4 FUNDAMENTOS DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA EMENDA CONSTITUCIONAL DE Nº 62/2009
Considerando as novas legislações brasileiras, observa-se certo avanço principalmente em relação à moralização da administração pública (Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei Ficha Limpa), entretanto, a Emenda Constitucional 62/2009 vem na contramão desta onda moralizadora, “que logo mereceu o tratamento adequado, isto é, de emenda do calote.”[14]
As alterações promovidas pela Emenda Constitucional 62/2009, traduzem, nos dizeres de VALDER DO NASCIMENTO, “aquilo que se convencionou chamar base aliada”[15], que “não passa de instrumento de manipulação do processo legislativo distanciado do interesse público. Trata-se, isto sim, de uma prática fisiológica carregada de ilicitude que compromete o resultado do produto final do parlamento: a lei.”[16]
Em mesma senda, RIOS DO NASCIMENTO assevera:
Não é mais passível continuar tolerando a omissão de homens públicos que, eleitos para encaminhar soluções de interesse geral, terminam fazendo o contrário, em função de projetos pessoais, desconstruindo esforços desenvolvidos há décadas, e se empenhando apenas naquilo que lhes possa beneficiar.[17]
Nesse contexto, em primeiro plano, insta esclarecer que a CF/88 ao ser promulgada, estabeleceu diretrizes basilares nas quais se fundam um Estado de Direito, dentre elas destaca-se a subordinação do próprio Estado ao Direito e à Jurisdição. O que nas palavras de MARÇAL JUSTEN FILHO, consiste em “Uma conquista insuprimível da evolução política da Nação brasileira consistente na instauração de um Estado de Direito, que se diferencia de um Estado absolutista sob numerosos ângulos.”[18]
Tendo em vista a submissão do Estado brasileiro ao estatuído pelo poder constituinte originário, torna-se cabível e possível a responsabilização civil do mesmo, caso contrário, em não havendo tal submissão, o Estado brasileiro se assemelharia a um “modelo clássico da monarquia absolutista, em que o Rei decide sobre a sua própria responsabilidade, o que significa a ausência de submissão ao Direito: o Rei até poderá decidir contra si próprio, mas o fará como uma mera liberalidade (inerente ao cunho não democrático do sistema político).”[19]
Considerando tal premissa, sujeição do Estado ao Direito, é que passo a analisar a incompatibilidade/inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62/2009 com os princípios constitucionais vigentes.
Nesta toada, antes de cotejar a Emenda em comento com os princípios constitucionais, mister trazer à baila a nobre lição acerca de princípios por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.[20]
A Emenda Constitucional 62/2009 ao inserir no § 2º, art. 100 da CF/88, preferência aos créditos de natureza alimentícia cujos titulares tenham sessenta anos de idade ou mais na data de expedição do precatório, de forma desarrazoada e desigual, firma distinção que acaba por preterir os maiores de 60 anos idade, que são titulares de crédito de natureza alimentícia, e que não possuíam 60 anos ou mais na data de expedição dos respectivos precatórios.
Desta forma, torna-se possível que um credor, detentor de crédito de natureza alimentícia, com mais de 75 anos de idade, que ao tempo da expedição do precatório possuía 59 anos, seja preterido por um credor que possui 60 anos de idade e teve seu precatório expedido com essa idade.
Assim, têm-se que a expressão “na data da expedição do precatório”, fere o princípio constitucional da igualdade (isonomia), por tratar de modo diferente àqueles que estão em condições iguais.
Neste sentido, segue o voto do Ilustre Ministro Relator da ADI 4.357, Sr. CARLOS AYRES BRITTO:
Demais disso, e aqui reside a inconstitucionalidade do novo § 2º do art. 100 da Magna Carta, é de se conferir tratamento favorecido a quantos se encontrem nas mesmas condições de justificada fuga da regra geral. (Grifo meu)
(...)
(...) Realmente, por efeito da regra inserida na Magna Carta pela Emenda Constitucional nº 62/2009, uma pessoa de 60 (sessenta) anos que acabou de ter seu precatório expedido receberá parte de seu crédito antes de uma pessoa de 80 (oitenta) anos que espera há mais de duas décadas pelo adimplemento do seu crédito. Por analogia, é como se a lei processual conferisse tramitação prioritária somente às ações judiciais daqueles que, na data da respectiva propositura, tinham sessenta anos de idade. Por isso que a providência correta, à luz do princípio isonômico, seria destinar a preferência a todos que (e à medida que) completem 60 (sessenta) anos de idade na pendência de pagamento de precatório de natureza alimentícia. Aliás, esse é o regramento quanto às pessoas portadoras de doença grave. Daí porque assento a inconstitucionalidade da expressão “na data de expedição do precatório”, contida no § 2º do art. 100 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 62/2009. [21]
Lado outro, a compensação obrigatória de eventuais débitos do titular do precatório para com a Fazenda Pública, estabelecida no § 9º e § 10, art.100 da CF/88, revela-se sobremodo lesiva aos credores, ferindo o princípio da isonomia processual, gerando à Fazenda Pública prerrogativa processual desproporcional. Deste modo, além da Emenda Constitucional 62/2009, criar um regime que favorece amplamente à Fazenda Pública na forma de pagamento de seus débitos, cria mais uma grande prerrogativa processual a esta, no sentido de só pagar o que deve (mesmo após sentença com trânsito em julgado) após a compensação de seu débito com eventual débito que o credor possua para com a mesma.
