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Comissões de conciliação prévia e acesso à justiça

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6. A Comissão de Conciliação Prévia como mecanismo de acesso à justiça.

A questão do acesso à justiça como aqui concebido ultrapassa o ideário de acesso ao Judiciário, concepção ligada à dependência da solução estatal dos conflitos. As Comissões surgem justamente para proporcionar aos envolvidos no conflito que alcancem a justiça, apliquem do Direito e atinjam uma solução pacificadora para aquela demanda. Nesse sentido:

O acesso aos direitos depende do funcionamento do Estado e da Sociedade Civil organizada. Assim, garantir o acesso aos direitos é assegurar que os cidadãos, especialmente os socialmente mais vulneráveis, conheçam seus direitos, não se conformem frente a sua lesão e tenham condições de vencer os custos da oportunidade das barreiras econômicas, sociais e culturais para aceder à entidade que consideram mais adequada para a solução do litígio, seja uma terceira parte da comunidade, uma instancia formal não judicial ou os Tribunais Judiciais.[17]

A criação deste mecanismo extrajudicial, portanto, pretendeu transferir também à sociedade o seu papel de harmonização da vida em coletividade; é dizer, conferiu aos atores do conflito o protagonismo na sua solução. O próprio Estado busca, ao conclamar os envolvidos, a solução do conflito o que se revela  como “um interesse público ostensivo, pois o dissídio trabalhista se caracteriza por uma intensa carga de tensão social, potenciada pela própria existência da ação.”[18]

Essa participação dos envolvidos no conflito para a busca da solução não é estranha ao Direito do Trabalho, pois sua presença já se mostrava fundamental nas relações coletivas anteriormente. Isso porque nos conflitos coletivos o Estado tem retraído a sua participação com a conseqüente valorização das negociações coletivas. Comenta João de Lima Teixeira Filho:

Afortunadamente, essa onipresença estatal do passado tem se esvanecido de forma progressiva, em especial a partir da Constituição Federal de 1988. À medida que a negociação coletiva se firma como o fórum mais qualificado para a composição dos conflitos trabalhistas, a intervenção estatal, num regime democrático e participativo (Preâmbulo da CF), estanca para, em seguida, tender à proclividade, proporcionalmente ao avanço do processo autocompositivo.[19]

Essa concepção mais ampla do acesso à justiça encontra inspiração na obra do jurista Mauro Cappelletti, para quem se podem identificar três ondas renovatórias de acesso à justiça e igualdade, ou seja, três movimentos de reforma para ampliação do acesso à justiça. A primeira onda seria a assistência judiciária aos pobres, ou seja, visou atacar o problema econômico do custo associado ao acesso à Justiça, com o custeio pelo Estado dos gastos associados à assistência dos advogados. O segundo movimento de reforma proposto pela doutrina cappelletiana seria a coletivização das demandas, tutelando interesses transindividuais. A terceira onda, e mais importante para o nosso estudo privilegia justamente o diálogo e visa combater a excessiva judicialização dos conflitos. Comenta Fernando de Castro Fontainha essa terceira onda:

A justiça não mais é de monopólio estatal. E de fato nunca fora. A terceira onda nos faz distinguir exatamente que não somente através da jurisdição – esta, de monopólio estatal – se realiza a justiça. O Direito e os juristas hão de reconhecer este presente fenômeno simplesmente é desdobramento da realidade, e que a maioria dos litígios existentes no seio da sociedade não se resolvem nos tribunais.[20]

Sob a mesma inspiração, Ricardo Castilho nos ensina que há hoje uma significativa mudança na concepção acerca do acesso à justiça, que deixa de ser simplesmente concebida como acesso à jurisdição, para ampliar esse significado pela busca por uma ordem jurídica justa, com acesso igualitário, geral e efetivo.[21]

As Comissões, portanto atuam como complemento à atividade jurisdicional, sendo um mecanismo sem custos para o trabalhador e de custo reduzido aos empregadores, que conta com um célere processamento na busca por uma solução, alcançando, com isso o acesso à justiça, com a satisfação dos litigantes.

A par deste acesso, o acordo firmado na Comissão certamente conduz a um sentimento de satisfação das partes, que reconciliadas, atingem um maior contentamento comparativamente ao exercício da jurisdição. Além disso, a possibilidade de cumprimento espontâneo da solução construída pelo litigante devedor será maior caso esse se sinta parte da solução e tenha firmado seu compromisso pessoal em obedecê-la.

Sabe-se que a própria propositura da demanda perante o Poder Judiciário leva ao acirramento de ânimos entre as partes, que passam a ver-se enquanto inimigas, afastando-as de um entendimento direto e amigável.


