"… Esses fatos evidenciam a indeclinável necessidade da adoção de uma política urbana, assentada na função social da propriedade, e na função social da cidade, …, política à base da qual se identifique uma concepção renovada e democrática da ocupação do espaço urbano." (grifo nosso)
Dr. Ricardo Pereira Leite, em prefácio à obra A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil, do Mestre Rogério Gesta Leal
I – À GUISA DE UMA INTRODUCÃO:
O presente ensaio, trazido à baila pelo Mestre Rogério Gesta Leal, leva ao estudo dos contornos práticos e teóricos do poder de polícia que tem a Administração Pública no resguardo de bens e interesses frente à atuação dos administrados, especificadamente, restringindo-se a liberdade e a propriedade destes.
Esses dois princípios – liberdade e propriedade – devem, necessariamente, estar consonantes com os objetivos públicos, de modo a não obstaculizá-los, já que de maior supremacia.
Há necessidade, para melhor deslinde do ensaio proposto, averiguações conceituais, delineação do sentido poder de polícia, a amplitude do mesmo, a sua noção de "poder negativo", os seus traços característicos e/ou atributos, as suas características de condicionar, restringir e limitar a atuação do particular e vinculação do assunto frente à intervenção na propriedade, principalmente urbana.
Outra questão que perpassa na abordagem do tema fica vinculada a sabermos em que exatos termos ocorre a intervenção na propriedade, já que nesta estão colocados a desapropriação, a servidão administrativa, a ocupação temporária e a limitação administrativa, esta derivando do poder de polícia, na acepção de Hely[1].
De outra parte, verificaremos no decorrer do presente trabalho, apesar do esforço inusitado de todos os administrativistas, que o poder de polícia da Administração, primordialmente o voltado à intervenção na propriedade, torna-se inoperante frente às falhas encontradas em todo o sistema estatal, principalmente a desraigada desatenção prestada aos direitos individuais e coletivos ditados na Carta de 1988. Os deslindes do presente ensaio perpassam, então, das simplórias considerações academicistas do que seja e o que pode ser o poder de polícia e busca, dentre outras coisas, demonstrar que a função social da propriedade só pode ser almejada – diferentemente do que prevê o texto constitucional – através de reformas setoriais, estruturais e conjunturais de todo o sistema estatal, fornecendo-se aos cidadãos verdadeira capacidade de exercício de seus direitos.
II – CONCEITO DE PODER DE POLÍCIA
O poder de polícia, que encontra sua razão no interesse social e seu fundamento na supremacia geral que exerce o Estado sobre todas as pessoas, é, segundo Hely[2], "a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado."
Celso Antônio Bandeira de Mello[3], criticando a expressão poder de polícia, acaba por dizer que a mesma "Refere-se, pois, ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos."
Mais importante, é a lição de Caio Tácito[4], que expõe que "o poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais."
III – SENTIDO DA EXPRESSÃO PODER DE POLÍCIA
Observa Celso A. B. de Mello[5] que a expressão poder de polícia é equívoca, por englobar, sob um único nome, coisas bem distintas e submetidas a regimes inconciliáveis, quais sejam as leis e os atos administrativos: aquelas, de caráter superior; estas, de caráter subalterno.
O mesmo autor, expressa-se dizendo que, no entanto, "A expressão, tomada neste sentido amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo." Prossegue: "A expressão ‘poder de polícia’ pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (…), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar o desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais", mencionando que essa acepção mais restrita corresponde à noção de polícia administrativa.
O autor nominado[6] considera o poder de polícia um poder essencialmente negativo, pois sua "função cingir-se-ia a evitar um mal, proveniente da ação dos particulares", e nessa pilastra ostenta o seu principal sentido: objetiva, primordialmente, a vedação de um comportamento.
Ainda, referente ao presente tópico, cabe mencionar que o poder de polícia não é essencialmente discricionário, ora se expressando através de atos no exercício de competência discricionária, ora através de atos vinculados.
IV – ATRIBUTOS DO PODER DE POLÍCIA
Desnecessário, diante do magistral ensinamento de Hely[7], tecer comentários referentes aos atributos do poder de polícia, quais sejam a discricionariedade – aqui o professor ressalta, como já o fizemos, que o poder de polícia também poderá ser vinculado, quando a Lei assim o desejar –, a auto-executoriedade e a coercibilidade.