Torna-se por demais gravoso, aos credores de precatórios oriundos de processos judiciais, nos quais, muitas das vezes demoram vários anos para que haja sentença com trânsito em julgado, ao ter seu direito reconhecido, serem expostos à frustração de seu crédito, sem ao menos poderem questionar acerca da legalidade ou não de eventual dívida que possuam para com a Fazenda Pública, devido a uma super prerrogativa atribuída a esta.
É que, a Fazenda Pública possui seus meios próprios de cobrança, legalmente estabelecidos no ordenamento jurídico, não sendo razoável que seja criado tal precedente que fira direito fundamental, como o devido processo legal, e frustre o direito do credor de ver seu crédito satisfeito.
Da forma em que postos, o § 9º e § 10 do art. 100, da CF/88, acabam por atingir o princípio constitucional do devido processo legal e seus corolários, ampla defesa e contraditório, bem como o princípio da separação dos poderes e, ainda, fere a coisa julgada.
O devido processo legal, que pressupõe isonomia processual, é atingido porque através do § 9º, art. 100 da CF/88, fora criada uma super prerrogativa à Fazenda Pública, deixando desequilibrada a relação processual. Já o princípio da separação de poderes é infringido com tal parágrafo porque este viola a coisa julgada, ou seja, as sentenças judiciais, embora transitadas em julgado, perdem seu efeito vinculante, bem como sua eficácia, dependendo de prévia manifestação da Fazenda Pública no que tange à compensação de seus débitos, para serem exequíveis.
Nesta senda, segue trecho de voto da Ilustre Ministra Relatora da ADI 3.453, Sra. CÁRMEN LÚCIA:
As formas de obter a Fazenda Pública o que lhe é devido e a constrição da contribuição para o pagamento de eventual débito havido com a Fazenda Pública estão estabelecidas no ordenamento jurídico e não podem ser obtidas por meios que frustrem direitos constitucionais dos cidadãos.
Ademais, tal como tratada na Constituição, a matéria relativa a precatórios não chama a atuação do legislador infraconstitucional, menos ainda para impor restrições que não se coadunam com o direito à efetividade da jurisdição e o respeito à coisa julgada. E a jurisdição é respeitada em sua condição efetiva, às vezes, pelo pagamento de valor definido judicialmente.
O condicionamento do levantamento do que é devido por força de decisão judicial ou da autorização para o depósito em conta bancária de valores decorrentes de precatório judicial, estabelecido pela norma questionada, agrava o que vem estatuído como dever da Fazenda Pública em face de obrigação que se tenha reconhecido judicialmente em razão e nas condições estabelecidas pelo Poder Judiciário, não se mesclando, confundindo ou, menos ainda, frustrando pela exigência paralela de débitos de outra fonte e natureza que, eventualmente, o jurisdicionado tenha com a Fazenda Pública.
(...)
Ademais, a decisão judicial não pode ter a sua efetividade e o seu respeito condicionados à exigência que venha a ser imposta pelo legislador infraconstitucional [nem pelo constituinte reformador], em detrimento do julgado e da satisfatividade da prestação jurisdicional.
Neste sentido, o princípio da separação de poderes estaria agravado pelo preceito infraconstitucional, que restringe o vigor e a eficácia das decisões judiciais ou da satisfação a elas devidas na formulação constitucional prevalecente no ordenamento jurídico.
(...)
A assertiva feita nas informações pelo Congresso Nacional [e, nestes autos, repetida pelo Advogado-Geral da União] de que a norma legal sob análise teria ‘espírito moralizador’ demonstra-se, bem ao contrário, desmoralizadora das decisões judiciais e frustradora de direitos dos jurisdicionados.[22] (Grifo Meu).
Não é outro o entendimento do Ilustre Ministro Sr. JOAQUIM BARBOSA, na mencionada ADI 3.453:
Também eu entendo que a subordinação da solução de créditos, que devem ser pagos mediante precatório, à comprovação da ausência de débitos inscritos em dívida ativa, é desproporcional em relação aos limites impostos pelo artigo 100 da Constituição, especialmente o seu respectivo § 1º, que afirma ser obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verbas necessárias ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado. Assim, o Estado está obrigado a solver suas obrigações, independentemente da existência ou inexistência de créditos oponíveis ao seu credor.
A Fazenda Pública possui inúmeros mecanismos destinados à salvaguarda de seus créditos, inclusive com a constrição do patrimônio do devedor e o registro das dívidas em cadastros de inadimplência.
De forma semelhante às tentativas do Fisco de embaraçar a atividade econômica do contribuinte inadimplente, rechaçadas por esta Corte em diversos precedentes (cf. e.g., o RE 413.782, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, DJ de 03.06.2005, e as Súmulas 70, 323 e 547 da Corte), a vinculação em exame representa típica hipótese de sanção política, inadmissível no sistema tributário brasileiro.[23] (Grifo Meu).
