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Confissão de dívida resultante do crédito rotativo

01/11/2001 às 01:00
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O Código de Processo Civil, Lei n.º 5.869, de 11-01-73, ao reger o processo de execução, incluiu no rol dos títulos executivos extrajudiciais, consoante a dicção do artigo 585, inciso II, o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas. Tal disposição ensejou medrar entendimento no sentido de que os contratos bancários de crédito rotativo (cheque especial) estariam compreendidos na categoria, ao argumento de que os extratos bancários seriam aptos a atribuir aos instrumentos em referência os requisitos certeza e liquidez, os quais, restando presente a exigibilidade, viabilizariam a execução.

Todavia tal entendimento, nada obstante largamente defendido, não encontrou lastro na lógica do razoável jurídico e soçobrou, prevalecendo o desenvolvido no sentido de que o título de crédito, para existir como tal, há que nascer com o requisito certeza, isto é, o crédito há que guardar concomitância com o seu instrumento. Daí inferiu-se que em consubstanciando o contrato de crédito rotativo nada além de uma declaração da instituição financeira no sentido de disponibilizar crédito de determinado valor em conta do contratado aderente, evidenciando que no momento da adesão o crédito é inexistente, carece o instrumento do requisito certeza, cuja ausência fulmina pretensa adequação à hipótese que ensejaria a execução, eis que não pode ser posteriormente integrado por extratos bancários, do que resultou a edição da súmula n.º 233 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça pondo termo à controvérsia.

Ocorre, todavia, que as instituições bancárias estão a utilizar o instrumento da confissão de dívida previsto no art. 585/II do CPC, ao consubstanciar a renegociação de débito constituído na vigência do contrato de crédito rotativo, quantificando-o segundo os comandos do contrato renegociado, acerca de juros, multas, correção monetária, etc., e assim levam-no à execução.

Esses instrumentos relativos às confissões de dívidas renegociadas, em razão dos aspectos formais, têm sido tratadas como títulos completos e aparelham execuções, desprezando-se o fato de que o valor do crédito consignado é meramente virtual, pois, tendo-se efetivado segundo os comandos do contrato renegociado ausente, torna-se suscetível, sendo certo que esse crédito, em sendo meramente potencial, não se pode considerar determinado, o que significa, em outras palavras, que a "suposta liquidez" do débito pelo credor fez-se através de comandos ausentes no instrumento levado à execução.

Não é demasiado repisar que o título de crédito há que ostentar os requisitos certeza, liquidez e exigibilidade e, como não raramente dificuldades concretas surgem em identificar, no documento levado à execução, a determinação do crédito em sua extensão, ou seja, a liquidez, quando lançamentos de acréscimos ocorrem, um reporte à doutrina dos próceres do direito pátrio, para melhor elucidação do raciocínio aqui desenvolvido faz-se necessário. Destarte, o entendimento expresso por Cândido Rangel Dinamarco, em EXECUÇÃO CIVIL - 4ª edição, revista atualizada e ampliada -, páginas 491/2, oportuniza-se, verbis:

Constitui judicioso entendimento dominante o de que a liqüidação do crédito se contenta com a determinabilidade do quantum debeatur, não sendo necessário que o título se refira, desde logo, a um montante determinado. O que importa é que o título executivo forneça todos os elementos imprescindíveis para que, mediante simples operação aritmética e aplicação da lei, possa ser encontrado o número de unidades (na maior parte dos casos, unidades de moeda) pelo qual a execução se fará: sendo necessário buscar elementos aliunde, faltará o requisito liquidez.

Concluindo o entendimento, acrescenta o renomado jurista:

Não padece de iliquidez o título referido a uma importância à qual se devam acrescer "juros ou comissão de permanência"; ou quando há correção monetária a fazer sobre o valor indicado; ou mesmo quando o valor deva ser atualizado mediante certos índices contratuais ou legais (p. ex., a TR).

Firmou-se a jurisprudência, também, no sentido de não ficar eliminada a liquidez do crédito, quando são feitos adiantamentos por conta e lançados na cártula (mera conta dirá qual é o valor da obrigação).

Finalmente, o eminente processualista, para instruir o raciocínio, destaca em nota de rodapé:

Bem expressiva é a seguinte manifestação: ä liquidez de um título não se enevoa tão-somente porque o quantum deva sofrer uma subtração aritmética, de importância também líquida, certa e induvidosa. O título sujeito à incidência de uma elementar operação de diminuição de parcela determinada mostra de imediato o quantum debeatur resultante (cfr.TAMG, ap. n. 23.888, j. 16.12.83, rel. Sálvio de Figueiredo, v.u., ADV em 15.705).

Segundo o esse posicionamento, existindo o crédito, com seus limites já fixados ou fixáveis por meros cálculos aritméticos, por critérios consubstanciados no instrumento, têm-se satisfeitos os requisitos certeza e liquidez. Todavia, a quantificação do crédito, não é sempre que se pode determinar, notadamente se houve acréscimos segundo lançamentos obedientes a comandos contratuais não presentes. Eis, então, que o entendimento observado nos campos doutrinário e jurisprudencial revela-se totalmente inadequado, pois a apuração da liquidez, assim, inviabiliza-se.

