No exercício da advocacia, ou das profissões jurídicas como um todo, somos diariamente surpreendidos por novos desafios, conhecimentos e, menos corriqueiramente, aberrações. Com relação a essas últimas, confesso que poucas situações conseguiram me deixar tão boquiaberto quanto as que doravante narrarei.
Há algum tempo, logo no início da minha carreira, recebi a ligação de um estagiário que, notoriamente estarrecido, noticiou-me com voz de indignação:
“Doutor, o pessoal não está permitindo o protocolo do Agravo pelo fato de não ter contrafé.”
“Como assim?”, pensei. Estava impugnando uma decisão interlocutória que havia indeferido um pedido de antecipação dos efeitos da tutela, não tendo sido, ainda, efetivada a citação e, pois, não se completado a relação processual.
Em casos tais, a intimação do agravado para oferecer resposta ao recurso é despicienda. Por que, então, precisaria juntar uma contrafé?
Respirei fundo e, na minha inexperiência de um profissional em início de carreira, decidi não “tumultuar”. Imprimi a contrafé e juntei ao instrumento. Ainda que aquela contrafé fosse ficar grampeada nos autos, sem qualquer serventia a não ser aumentar o volume desses, não dispunha de tempo para explicar processo civil àqueles servidores e, muito menos, queria criar desavenças.
Certamente hoje, mais maduro e experiente, minha atitude teria sido de insistir na minha verdade, até para que outros colegas de profissão não sofressem aquele ultraje. Todavia, como popularmente dizem, “não se pode chorar pelo leite derramado”.
Assim, isento de animosidades com o protocolo local, mas indignado com o óbice indesejado a meu exercício profissional e me martirizando pela vida da árvore que extirpei com aquela impressão inútil, prossegui atuando.
Anos se passaram e, ainda bem, não tive outra situação análoga. Isso até poucos dias atrás quando recebi, mais uma vez, uma inusitada ligação:
“Doutor, o pessoal não quer protocolar a inicial por causa do nome.”
“Por causa do nome?”, indaguei.
“Exato. Eles falaram que não é ‘Ação de conhecimento com pedido de indenização’, mas sim ‘Ação de Indenização’. Segundo eles, isso dá problema no sistema.”
Déjà vu. Fui, imediata e bruscamente, arremessado ao passado. Respirei fundo, como fizera anos atrás e... decidi “tumultuar”! Era a chance de limpar o leite que havia derramado e pelo qual não pude chorar. A chance de honrar a memória da árvore que ajudei a cortar quando imprimi, conscientemente, uma contrafé que acabou sendo enterrada em um arquivo judicial.
Não sei se o protocolo judicial havia se inspirado na recente decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, que declarou a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta penalmente tipificada, mas, metaforicamente, deu à minha petição igual tratamento.
Minha petição inicial foi impedida de nascer. Literalmente, morreu antes de viver. A justificativa: era, aos olhos do protocolo, anencéfala, ou seja, caso protocolada, seria rejeitada liminarmente pelo juiz por ter sido dado a ela nome distinto do que a lei lhe impõe. Impõe? Como assim?
Pedi ao estagiário que me aguardasse e fui, humildemente, ao protocolo.
Peguei a petição inicial e estendi minha mão ao servidor solicitando o protocolo. A resposta:
“Doutor, já expliquei ao rapaz que não poderei protocolar em razão do nome que o senhor atribuiu à inicial. Em nosso sistema temos apenas ‘Ação de Indenização’, não temos ‘Ação de conhecimento com pedido de indenização’. O sistema não aceita.”
Embora milite preferencialmente na área empresarial, revigoraram em minha memória as saudosas aulas de processo civil da graduação com o professor e agora companheiro de escritório Dr. Lúcio Flávio Siqueira de Paiva. Inspirado em tão brilhante processualista, comecei a exposição.
“Amigo, é comum, em sua prática diária, deparar-se com ações nominadas (cobrança, indenização, declaratória, anulatória, etc). De tão corriqueiro que é, o próprio sistema do Tribunal as prevê. Trata-se de prática antiga que jamais poderia ser considerada errada. A meu ver, entretanto, ações não têm nome, na exata medida em que filio-me à teoria abstrata e autônoma quanto à natureza jurídica do direito de ação. Daí prefiro me limitar à utilização do nome da ação em relação ao tipo de processo: ação de conhecimento, ação de execução e ação cautelar. Nas ações submetidas a procedimentos especiais (depósito, consignação, monitória, etc) utiliza-se nominá-las apenas com o objetivo de designar o procedimento adequado, isso, entretanto, não altera a sua natureza jurídica – por exemplo, as ações de procedimento especial são verdadeiras ações cognitivas, que em razão de dados específicos (direito discutido, partes) submetem-se a ritos processuais específicos.”
Tentei, com essas palavras, demonstrar que minha petição era, modestamente, provida de massa encefálica obediente à boa técnica processual.
E continuei.
“Ainda que houvesse algum ‘equivoco nominativo’ não cabe ao protocolo a rejeição liminar da petição inicial. É assegurado constitucionalmente o direito de ação, ou seja, o direito de se obter um provimento jurisdicional. Dessarte, ainda que se tratasse de uma receita de bolo[1] seu dever funcional, em respeito ao direito constitucional de ação do jurisdicionado que represento, seria de protocolar a petição e deixar que o juiz, caso entenda prudente, extinga o feito.”
Em termos outros, quis dizer que, ainda que anencéfala fosse, não cabe ao protocolo judicial analisar o conteúdo das peças que protocolam. Devem, simplesmente, efetuar o protocolo. A análise do teor das petições é atribuição exclusiva de juízes togados.
Citei, como exemplo, o protocolo da Justiça Federal de Pernambuco que, nada obstante ao excêntrico conteúdo de uma petição inicial (na qual a Autora requeria "o direito legal legitimo de ser inimiga contra os Estados Unidos da America do Norte"(sic), o "direito de ser amiga e a respeitar os povos europeus"(sic), o "direito a explodir bomba atômica contra todo o povo norte americano nacionalidade de origem, povo do continente america, do país Estados Unidos da America do Norte, Capital Washington DC., não deixando nenhum sobrevivente"(sic), alem de reparação de danos "no valor de moedas Brasil 20 quatrilhões de reais"[2]) efetuou, sem pestanejar, seu protocolo. Por óbvio, a ação foi prontamente extinta sem resolução de mérito. Entrementes, aquela Autora teve respeitado seu direito de ação.
Após essas palavras, não mais precisei estender as mãos, o próprio servidor fez questão de pegar a petição de meus braços e dar vida àquela demanda.
“Prontinho, Doutor.”
Sai do protocolo com o espírito renovado. Contente por ter aprendido com o erro cometido anos atrás. Satisfeito por ter, ao menos momentaneamente, evitado a criação consuetudinária do instituto processual do “aborto de petição inicial diagnosticada como anencéfala pelo protocolo judicial”.
Notas
[1] Utilizando um exemplo doutrinário clássico.
[2] Ação Ordinária nº 0013654-10.2000.4.05.8300.