Celso A. B. de Mello, especificando os traços característicos do poder de polícia, menciona a sua origem, ou seja, o poder de polícia deve provir privativamente de autoridade pública, devendo ser imposta coercitivamente pela Administração e abranger genericamente as atividades e propriedades.
Denota-se, por essas circunstâncias, que o poder de polícia, ao menos teoricamente, tem uma função primordialmente preventiva e fiscalizadora – também o é repressiva – na restrição, limitação e condicionamento da atividade dos administrados, colocando a eles, coercitivamente, um dever de abstenção, procurando conformar o seu comportamento ao interesse social fundamental.
V – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (URBANA)
De suma importância discorrer, ao menos algumas linhas, sobre a função social da propriedade antendo-nos, neste primeiro momento, aos aspectos puramente legais e constitucionais.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XXIII, assevera que a propriedade deve ater-se à sua função social, ou seja, se dela espera-se que haja produção, deve esta existir; se dela espera-se que sirva à moradia, deve esta existir. Esse dispositivo fica consonante com a previsão de desapropriação por interesse social, quando se impõe o condicionamento ou distribuição da propriedade visando seu útil aproveitamento, beneficiando, com isso, categorias sociais que mereçam o devido amparo do Estado.
VI – A INTERVENÇÃO NA PROPRIEDADE
Hely[8] entende que a expressão intervenção na propriedade privada refere-se ao todo "ato do Poder Público que compulsoriamente retira ou restringe direitos dominiais privados ou sujeita o uso de bens particulares a uma destinação de interesse público."
Expõe, como meios específicos de intervenção na propriedade a desapropriação, a servidão administrativa, a requisição, a ocupação temporária e a limitação administrativa.
Sem intenção de tecer comentários a respeito de cada uma das formas de intervenção na propriedade, salienta-se que apenas na limitação administrativa podemos encontrar características do poder de polícia, quando se condiciona o exercício de direitos ou atividades de particulares em prol de um interesse maior: o social.
Não há, na desapropriação, singela restrição ou condicionamento através do poder de polícia, sim verdadeira "intromissão" no direito do administrado, resultante do poder de supremacia do interesse público sobre o do particular.
Assim, as limitações à liberdade e à propriedade em que atua, por exemplo, o poder de polícia, não se expressam em sacrifícios de direitos, há, no entanto, a decadência de um direito individual, sempre do administrado, em razão de um interesse social.
Em defesa dos interesses públicos, obriga-se a Administração Pública a intervir na propriedade privada, através da restrição, limitação, condicionamento ou retirada de direitos dominiais privados ou a sujeição do uso de bens particulares a um interesse público. Essa intervenção exige ser precedida de lei federal que expresse o fundamento na necessidade ou utilidade pública, ou interesse social e a autorize. A norma autorizativa é de competência da União, já a prática da intervenção pode ser dos Estados-Membros ou do Município, nos limites de sua competência.
A multiplicidade de exigências sociais e a variedade das necessidades coletivas impõem ao Poder Público a diversificação dos meios de intervenção na propriedade e de atuação no domínio econômico, atuando através das mencionadas formas.
Ao estabelecer limites e limitações, a legislação, pode impor ao titular do direito um "fazer", um "não-fazer" ou um "suportar". Os limites expressos no próprio conteúdo de direito e as limitações ao seu exercício, estabelecidas pelas regras jurídicas, formam um estatuto de direito mínimo e atendem ao princípio de sua relatividade, não podendo ser absoluto um direito como o de propriedade, eis que seu conteúdo e exercício têm que possibilitar sua coexistência com outros direitos e o respeito recíproco dos mesmos. Aqui, também, jaz a questão da função social da propriedade antes abordada.
Não existe, portanto, imutabilidade de poderes e faculdades em termos de conteúdo e exercício de direitos. Por outro lado, a limitação, as alterações, imposições, restrições do direito de propriedade acarretam um ônus indenizatório por parte do Poder Público - exceto nos casos de limitações administrativas - que de tal forma protege um interesse coletivo e não agride de todo um direito particular.
