo, dês que, por óbvio, antes do trânsito em julgado da sentença homologatória do acordo de vontades.

Inclusive, é de se ver que, no prazo recursal, seria, também, plenamente possível a retratação unilateral, apontando a parte o seu desinteresse em manter o acordo, devendo o respectivo Tribunal reformar a decisão homologatória.

Conclui-se, deste modo: a Súmula nº305 do STF está em total descompasso com a orientação moderna que informa o processo e com os novos paradigmas do direito de família, eis que atenta contra a instrumentalidade, prestigiando o formalismo (impossibilidade de retratação do acordo) em detrimento da garantia do direito substantivo correspondente, além de negar a realidade presente da sociedade.

Essa, inclusive, a conclusão a que chegou o Min. EDUARDO RIBEIRO em voto proferido no REsp. 24.044-3 (da 3ªT., j.15.12.1992, publicado na RSTJ 46:290), afirmando verbum ad verbo: "parece-me que deve ser revisto o entendimento consubstanciado na Súmula n.305 do STF... Há de ser repensado em vista do direito novo. Só se poderá continuar a aplicar a Súmula quando se reproduzirem aquelas circunstâncias do Código de 1939, ou seja, quando se marcar um prazo de reflexão e as partes voltarem e ratificarem o seu desejo de se separar. Não assim, quando o juiz supuser que há um propósito firme de separar, que na realidade não havia, o que se evidenciou pela própria retratação ofertada".

Com o mesmo teor, o voto proferido pelo Min. WALDEMAR ZVEITER no julgamento do referido recurso especial.

Aliás, mesmo no STF, antes mesmo da vigência da Lei do Divórcio (no julgamento do RE91.301, publicado na RTJ 100:78), já havia discrepância quanto a questão, como se infere do fundamentado voto do Min. LEITÃO DE ABREU: "como o pedido de separação é ato da mais alta importância, que cumpre ser pensado e repensado pelos cônjuges, como, por fim, se reveste de extrema celeridade, quando reduzidas a termo as declarações dos peticionários, penso que no período que vai desse termo até a homologação, é lícito a qualquer dos cônjuges, unilateralmente, retratar esse pedido".

BELMIRO WELTER também comunga do entendimento, atestando que "no período que vai do termo de assinatura da inicial até a homologação, é lícito a qualquer dos cônjuges, unilateralmente, retratar-se desse pedido" (op. et loc. cit.).

Ademais, note-se que ao acolher o entendimento sumular, se estaria negando, por via indireta, o próprio direito material resguardado pela norma. É que ao se vedar a retratação do acordo de separação ou divórcio consensual formulado, não se permite ao interessado utilizar-se de seus direitos assegurados por lei.

Vislumbra-se, por conseguinte, uma tendência jurisprudencial no STJ à revogação da Súmula nº305 do STF, tendo em vista sua colisão frontal com o comando 34 §2º da Lei do Divórcio e por violar a nova ordem jurídica vigente[43].

É que o Direito, já dizia RUDOLF VON IHERING, "não serve senão para se realizar. Então, não lhe basta uma pretensão normativa, é preciso que se lhe dê efetividade social", deixando claro que a decisão que afastar a norma jurídica do ideal de pacificação social é reprovável e injusta.

Assim, exsurge imperiosa a conclusão da possibilidade de retratação unilateral por um dos cônjuges, antes do trânsito em julgado, do acordo apresentado à chancela do Estado-juiz. Sem prejuízo, por óbvio, da possibilidade reconhecida ao juiz de negar homologação ao acordo apresentado.

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Conseqüências da retratação e do indeferimento da homologação judicial do acordo consensual na separação judicial ou divórcio.

É de JEMOLO a pertinente observação de que "seria uma ingenuidade supor que há interesse público em manter, a qualquer preço, a convivência entre marido e mulher, pois há situações que reclamam, justamente no interesse público e sobretudo no da prole, o desaparecimento da coabitação, em que pese à indissolubilidade do vínculo"[44].

Deste modo, afigura-se relevante destacar que, ao se negar homologação ao pedido de separação judicial ou divórcio consensual, não se está impedindo a ruptura da sociedade conjugal estabelecida entre o casal. Apenas se recusa a dissolução da sociedade nas condições estipuladas.

Equivale a dizer, mediante outras cláusulas ou em outras condições a serem estipuladas consensualmente e respeitados os direitos e interesses dos próprios cônjuges, da prole e de terceiros, poderá ser resolvida a sociedade marital.

Assim, a recusa na homologação judicial não impede a separação judicial ou divórcio (que poderá vir a ser objeto de novo pedido), mas sim impede prejuízos a serem impostos a uma das partes ou à prole, protegendo interesses maiores, de ordem pública.

Resta um questionamento, então: qual o destino do processo?

Nos parece razoável afirmar que seria arquivado, até porque os cônjuges não manifestaram o desejo de litigar entre si, não sendo possível impor, obrigar, a alguém que se litigue em juízo contra outrem. Logo, se nos apresenta desarrazoado que sejam obrigados a uma contenda que não desejam.

Mais producente e lógico, é afirmar que o juiz, negando homologação ao acordo, deverá extinguir o processo, sem conhecimento meritório.

Ressalte-se, contudo, a possibilidade de cisão dos pedidos. Nessa hipótese, sendo possível cindir os pedidos, separando uma parte dos pleitos daquele cuja homologação está sendo negada judicialmente, a parcela não homologada dos pedidos, será arquivada, continuando-se o processo quanto aos demais pedidos que, inclusive, poderão ser objeto de decisão homologatória. Nesse sentido, inclusive, doutrina o eminente Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, BELMIRO PEDRO WELTER, alertando que será aplicado o "princípio da cindibilidade, fazendo as observações acerca da impossibilidade de homologar as cláusulas ineficazes ou ilegais, ouvindo-se as partes a esse respeito."[45]

Em resumo, negada a homologação ao acordo consensual de separação ou divórcio, em face da existência de cláusulas leoninas ou de violação a interesses da prole, impõe-se ao magistrado prosseguir no processo, se possível a cisão de parte do pedido e, acaso não retificando os litigantes, arquivando-se aquela parcela não retificada e cuja homologação foi negada.

Chega mesmo YUSSEF SAID CAHALI a afirmar que o "que não tem sentido é se manter indefinida e formalmente a sociedade conjugal, para cuja dissolução marido e mulher já manifestaram o seu acordo, com digressão apenas em torno de estipulações secundárias não definitivas, já que passíveis de revisão em decorrência de fatos posteriores"[46].

Distinta será a situação se o acordo de separação ou divórcio for negado pela retratação posterior por um dos cônjuges (perfeitamente possível de acordo com a mais recente jurisprudência, baseada na superação da Súmula nº305 do STF). Nessa hipótese, outra solução não resta, senão a extinção total do processo sem julgamento de mérito (CPC, art. 267), permitida a repropositura da ação, sob a modalidade litigiosa ou mesmo consensual.[47] É que não seria possível continuar na ação se não mais há o elemento fundamental do pedido consensual, que é o acordo de vontades.

A única vedação que nos parece aplicável ao magistrado é a impossibilidade de alterar as cláusulas apresentadas, como salientado alhures[48].

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Sobre o autor
Cristiano Chaves de Farias

promotor de Justiça na Bahia, professor da Escola Superior do MP/BA (FESMIP), da UFBA, Escola de Magistrados da Bahia (EMAB) e do Curso Podivm

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Cristiano Chaves. Novos paradigmas na separação judicial e no divórcio:: possibilidade de retratação unilateral e indeferimento do pedido de homologação de acordo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2345. Acesso em: 26 abr. 2024.

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