REFLETINDO PELA ROTA AONDE O VENTO SOPRA (III)
"O pluralismo constitui o conceito-chave do pós-modernismo jurídico... concepção de diferentes espaços jurídicos sobrepostos, que se interpenetram e misturam tanto na nossa consciência como na nossa acção, em ocasiões positivas ou negativas do nosso trajecto existencial, assim como na triste rotina da vida cotidiana. Vivemos num tempo de legalidade porosa ou porosidade jurídica de uma rede múltipla de ordens jurídicas que nos condenam a constantes transições e passagens. A nossa vida jurídica é constituída pela intersecção de diferentes ordens jurídicas, ou seja, pela interlegalidade" (citação de Boaventura de Souza Santos, em "O direito como sistema autopoiético", Günther Teubner, p. 216/217)
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A inadaptação do Direito e de seus paradigmas científicos basilares ao mapeamento social pós-moderno do Império é o reflexo da diferenciação funcional e comunicacional da sociedade, fruto da sobrepujança da sistemática econômica global a instilar a anatomia e a fisiologia da arquitetura dos novos comportamentos humanos, então, econopolitizados sob a linguagem da hibridização e do estilo anti-universalista – sobrepujança da soberania da produção cibernética e intelectual e soberania estatal e unicidade jurídica.
O Direito tradicional e seus subterfúgios de se socializar para manter sua centralidade e exclusividade, dentro de uma coerência lógica interna, são caminhos sem retorno, guinados à falência perante a relativização de um poder estatal para gerir tal empreendimento e ao declive de sua legitimidade diante do quadro de ingovernabilidade sistêmica simplicados na contenda legitimidade x legalidade e vigência x eficácia ao lado de um fortalecimento micro-corporativista social, político, econômico e jurídico sistêmico – sistemas autopoiéticos que se auto-reproduzem e se fortalecem, em elemento e estrutura, de acordo com sua referencialidade, tenaz e imprevisível à conjuntura das pressões concorrenciais de um capitalismo desorganizado que se intercruzam e se sobrepõem em rotina agonística.
A temática da rematerialização do direito, da tomada de uma roupagem intervencionista e condutora a ser reafirmada na pós-modernidade, é uma falácia. A ciência do Direito quer dirimir a questão-problema em tela, com velhos prognósticos e diagnósticos à aplicação de patologia social de geração distinta destes. Em miúdos, se perpetua a linguagem da unidade e completude para a comunicação com multi-pólos dotados de multi-linguagens e soberanias autônomas para gerir seus destinos próprios à criação de antídotos e eventuais perturbações sistêmicas internas ou, dependendo do grau de interação, também, sistêmicas externas (=sistemas autopoiéticos).
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A sociedade pós-moderna não é um todo homogêneo hierarquizado a comando de um Estado soberano gestor de todas as áreas sociais do monde vécu, especialmente a economia, a reclamar um Direito heterarquizado. Esta se formula, sob o aspecto macro-sociológico, em uma rede difusa de sistemas fechados operativamente (autopoiéticos) e abertos cognitivamente a medida em que interagem com os demais, a partir de seletas comunicações uns com os outros realizadas num movimento circular e contraditório, onde sob o alvedrio da álea econômica da especialização flexível e seu regime de cooperação e interdependência, se torna praticamente impossível a previsibilidade racional e cálculos de riscos sociais, que o direito tradicional pretende compensar à oferta – sociedade informacional, heterarquizado, em resposta, o direito reflexivo à conjuntura semiótica.
Para ultrapassar o paradoxo do conflito de gerações – direito positivo e sociedade diferenciada – resultante na práxis no trilema regulatório já esposado -, a ciência jurídica deve primar pelo abandono de cunho purista ou incrementalista de relação direito-sociedade sob a deôntica da causalidade linear e biunívoca a colonizar contextos sociais já re-mapeados pelo mito da globalização econômica, graças a sua apreensão simbólica no imaginário da pós-modernidade.