Cabe acrescentar, que a intervenção estatal na propriedade particular, neste caso urbana, apresenta uma imagem de Estado inquisidor e altamente omissivo, porém, ressalvado o interesse, a utilidade ou necessidade pública, esta intervenção assume a face de mediador entre as relações sócio-individuais, organizando por si, a sistemática estrutura organizacional e governamental que visa atingir os objetivos fundamentais em respeito a todos os cidadãos. Porém, restringir, condicionar, limitar ou retirar direitos particulares em prol do bem geral, pode figurar apenas um ato no contigente necessário para alcançar o bem-estar social pleno, bastante distante da realidade social vigente. Nesse sentido nossa conclusão, que segue.
VI – CONCLUSÃO:
Já nos referimos no início que a despeito de uma perfeita teorização respeitante ao que seja poder de polícia, seus limites, abrangência, finalidade, da sua possibilidade de restringir e condicionar direitos vinculados à liberdade e à propriedade, nada disso "tem valor" se não vinculado a uma restruturação, reformulação dos fins estatais.
Após breve análise sobre o tema ensaiado, confrontando-se às crises sócio-econômicas e sistêmico-estruturais do Estado Democrático de Direito, torna-se subjetiva e difícil a abordagem, conclusiva e concreta, no presente ensaio.
No entanto, a atividade mediadora do Estado moderno – de Direito – em função da organização, desenvolvimento e bem-estar social – isso tudo na teoria! –, evidencia-se como uma direta relação entre a Administração Pública e os administrados. Uma interligação entre poder e ação direta sobre direitos individuais e coletivos, além de uma interligação entre acontecimentos e fatores sociais determinantes, levando a democracia à exigência de regramento dos direitos fundamentais e dentre estes o de propriedade, condicionando-se a sua utilização em prol de um interesse maior.
Frente às dificuldades sociais, diuturnamente enfrentadas pelo cidadão, enfoca-se o ensaio da interveniência soberana do Estado na propriedade e nas atividades socialmente desenvolvidas, baseada no interesse coletivo do bem comum. Partindo do princípio que o interesse individual decai perante o coletivo, a intervenção deixa de ser um ato considerado opressivo e figura-se como instrumento de construção da sociedade, amainada de conflitos, possibilitando-se a formação de uma conjuntura social eficaz e funcional.
A convivência social, neste enfocada como urbana, possibilita a verificação de um direito de propriedade existente, não imutável e acessível à interferência de uma força superior comutada com os interesses gerais e maiores da sociedade, pressupondo a restrição, a limitação, o condicionamento e até a adequação de um direito em princípio indisponível, a outro considerado fundamental.
A Administração Pública emerge de uma série de fatores sociais agressivos à humanidade e perante a situação é levada a agir e mediar os gravames sócio-culturais evidenciados pelas conturbadas relações indivíduo versus Estado e Indivíduo versus sociedade. Entre seus poderes, mais especificamente, os poderes administrativos, está a instituição interventora estatal, que protege normas pré-estabelecidas e regula pressupostos de convivência respeitosa na sociedade, baseado na razão e fundamento iniciais: o interesse público.
A mutabilidade visível das relações sociais entre o Estado e o indivíduo social, vincula-se a exigência de um repensar objetivo da função social da propriedade e da proteção dos direitos fundamentais. Fatores políticos, sociais e econômicos, contextualizam a história da necessária intervenção estatal nas relações de direitos individuais, e, enquanto não se fizer presente um estudo mais pormenorizado e minucioso acerca de uma normatização coerente com a problemática da sociedade pós-moderna, não haverão resultados eficazes e condizentes com a necessidade coletiva e o interesse público, prevalecente – ao menos na teoria – no Estado Democrático de Direito.
Notas
1.In Direito Administrativo Brasileiro, 22ª edição, Malheiros: 1995.
2.Ob. cit., p. 115.
3.In Curso de Direito Administrativo, 10ª edição, Malheiros 1998.
4.In RDA 27/1, Poder de Polícia e seus limites.
5.Ob. cit., p. 514-5.
6.Ob. cit., p. 516-7.
7.Ob. cit., p. 120-2.
8.Ob. cit., p. 512.