Outrossim, oportuno o trecho do voto do Ilustre Ministro Relator da ADI 4.357, Sr. CARLOS AYRES BRITTO, in verbis:
Não é tudo, porque também me parece resultar preterido o princípio constitucional da isonomia. Explico. Exige-se do Poder Público, para o recebimento de valores em execução fiscal, a prova de que o Estado nada deve à contraparte privada? Claro que não! Ao cobrar o crédito de que é titular, a Fazenda Pública não é obrigada a compensá-lo com eventual débito dela (Fazenda Pública) em face do credor-contribuinte. Por conseguinte, revela-se, por mais um título, anti-isonômica a sistemática dos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição da República, incluídos pela Emenda Constitucional nº 62/2009. Pelas mesmas razões, é inconstitucional a expressão “permitida por iniciativa do Poder executivo a compensação com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o devedor originário pela Fazenda Pública devedora até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja exigibilidade esteja suspensa nos termos do § 9º do art. 100 da Constituição Federal”, contida no inciso II do § 9º do art. 97 do ADCT.[24]
Por sua vez, o § 12, art. 100 da CF/88, ao definir novo critério de atualização monetária e de juros moratórios, que incidirão sobre os requisitórios desde a expedição até o pagamento, balizando-os ao índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, fulminam o princípio da isonomia, gerando certo confisco sobre o crédito do titular de precatórios, e ainda, o enriquecimento ilícito pela Fazenda Pública.
Tal vício de inconstitucionalidade acentua-se ainda mais, ao comparar-se o índice de atualização monetária e juros moratórios que incidem sobre os créditos de natureza fiscal, em que a Fazenda Pública é credora, a taxa SELIC (Lei 9.065/95) ou a taxa de 1% a.m (art. 161, § 1º, CTN), com o índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança que incide sobre os precatórios, sendo que a diferença entre tais índices é de ordem exacerbada em favor da Fazenda Pública, que acaba por receber mais e pagar menos (quando se paga).
Nesta toada, o voto do Ilustre Ministro Relator da ADI 4.357, Sr. CARLOS AYRES BRITTO:
O que se conclui, portanto, é que o § 12 do art. 100 da Constituição acabou por artificializar o conceito de atualização monetária. Conceito que está ontologicamente associado à manutenção do valor real da moeda. Valor real que só se mantém pela aplicação de índice que reflita a desvalorização dessa moeda em determinado período. Ora, se a correção monetária dos valores inscritos em precatório deixa de corresponder à perda do poder aquisitivo da moeda, o direito reconhecido por sentença judicial transitada em julgado será satisfeito de forma excessiva ou, de revés, deficitária. Em ambas as hipóteses, com enriquecimento ilícito de uma das partes da relação jurídica. E não é difícil constatar que a parte prejudicada, no caso, será, quase que invariavelmente, o credor da Fazenda Pública. Basta ver que, nos últimos quinze anos (1996 a 2010), enquanto a TR (taxa de remuneração da poupança) foi de 55,77%, a inflação foi de 97,85%, de acordo com o IPCA.
Não há como, portanto, deixar de reconhecer a inconstitucionalidade da norma atacada, na medida em que a fixação da remuneração básica da caderneta de poupança como índice de correção monetária dos valores inscritos em precatório implica indevida e intolerável constrição à eficácia da atividade jurisdicional. Uma afronta à garantia da coisa julgada e, por reverberação, ao protoprincípio da separação dos Poderes.[25]
Mais uma vez o princípio da isonomia é afetado no § 6º e § 8º da Emenda sob análise, eis que tais parágrafos ao determinarem que 50 % (cinquenta por cento) dos recursos oriundos do novo regime de parcelamento de débitos decorrentes de precatórios, serão utilizados no pagamento dos precatórios na ordem cronológica, e os 50 % (cinquenta por cento) restantes, mediante outras opções estabelecidas no § 8º, atribuem arbitrariamente aos créditos, critérios abalizados em valores (menor valor), sempre na tentativa de beneficiar a Fazenda Pública.
Tais critérios, além de demonstrarem diferenciação desarrazoada entre os créditos que se encontram em igual condição, demonstram também a imoralidade da Administração Pública ao utilizar-se de meios que privilegiam o desespero dos credores – que há muito esperam pelo recebimento de seus créditos – em receberem o que lhes é devido, tendo que abrirem mão de parte de seu direito, na ânsia de terem sua pretensão inicial satisfeita.
A este respeito, registro o entendimento de MARÇAL JUSTEN FILHO:
Infringe a isonomia a diferenciação entre créditos da Fazenda Pública fundada no critério de valor. Todos os créditos contra a Fazenda Pública merecem a tutela jurídica, no sentido de garantia de sua liquidação pelo valor integral. Tendo o Poder Judiciário reconhecido o montante devido pela Fazenda Pública, não é possível uma norma legislativa determinar que a dívida apenas será liquidada se reduzido o seu valor. Trata-se de uma diferenciação incompatível com a isonomia, tal como já o reconheceu o próprio STF, em julgado assim ementado: “Precatório. Valor real. Distinção de tratamento. A Carta da República homenageia a igualação dos credores. Com ela colide norma no sentido da satisfação total do débito apenas quando situado em certa faixa quantitativa”[26].[27]
Na mesma toada continua o nobre doutrinador:
A EC preconiza a eliminação do critério cronológico e a sua substituição por um “critério de renúncia”. Quanto maior o desconto concedido pelo particular, maior a preferência reservada a ele para receber o pagamento. Sob outro prisma, trata-se da incidência de um critério de vantajosidade, similar ao que norteia as licitações para contratações públicas.