A aceitação empírica e metodológica do Direito como mais um sistema em translação na racionalidade conjuntural do Império é um passo para a construção teorética do Direito na pós-modernidade, estendendo à tal compreensão a sua nova postura nesta órbita, qual seja, como a ordem que garanta a comunicação entre os múltiplos sistemas autopoiéticos, para que o egocentrismo concorrencial de um em relação aos outros, não se sobreponha de tal forma a tangenciar o regime de interdependência e cooperação informacional holístico, o que levaria a complexidade do colapso funcional – este é o papel do Direito pós-moderno, garantir "secundum eventum litis" a comunicação lingüística inter-sistemas. Esta é a sua nova calculabilidade e exclusividade atuantes.
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O Direito na pós-modernidade, então, sob a égide da nova calcubilidade e exclusividade atuantes se re-postura a partir de uma linguagem material jurídica mais distante do mecanismo da concretude contigencial, voltada à primazia de regular o todo em tela, mas sem adentrar as especificidades de cada micro-sistema, como outrora – apenas uma eleição de comandos jurídicos menos idealistas. Limitando-se então a gerenciar a comunicação sistêmica através de um equilíbrio horizontal entre as micro-esferas auto-reprodutoras e auto-linfáticas, no âmbito concorrencial do cosmopolitismo temporário e mutável.
E, sob a égide da estrutura, possuindo uma linguagem jurídica mais indireta ao fator regulação, se põe à reflexividade, isto é, sendo o fenômeno jurídico, fenômeno social, este a medida que for selecionado a atuar, na flagrância da conjuntura mesma, desencadeia um processo de auto-descrição de como agir que, resultado do meio envolvente a regular (semiose) somada a sua referencialidade própria operacional e processual, é capaz de se flexibilizar a contento, fabricando a solução desejada à matéria a ser conciliada ou adjudicada – o direito na pós-modernidade não é coercitivo em proponderância, mas persuasivo. A sua atuação depende da seletividade lingüística de um sistema em relação e este que, escolha se comunicar com o mesmo.
Sem mais, a ciência jurídica, no quadro das ciências humanas, para encarnar a esperança da reconstrução de nova linguagem afeita a novas categorias sócio-produtivas do Império, deve abandonar os seus conceitos de racionalidade formal-legal e os resquícios da edificação da mentalidade incrementalista do Direito, passando em suas diversas facetas operacionalizantes, a uma comunidade interpretativa cônscia com a flexibilidade temporal, espacial e temática da descentração dos conceitos semióticos sociais.
Interpretativa
no sentido de saber refletir e selecionar modos de interação e comunicação com as plúrimas redes flexíveis de jogos de linguagem global, garantindo a coexistência entre os sistemas que as comportam em situações de hipotéticos egocentrismo emergentes e, em contrapartida, nesta reposturação garantir sua própria existência e, não mais o passado da velha manutenção da garantia da autonomia.30
Interpretativa no sentido de permanecer participativa, concebendo a sociedade global num contexto altamente estratificado e complexo, no qual a nova faceta jurídica será processualizar ou procedimentalizar as comunicações mutuamente inteligíveis no mais alto grau de reflexividade ou autoconsciência, com respeito aos variados descentros de valores íntimos de cada sistema e sub-sistema social: nada de leis científicas universalizantes, mas leis que ditem as formas de garantia de costumes e práticas locais frente a coexistência dos demais sistemas interativos. Nada de legisladores centralizados,
mas intérpretes das culturas descentradas, num esboço plúrimo de uma nova sociedade de signos e espaços, ao sabor das imprevisíveis novas possibilidades de relações sociais em uma larga variedade de esferas sócio-semióticas.
Em conclusão, um truísmo inconteste acerca da reflexividade do Direito na pós-modernidade:
"A Justiça, de fato, não é o navio, mas sim a mão que guia o navio por sua rota; e, naturalmente vai aonde sopra o vento" (Antônio Negri, em "MAIS", Folha de São Paulo, 24.09.2000)
NOTAS
1 "Império", trata-se da etimologia atribuída por Michael Hardt e Antônio Negri, em obra conjunta, "Empire", retirada do suplemento "MAIS", do jornal "Folha de S. Paulo", 20.09.00, p. 7/8. "... o Império é a Constituição do mercado global, entendem-se duas
2.SICHES, Récasens. Tratado de Sociologia. São Paulo: Malheiros. Vol. 2, 1978, p. 519.
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