7. Críticas ao modelo das Comissões de Conciliação Prévia

Apesar do modelo concebido quando da criação das Comissões de Conciliação Prévia ter primado justamente pela facilidade de acesso à justiça, não faltaram críticas negativas ao mecanismo, desde o seu nascimento, passando pela sua atuação, apontando-se principalmente os seus desvirtuamentos decorrente de práticas abusivas. Assim, pode apontar-se como principais problemas das Comissões tanto questões relativas à sua regulamentação normativa quanto razões ligadas ao cotidiano de sua atuação.

As críticas dirigidas à própria concepção das Comissões ligam-se principalmente à noção de hipossuficiência do empregado revelada no momento da tentativa de conciliação. Esta fragilidade do empregado teria sido deixada de lado quando da concepção das Comissões, segundo defendem os críticos, posição com  a qual não se concorda. Isso porque o estabelecimento da composição paritária, da representação dos empregados mediante escolha democrática de seus pares, bem como a garantia de emprego de tais representantes revela justamente esta preocupação da legislação em manter, ao lado do empregado, um representante de seu interesse. Ademais, como já dito, à Comissão não cabe investigar, realizar a produção de provas e dizer o Direito, de modo que ao tentar aproximar as partes de um acordo não realiza qualquer atividade tendente em favor de uma das partes somente.

Outra crítica reiterada ao mecanismo das Comissões é justamente a obrigatoriedade de submissão de qualquer demanda à sua prévia tentativa de conciliação, sendo permitido, somente após isso, o ajuizamento da demanda, norma que seria inconstitucional face ao art. 5º da CF/88, inciso XXXV, que trata da inafastabilidade do Poder Judiciário.

Sobre a questão, em 2009, o Supremo Tribunal Federal apreciou duas medidas cautelares em ações diretas de inconstitucionalidade propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e pelo Partido Comunista do Brasil, Partido Socialista Brasileiro, Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista, que questionavam o artigo 625 – D introduzido pela lei 9.958/2000, para lhe dar, por maioria, interpretação conforme à Constituição e afastar a obrigatoriedade de submissão prévia às Comissões das demandas trabalhistas.

Entendeu-se que o mecanismo criava obstáculo condicionante à apreciação da demanda pelo Poder Judiciário e principalmente que a norma questionada violava a liberdade de submissão de lides pelos cidadãos a tal poder. Na ocasião a questão foi também apreciada sob o viés da desnecessidade de esgotamento da instância administrativa, nos termos do texto constitucional. Entendeu-se, portanto haver injustificado obstáculo no acesso à justiça.

Como exposto, já firmado o entendimento que acesso à justiça não se confunde necessariamente com acesso ao Judiciário. As Comissões foram concebidas, segundo aqui se defende, justamente como um mecanismo de acesso à justiça, considerada esta em seu sentido mais amplo e abrangente, tendo havido uma inversão de tal argumento justamente para considerar a inconstitucionalidade do artigo mencionado.

A mera exigência de prévio encontro para tentativa de negociação de uma conciliação, dando às partes a oportunidade de solucionar um conflito criado no âmbito da sua própria relação revelou o intuito de democratizar o diálogo. Não se pode afirmar que o acesso à justiça signifique que toda qualquer demanda deva ser submetida à solução jurisdicional, sob pena de dar-se precedência ao Estado na solução dos conflitos ao mesmo tempo em que se sabe que o modelo de judicialização de demandas cria inúmeros outros problemas na sociedade. Exemplificadamente citem-se os custos excessivos de manutenção de um aparato com este fim, cada vez mais numeroso, mas, mais importante ainda do que tal argumento econômico, os custos sociais de um processo judicial burocrático, formalista, lento e, muita vezes ineficaz.

As Comissões não representam sequer um retardamento excessivo na propositura da demanda, pois, como já exposto, estas devem propor a conciliação no prazo exíguo de 10 dias. A praxe judicial demonstra que são raros aqueles casos em que o trabalhador ingressa em Juízo em prazo tão curto após o surgimento do conflito, por exemplo, com a sua despedida.

De fato, a decisão liminar do Supremo Tribunal Federal enfraqueceu parcialmente o instituto da conciliação extrajudicial, pois, as partes agora não precisam mais obrigatoriamente se encontrar para amigavelmente tentar conciliar, encontrando-se somente após a propositura da demanda, onde os ânimos acirrados muitas vezes dificultam e impedem o alcance da solução negociada da lide.