O problema reside em que a EC preconiza tratamento diferenciado entre credores em situação equivalente. Os credores por título judicial passam a ter tratamento diferenciado dos demais credores das entidades públicas.[28]
No tocante ao regime especial de pagamento de precatório, estabelecido pelo art. 97 do ADCT, aos Estados, Distrito Federal e Municípios que se encontrarem em mora no adimplemento dos precatórios vencidos na data da publicação da Emenda 62/2009, dispondo acerca de duas opções de parcelamento dos débitos decorrentes destes, mesmo depois de sentença condenatória transitada em julgado, colide frontalmente com as garantias constitucionais do livre acesso ao Judiciário, da razoável duração do processo, com o princípio do devido processo legal, bem como, com seus corolários, contraditório e ampla defesa.
Tal regime viola ainda o princípio federativo, o direito adquirido e a coisa julgada, elimina a eficácia das decisões judiciais e o efeito vinculante jurisdicional, exclui o princípio da separação de poderes e elimina direitos fundamentais tais como isonomia e dignidade da pessoa humana.
O princípio federativo é violado pela Emenda em comento, ao estabelecer o § 2º, art. 97 do ADCT, que determina percentuais mínimos a serem depositados em conta especial, pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, que optarem pelo regime especial de pagamento de precatórios, tendo por base a receita corrente líquida destes entes. Tal parágrafo, nos dizeres de VALDER DO NASCIMENTO, promoveu a divisão do país em regiões, desconsiderando a autonomia dos entes federados, com a fixação de regras limitantes a estes.
Essa emenda rompe de forma abrupta com o pacto entre as pessoas políticas ao abrir espaço para o surgimento de uma Federação de estrutura unitária, sendo que, se essa possibilidade for admitida, poderá colocar em xeque à autonomia dos Municípios e dos Estados como se estes fossem apenas meros coadjuvantes na formação da República Federativa do Brasil.
(...)
Deduz disso que a Constituição não pode ser modificada ao bel-prazer de interesses meramente circunstanciais, sob pena de incorrer-se no enfraquecimento do pacto federativo, ao fazer prevalecer unicamente à vontade da União, desprezando, assim, a participação dos corpos legislativos estaduais nesse processo de mudança que não atende aos interesses da sociedade. Então, no Brasil, a rigidez que se impõe na formulação de reforma constitucional, acha-se minimizada, porque não contou com a anuência de um dos entes de Federação – os Estados federados – na persecução desse desiderato.[29]
O princípio do direito adquirido, que nas palavras de DE PLÁCIDO E SILVA é “o direito que já se incorporou ao patrimônio da pessoa, já é de sua propriedade, já constituiu um bem, que deve ser juridicamente protegido contra qualquer ataque exterior, que ouse ofendê-lo ou turbá-lo”[30], sofre afronta pela Emenda Constitucional 62/2009, porque esta modifica situações jurídicas pretéritas imodificáveis, suprimindo a segurança jurídica dos fatos jurídicos já concretizados, diga-se, já completados a tempo e modo sob a égide da lei que regia tal fato à época em que efetivado.
Em reforço a tal entendimento, insta trazer à baila o posicionamento esposado por AYRES BRITO e PONTES FILHO:
Em síntese, a norma constitucional veiculadora da intocabilidade do direito adquirido é norma de bloqueio de toda função legislativa pós-constituição. Impõe-se a qualquer dos atos estatais que se integram no “processo legislativo”, sem exclusão.[31]
O princípio da coisa julgada, conceituado no art. 467 do CPC, sendo “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”[32], é contundentemente atingido pelo novo regime de pagamento (parcelamento) dos precatórios, tendo o Judiciário restringida a eficácia de suas decisões, nestes termos a lição de VALDER DO NASCIMENTO:
Há usurpação do ato jurisdicional quando se lhe tolhe os efeitos jurídicos por ele a ser irradiados. Decerto, nítido é o caráter derrogatório da autoridade imanente do ato sentencial, na medida em que o ato administrativo atua como contenção da manifestação decisória do Judiciário. Detecta-se uma interferência indevida na sua atividade típica, mediante procedimento inadequado.
Não cabe ao Executivo alterar a substância da sentença transitada em julgado, nem tampouco alterar a sistemática dos pagamentos dos precatórios dela brotados. O parcelamento do débito ou o depósito em conta especial não coabita com o ordenamento legal. Condenado a Administração Pública, esta deve providenciar o pagamento de suas obrigações determinadas pelo comando judicial.
Nessa hipótese o ato do Executivo retira a força executória do ato judicial, esvazia seu conteúdo e nega supremacia da jurisdição constitucional, desqualificando-a sem amparo na ordem jurídica. Configura seu não cumprimento um desprestígio, uma clara indicação de que no Brasil o calote constitui o ponto central da gestão pública.