Ademais, em se observando que na execução de dívida renegociada instrumentalizada em de confissão de débito remoto acrescido segundo comandos contratuais vigentes ao tempo da sua constituição, o documento que a contém vem sendo tratado como título de crédito completo, impende alertar-se que em sendo exigido crédito não determinável, em razão da ausência dos comandos aplicados, necessária se torna a presença do contrato renegociado, para revelá-los e permitir uma subtração de importância líquida, certa e induvidosa, capaz de, com o devido rigor, permitir conhecer-se o crédito concretamente.

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Nota-se, pois, que a hipótese em estudo revela que um documento de confissão de dívida nestas circunstâncias nada mais é que um instrumento adicional ao primitivo contrato de crédito rotativo. Nota-se, ainda, mutatis mutandis, que esse entendimento não encontra resistência quando pela via do processo de conhecimento pleitos revisionais são formulados, restando placitado que tais instrumentos consubstanciam obrigação continuativa, sem mutação da relação jurídica. Em síntese, não se caracterizando a confissão de dívida novação, há necessidade que o título forneça todos os comandos de que se valeu o credor para determinar o quantum debeatur, partindo-se do principal, a concluir-se, pois, que a quantificação do crédito somente se obtém conjugando-se os contratos de crédito rotativo e a confissão de dívida.

Entender-se, destarte, que somente estando também presente à execução o contrato primitivo é que o requisito liquidez do título ter-se-á por atendido revela-se consentânea por derivação lógica, ensejando a defesa fora dos embargos, através de exceção de pré-executividade. Daí, coerente é afirmar-se que o raciocínio aqui explicitado encontra na jurisprudência o respaldo necessário, a exemplo de caso que guarda estreita analogia com a hipótese aqui estudada, em que a decisão foi no sentido da extinção da execução pela inobservância do princípio nulla executio sine titulo, segundo a interpretação efetivada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (AI 97.000068-5 - in RT 755/1998, págs. 386/389), bastante a revelar exata compreensão do tema, merecendo, pois, transcrever-se a ementa:

EXECUÇÃO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE

Argüição da nulidade de título incompleto nos próprios autos da ação – Admissibilidade – Hipótese em que fica o exeqüente, caso reconhecida a nulidade, sujeito aos efeitos da sucumbência.

E do voto condutor o trecho de invulgar relevo para exata compreensão, in verbis:

Certo é que a segunda escritura levada a efeito simplesmente ratificou as cédulas escrituras anteriores, confirmando, é verdade, as obrigações antes assumidas. Nada obstante, sequer transcreveu os seus termos, o que via de conseqüência impossibilita a apreensão concreta de todas as estipulações antes efetuadas.

Vale dizer, o título, nestes termos confeccionado e ora levado à execução, mostra-se incompleto, a uma porque desacompanhado dos títulos que complementam a primeira escritura, e a duas porque esta tampouco acompanha a segunda.

Assim é que, in casu, a execução abrange a totalidade do débito, incluindo aí aquele oriundo da primeira escritura, que, não estando presente, descaracteriza-se quanto à natureza de sua liquidez e certeza, ensejando, de conseguinte, a nulidade da execução, o que pode e deve, repita-se, ser declarado de ofício pelo próprio Juiz, como a exemplo tem decidido o E. STJ, como o fizera no acórdão assim ementado:

"Não se revestindo o título de liquidez, certeza e exigibilidade, condições basilares exigidas no processo de execução, constitui-se em nulidade, como vício fundamental; podendo a parte argüi-la independentemente de embargos do devedor, assim como pode e cumpre ao Juiz declarar, de ofício, a inexistência desses pressupostos formais e contemplados na lei processual civil"

(RSTJ 40/447, anotado por Theotonio Negrão, 28, ed., Saraiva, p. 4.680)

Em resumo, sendo único o débito e originado quando vigente e segundo as cláusulas do contrato que não instruiu a execução juntamente com o instrumento que contém a confissão da dívida construída segundo os comandos inseridos no omitido, tem-se que o título executivo descaracterizado está, e por tal circunstância há que ser entendido como tal, porque incompleto e, em razão da não completude não é líquido, eis que não permite, repita-se, determinar-se o débito e sua extensão, inviabilizando a pretensão satisfativa do crédito, assim é de boa técnica, argüir-se, com fulcro no artigo 618 do CPC, através de exceção de pré-executividade, a nulidade da execução aparelhada em confissão de dívida oriunda de contrato de crédito rotativo, se este não acompanhar o que lhe dá seqüência.

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Sobre a autora
Vilma Rebello

advogada militante no Rio de Janeiro (RJ), defensora pública aposentada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELLO, Vilma. Confissão de dívida resultante do crédito rotativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2353. Acesso em: 24 abr. 2024.

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