Por conseguinte, o que se observa é a modificação da natureza intrínseca do caso passado em julgado. Torna imprestável a relação jurídica declarada pelo Poder Judiciário, descaracterizando o conteúdo substantivo do processo decisório no interior daquele Poder. A manipulação de uma situação definitivamente consolidada põe em risco a autonomia do órgão controlador dos atos legislativos.[33]
Consequentemente, por a Emenda em tela atingir o princípio da coisa julgada, golpeia também o princípio da separação de poderes e suprime o Estado de Direito, sagrando a não obrigatoriedade do cumprimento das decisões judiciais, ou seja, a proscrição do efeito vinculante da jurisdição, conduzindo, nos dizeres de MARÇAL JUSTEN FILHO, a um juízo de conveniência política a ser exercitado pelo Poder Legislativo:
Ora, essa solução equivale à eliminação da separação de poderes, eis que a eficácia da decisão jurisdicional será vinculada a um juízo de conveniência política a ser exercitado pelo Poder Legislativo.
Ainda que a competência de natureza cognitiva do Poder Judiciário não seja afetada, há a desnaturação da função jurisdicional de cunho executório. Ou seja, será mantido o monopólio jurisdicional atinente à função jurisdicional de conhecimento, mas será compartilhada entre o Judiciário e o Legislativo a titularidade da competência jurisdicional de natureza executiva. Caberá ao Poder Judiciário determinar o cumprimento de suas decisões, mas a adoção dos atos materiais efetivos necessários a tanto dependerá de uma avaliação de conveniência do Poder Legislativo.
Trata-se de submeter a eficácia das decisões jurisdicionais a um juízo de conveniência e oportunidade atribuído à titularidade do Poder Legislativo.[34]
No tangente à moralidade, princípio que, em tese, rege a administração pública, continua o festejado Doutrinador:
A EC nº 62 pretende a consagração da imoralidade no relacionamento entre Fazenda Pública e seus credores. Elege o critério da vantajosidade para a liquidação das dívidas de existência e valor inquestionáveis, que já foram objeto de apreciação e decisão jurisdicional.
Estabelece um sistema em que o Estado é legitimado a não pagar as suas dívidas, mesmo em face e depois de expressa condenação judicial.
Para adimplir obrigações válidas e inquestionáveis, o Estado exigirá uma vantagem do seu credor. Cogita-se de estabelecer uma disciplina jurídica impositiva do seguinte dilema ao credor: ou concede uma vantagem à Fazenda Pública ou não recebe o pagamento devido.
Assim, o credor terá trilhado um longo caminho para obter uma decisão judicial. Depois de anos de batalhas jurídicas, haverá uma sentença judicial condenatória do Estado, fixando-se o valor devido ao credor. Mas esse valor não será liquidado porque o Estado é mais poderoso, dispõe de instrumentos outros para furtar-se aos efeitos da condenação. O único meio de impedir que o Estado ignore o conteúdo da condenação judicial é conceder uma vantagem indevida e ofensiva aos padrões éticos.
Essa solução é eticamente reprovável e incompatível com a moral que disciplina o relacionamento entre o Estado e os cidadãos.[35]
Outro ponto de crucial importância que importa ser notado é a infringência da Emenda 62/2009 à premissa constitucional da irretroatividade da lei nova. Tal premissa constitucional tem por escopo a segurança jurídica nos fatos e relações jurídicas estabelecidas outrora, “(...) A constituição reputou que a segurança jurídica exige a preservação dos efeitos jurídicos produzidos antes da vigência da lei nova, quando presentes os requisitos atinentes ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada”[36]. Assim, por a Emenda sob análise criar regime que abarca precatórios já expedidos à época em que lei anterior os regia, está a mesma maculada de inconstitucionalidade.
Nesta arena, o entendimento esposado pelo eminente LUIZ FUX apud MARÇAL JUSTEN FILHO:
(...) todo e qualquer novel diploma de processo e de procedimento deve respeitar o ato jurídico-processual perfeito e os direitos processuais adquiridos e integrados no patrimônio dos sujeitos do processo (...). O mesmo raciocínio impõe-se caso a decisão contemple ao vencedor as custas e honorários e uma nova lei venha extinguir a sucumbência nesta categoria de ações.[37]
Continua o ilustre mestre:
A lei processual – e nisso não difere de nenhuma outra – dispõe para o futuro, respeitando os atos e os “efeitos” dos atos praticados sob a égide da lei revogada. É a consagração do princípio tempus regit actum que não impede que os atos processuais futuros e os fatos com repercussão no processo se subsumam aos novos ditames da lei revogadora. Assim, v.g., se a revelia ocorreu sob o pálio de lei que lhe atribuía como efeito processual impor o julgamento antecipado, o advento de lei nova não retira do autor o direito subjetivo àquele pronunciamento decorrente da inatividade processual do réu.[38]
O mesmo entendimento é o adotado por HUMBERTO THEODORO JÚNIOR apud MARÇAL JUSTEN FILHO, dispondo que a lei nova:
(...) alcança o processo no estado em que se achava no momento de sua entrada em vigor, mas respeita os efeitos dos atos já praticados, que continuam regulados pela lei do tempo em que foram consumados. Se, por exemplo, a lei nova não mais considera título executivo um determinado documento particular, mas se a execução já havia sido proposta ao tempo da lei anterior, a execução forçada terá prosseguimento normal sob o império ainda da norma revogada (...).[39]
Assim, não pode a lei de direito privado, nem a de direito público material, nem a processual transgredir situações já consumadas, configurando dano ao titular.[40]
Em relação a tais afrontas constitucionais perpretadas pelo legislador, conclui-se que devem ser consideradas inconstitucionais, bem como os efeitos de tal declaração retroagirem (ex tunc), com a nulidade de todos os atos emanados da legislação inconstitucional. É o que verbera JOHN MARSHALL, eminente jurista americano:
Entre estas alternativas não há escapatórias – ou a Constituição é a lei superior, fundamental, que não pode ser modificada por meios ordinários, ou ela está no mesmo nível dos atos legislativos ordinários, e, como outros atos, outras leis, é alterável quando o Legislador entender conveniente. Se a primeira parte da alternativa é verdadeira, então, as constituições escritas são tentativas absurdas da parte do povo de limitar o poder, por sua própria natureza ilimitável. Certamente, todos aqueles que elaboram Constituição escrita a encaram como formando a lei fundamental da nação. E, consequentemente, a teoria deste governo deve ser que um ato do Legislativo contrário à Constituição é nulo e de nenhum efeito. Esta teoria é essencialmente ligada à Constituição escrita e é, consequentemente, para ser considerada por esta Corte como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade.[41]
Por fim, assentados vários aspectos que eivam a Emenda Constitucional 62/2009 de vícios de inconstitucionalidade, mister trazer à colação preleção de salutar importância e aclaramento da inconstitucionalidade material da referida Emenda, trecho do voto do Ilustre Ministro Relator da ADI 4.357, Sr. CARLOS AYRES BRITTO, litteris:
44. Pois bem, arguem os autores que a possibilidade de o Poder Público estender por quinze anos a completa execução das sentenças judiciais transitadas em julgado significaria desrespeito às garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário (inciso XXXV do art. 5º da CF); do devido processo legal (inciso LIV do art. 5º da CF); da razoável duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º do CF), além de afrontar a autoridade das decisões judiciais. Mais ainda, a “Emenda [feriu] a própria divisão dos Poderes, posto que partir em até 15 (quinze) anos a indenização significa, antes de tudo, fracionar o pagamento das execuções contra o Estado, tornando a Administração (função executiva) praticamente imune aos comandos do Poder Judiciário, além de transformar o adimplemento de precatórios em mera escolha política dos governantes”. Na mesma violação (ao princípio da separação dos Poderes) incorreria a EC nº 62/2009 ao limitar os valores orçamentários para pagamento de precatórios (§ 2º do art. 97 do ADCT), “haja vista que o contingenciamento de recursos tem por escopo o descumprimento das decisões judiciais”.
45. Outra vez penso assistir razão aos requerentes. Tenho que ambos os “modelos” de regime especial de pagamento de precatórios, instituídos pelo art. 97 do ADCT, foram concebidos com menosprezo à própria ideia central do Estado Democrático de Direito como um regime que faz residir numa vontade normativa superior à do Estado o fundamento da submissão dele, Estado, a deveres e finalidades. E essa vontade normativa superior é a Constituição originária, consagradora, dentre outras cláusulas pétreas, do direito subjetivo de acesso a uma jurisdição eficaz (inciso XXXV do art. 5º). É o que sinonimiza “Estado Democrático de Direito” e “Estado Constitucional”, porque, antes desse Estado Constitucional, o fundamento da submissão do Estado a deveres era a própria vontade normativa dele, Estado. O que significava um precário estado de segurança jurídica para os atores sociais privados e a coletividade como um todo, pois aquele que se autolimita discricionariamente também discricionariamente se autodeslimita a qualquer momento.
46. Ora bem, essa altissonante regra de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” é o que se tem apropriadamente chamado de livre e eficaz acesso às instâncias judiciárias, a se interpretar conjuntamente com a norma da intangibilidade da decisão que resultar, com definitividade, de tais instâncias. Decisões que, assim carimbadas com o selo da irreformabilidade, se tornam imperativas para os sujeitos a quem desaproveitam, neles incluídos o Estado. É a conhecida fórmula de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (inciso XXXVI do art. 5º), dando-se que o substantivo “lei” é de ser lido como “direito-lei”, porque nesse direito-lei se compreende a própria emenda à Constituição, cláusula pétrea que é (§ 4º do art. 60 da CF).
47. Com efeito, sem que se garanta ao particular um meio eficaz de reparação às lesões de seus direitos, notadamente àquelas perpetradas pelo Estado, o princípio em tela não passa de letra morta. E também é óbvio que por meio eficaz há de se entender a prolação e execução de sentença judicial, mediante um devido e célere processo legal.
48. Daqui se desata a ilação de que o art. 97 do ADCT, incluído pela Emenda Constitucional nº 62/2009, acabou por subverter esses valores (Estado de Direito, devido processo legal, livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, razoável duração do processo). Primeiro, por esticar por mais quinze anos o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito em julgado e em desfavor do Poder Público. Cumprimento – acresça-se – que já havia sido prorrogado por um decênio pela Emenda Constitucional nº 30, de 13 de setembro de 2000. Depois disso, pelo sabidamente demorado processo judicial em que o particular vê reconhecido seu direito, a parte vencida simplesmente dispõe de mais quinze anos para cumprir a decisão. E não se diga que esse novo alongamento temporal do perfil da dívida estatal em nada atingiria a efetividade da jurisdição, por ser o precatório um mecanismo de feição administrativa. E assim não se diga porque a execução da sentença judicial e a consequente entrega, a quem de Direito, do bem jurídico objeto da demanda (ou seu correspondente em pecúnia) integra o próprio núcleo da garantia do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário. Doutro modo, a função jurisdicional seria mera atividade lúdica. Não por outro motivo é que a Corte Europeia de Direitos Humanos, já em 19/03/1997, ao julgar o caso Hornsby x Grécia, assentou que “a execução de uma sentença, qualquer que seja o órgão jurisdicional, deve ser considerada como parte integrante do processo”. Pelo que, “se a Administração se recusa ou se omite a executar [a sentença], ou ainda se demora a fazê-lo, as garantias do artigo 6º [da Convenção Europeia de Direitos Humanos], das quais se beneficia o demandante durante a fase judicial do processo, perderiam qualquer razão de ser” (tradução livre).
49. De se ver que o mesmo debate vem sendo encetado nesta nossa Corte de Justiça, no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 2.356 e 2.362, cujo objeto é a Emenda Constitucional nº 30/2000. Com a circunstância agravante de que, no caso dos autos: o primeiro dos “modelos” de regime especial de pagamento de precatórios, a que se refere o inciso I do § 1º do art. 97 do ADCT, não tem prazo para acabar. E não tem prazo para acabar porque “vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos vinculados”, depositados na conta especial (§ 14 do art. 97). Como o montante de recursos a ser depositado na referida conta está limitado a um pequeno percentual da receita corrente líquida da entidade pública devedora, é de se imaginar que a fila de precatórios só aumentará, principalmente porque a dívida acumulada em todos esses anos de ostensivo descaso por parte de algumas unidades da Federação ingressará no regime especial, conforme o § 15 do art. 97 do ADCT. Nesse cenário de caricato surrealismo jurídico, o Estado se coloca muito acima da lei e da Constituição.
50. Com a devida vênia daqueles que entendem diversamente, penso adequada a referência dos autores à Emenda Constitucional nº 62/2009 como a “emenda do calote”. Calote que termina por ferir o princípio da moralidade administrativa, que se lê no caput do art. 37 da Constituição Federal, na medida em que se reconheça – como pessoalmente reconheço – o adimplemento das próprias dívidas como um dos necessários conteúdos do princípio da moralidade administrativa. Noutros termos, o Estado reconhece que não cumpriu, durante anos, as ordens judiciais de pagamento em desfavor do Erário; propõe-se a adimpli-las, mas limitado o valor a um pequeno percentual de sua receita. Com o que efetivamente força os titulares de créditos assim inscritos a levá-los a leilão. Certame em que o objeto a ser “arrematado” é o direito à execução de sentença judicial transitada em julgado! E que tem por “moeda”, exatamente, o perdão de parte desse direito! Pelo que se verifica, de pronto, a inconstitucionalidade do inciso I do § 8º e de todo o § 9º, ambos do art. 97 do ADCT.
51. Melhor sorte não socorre os incisos II e III do § 8º do art. 97 do ADCT. É que, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “o regime constitucional de execução por quantia certa contra o Poder Público – qualquer que seja a natureza do crédito exeqüendo (RTJ 150/337) – impõe a necessária extração de precatório, cujo pagamento deve observar, em obséquio aos princípios ético-jurídicos da moralidade, da impessoalidade e da igualdade, a regra fundamental que outorga preferência apenas a quem dispuser de precedência cronológica (prior in tempore, potior in jure).” Ainda segundo Sua Excelência, “a exigência constitucional pertinente à expedição de precatório – com a conseqüente obrigação imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresentação desse instrumento de requisição judicial de pagamento – tem por finalidade (a) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos (RTJ 108/463), (b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ditadas por razões de caráter político-administrativo” (RE 132.031, julgado em 15/09/1995; Rcl 2.143-AgR, julgada em 12/03/2003). Se é assim, o que se vê dos dispositivos impugnados? A violação àqueles princípios ético-jurídicos da moralidade, da impessoalidade e da igualdade. Isso porque o pagamento de precatórios “em ordem única e crescente de valor” acaba por favorecer, de forma desarrazoada, credores mais recentes, em detrimento de quem já espera há mais tempo pela satisfação de seu crédito. E o que dizer do “acordo direto” constante do inciso III do § 8º do art. 97 do ADCT? Certamente não rima com os princípios da impessoalidade e da moralidade, por tornar fortemente subjetivo o critério de escolha para pagamento de precatórios.
52. Acresça-se a todos esses vícios de inconstitucionalidade o apontado pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) na ADI 4.400: o § 4º do art. 97 do ADCT concede somente aos Tribunais de Justiça locais a administração da conta especial de depósito dos valores para pagamento dos precatórios. Pelo que resulta prejudicada a autonomia dos Tribunais do Trabalho, pois esse ramo especializado da Justiça Federal decairá do poder de, na vigência do regime especial de pagamento de precatórios, ordenar o cumprimento integral de suas decisões condenatórias da Fazenda Pública.
53. Em síntese, neste ponto, o que se tem é dolorosamente isso: todo o regime especial veiculado pelo art. 97 do ADCT é reverente à lógica hedonista de que as dívidas do Estado em face de terceiros hão de ser pagas, em acentuada medida, quando e se o Poder Público desejar. É um segundo passo da caminhada que se iniciou com a Emenda Constitucional nº 30/2000 e que não terá fim enquanto este Supremo Tribunal Federal sucumbir às tão antigas quanto deletérias “razões de Estado”. Razões artificializadas ou indisfarçavelmente falsas, como passo a demonstrar.
54. Nos termos do § 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99, solicitei informações adicionais aos Tribunais de Justiça dos Estados e ao do Distrito Federal e Territórios, aos Tribunais Regionais do Trabalho, às Secretarias de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal e às Secretarias Municipais de Fazenda das Capitais. Minha intenção era conhecer mais a fundo o alegado caos nas contas públicas que, supostamente, impedem os governantes de honrar as dívidas públicas para com os particulares. E de posse de alguns dados dos últimos dez anos (receitas correntes líquidas, pagamento anual de precatórios e estoque da dívida vencida e vincenda), minha conclusão foi a de que, o mais das vezes, não falta dinheiro para o pagamento de precatórios. Em alguns casos, fica até evidente que o montante atual da dívida é resultado da falta de compromisso dos governantes quanto ao cumprimento das decisões judiciais. Ainda que apenas por amostragem, tendo em vista a incompletude de algumas informações e a carência de outras, foi-me possível constatar que:
I – em 2007, o Distrito Federal despendeu R$ 1,7 milhões em precatórios e R$ 103,8 milhões em publicidade e propaganda (os dados sobre publicidade e propaganda foram obtidos nos Pareceres Prévios sobre as contas do Governo, disponíveis na página eletrônica oficial do Tribunal de Contas do Distrito Federal, na rede mundial de computadores). Já em 2008, essas despesas foram de R$ 6,57 milhões em precatórios e de R$ 152,8 milhões em publicidade e propaganda. A despesa com publicidade e propaganda registrou um aumento de 47,6% entre 2007 e 2008, já considerada a variação média pelo IPCA. Flagrante desproporção que fica ainda mais patente diante de uma dívida total de mais de R$ 2,4 bilhões, apurada em 2009;
II – o Estado do Espírito Santo responde por uma uma dívida judicial de R$ 9,54 bilhões, aproximadamente. No entanto, nada pagou em precatórios nos últimos dez anos, à exceção de uma liquidação de R$ 2,5 milhões em 2004, mesmo assim mediante acordo levado a efeito por iniciativa judicial. Esse valor corresponde a ínfimos 0,033% da receita corrente líquida do Estado no exercício 2009. Receita corrente líquida que alcançou a cifra de R$ 7,5 bilhões. Ajunto: mesmo que se adote a sistemática de reserva de 1,5% da RCL, prevista na emenda constitucional objeto desta ação direta, o Espírito Santo levará 85 anos para quitar seus precatórios, desconsideradas as novas obrigações que surgirem por força de sentença judicial. Situação vexatória para a qual certamente não contribuíram os credores;
III – a dívida do Rio Grande do Sul é de R$ 1,6 bilhões, em valores aproximados. Contudo, seus gastos com precatórios em 2009 foram de R$ 38,6 milhões, embora suas despesas com publicidade e propaganda hajam alcançado montante superior a R$ 55 milhões (os dados de publicidade e propaganda foram extraídos do Parecer Prévio da contas do Governo gaúcho, na página oficial do Tribunal de Contas daquele Estado, na rede mundial de computadores). Tudo num contexto de absoluta inversão de prioridades, na medida em que o Município de Porto Alegre quitou precatórios, em 2008, no valor de R$ 10,4 milhões, quase o dobro do que pagou o Estado gaúcho no mesmo exercício: R$ 5,4 milhões;
IV – o Município de João Pessoa nada pagou em precatórios vinculados ao Tribunal de Justiça da Paraíba nos últimos dez anos, apesar de sua dívida judicial ultrapassar R$ 24 milhões;
V – o Estado de Pernambuco nada pagou, em 2008 e 2009, de seus débitos judiciais, que já superam a casa dos R$ 136 milhões. Grande parte da dívida se originou nesse período.
55. Como se vê, e já me encaminhando para o final deste voto, o cenário de colapso financeiro do Estado não parece verdadeiro, ao menos na extensão em que se alardeia. O pagamento de precatórios não se contrapõe, de forma inconciliável, à prestação de serviços públicos. E mesmo que fosse real o propalado caos financeiro-administrativo nos Estados e Municípios brasileiros, poder-se-iam adotar outras medidas menos prejudiciais ao direito fundamental dos credores. Uma delas, inclusive, está no novo § 16 do art. 100 da Constituição Federal, segundo o qual, “a seu critério exclusivo e na forma da lei, a União poderá assumir débitos oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-os diretamente”. Donde nos ser autorizado concluir que impor aos credores a sobrecarga do novo alongamento temporal do perfil das dívidas estatais em causa, inclusive mediante leilões, deságios e outros embaraços para os credores, configura atentado à lógica elementar da razoabilidade e da proporcionalidade.[42]
Assim, o julgamento pela total procedência da ADI 4.357/DF mostra-se imprescindível ao restabelecimento do constitucionalismo no Estado brasileiro, bem como, da moralidade entre as relações do Estado com os cidadãos, que, diga-se de passagem, não consubstanciam-se em meros coadjuvantes do processo político.