A visão estreita do acesso à justiça, como acesso ao Judiciário impede a observação das vantagens psicológicas e sociais que podem advir da conciliação extrajudicial, pois o interessado vincula-se pessoalmente à solução da demanda, contribuindo para a sua construção, o que, sem dúvida, jamais pode ser alcançado com a imposição da decisão por um terceiro, caso do exercício da jurisdição.

Além disso, as partes não são obrigadas a conciliar, não estão sujeitas a qualquer penalidade se isso não ocorrer, nem sofrem prejuízos ao comparecer a uma sessão perante a Comissão de Conciliação Prévia. O trabalhador, ao submeter a sua demanda, não está obrigado sequer a efetivamente negociar ou propor uma solução, muito menos a se sujeitar a uma conciliação desfavorável.

O que o STF criou, com a decisão mencionada, foi uma opção aos envolvidos numa demanda trabalhista que não mais se obrigam necessariamente à técnica extrajudicial. Essa alternativa de ingresso da demanda perante as Comissões foi, portanto, preservada cabendo hoje ao envolvido no conflito submeter ou não a sua lide a tal negociação. Não houve declaração de inconstitucionalidade, mas sim, interpretação conforme à Constituição, preservando a norma legal e somente vedando interpretações dissonantes daquela estabelecida no julgamento liminar.

Esse posicionamento reconheceu indiretamente que a tentativa de mudança radical na cultura brasileira de judicialização dos conflitos tende ao fracasso. A imposição acabou criando verdadeira aversão ao mecanismo, duramente criticado até mesmo por sindicatos de trabalhadores. A mudança, como comenta Renato de Magalhães Dantas Neto para guardar maior efetividade na sociedade, não pode ser imposta:

Portanto, o primeiro passo para a conquista de uma mudança cultural, com a finalidade de fazer com que a sociedade tenha um determinado comportamento almejando, inclusive com a legitimação da conduta, decorre de uma legislação que contenha um caráter promocional, bem ao contrário do que aconteceu com a Lei 9.958/2000, a qual, no seu aspecto global, foi traduzida pela população como uma imposição ou obstaculização ao acesso ao Judiciário.[22]

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Nesse passo, o STF deu vazão ao sentimento de aversão dos envolvidos em um conflito individual na relação de trabalho à idéia de submeter-se extrajudicialmente a uma sessão de negociação obrigatória, mantendo o instituto como uma opção, ou seja, valorizando a submissão voluntária ao mecanismo.

Ao lado das críticas às próprias normas da CLT, crescem denúncias acerca da atuação abusiva das Comissões de Conciliação Prévia. As práticas apontadas vão desde a cobrança de taxas do obreiro, como a criação de um ambiente com cenário oficial com vistas a ludibriar trabalhadores incautos que julgam estar perante um órgão integrante do próprio Poder Judiciário, as sonegações de contribuições previdenciárias e de imposto de renda e a homologação de transações de direitos incontroversos para alcance apenas da eficácia liberatória geral a que se refere o art. 625-E da CLT.

De fato, a realidade é frutífera e vai além daquele ambiente imaginado pelo legislador, dando azo a fraudes e condutas abusivas lamentáveis e que devem ser combatidas a todo custo. A permanecer tais distorções jamais serão alcançados os objetivos buscados de alcance de ordem jurídica justa.

As distorções, entretanto, podem e devem ser combatidas e eliminadas. Com essa preocupação, no ano de 2002, o Ministério do Trabalho e Emprego editou a Portaria n. 329 que proibiu a transação referente ao FGTS e à multa de 40%, bem como limitou a conciliação a direitos ou parcelas controversas.

Outro ponto fundamental de tal Portaria foi o de impedir expressamente que as Comissões atuem como órgãos de assistência às rescisões contratuais, afinal, não se destinam a tal escopo. Além disso, ficou facultado à parte que comparece à Comissão ser acompanhada de pessoa de sua confiança e escolha ao comparecer à sessão.

Junto a isso, o próprio Tribunal Superior do Trabalho firmou um compromisso, em conjunto com o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, CGT, Força Sindical e diversas outros entes representativos de trabalhadores e empregadores prevendo basicamente a capacitação dos conciliadores, especialmente no que diz respeito ao esclarecimento das partes quanto à facultatividade da transação proposta e a não integração da Comissão ao Poder Judiciário; a gratuidade absoluta para os trabalhadores; o encaminhamento de denúncias de práticas desviantes ao Ministério Público do Trabalho, dentre outras medidas.

Os ataques às Comissões de Conciliação Prévia foram tantos e tão incisivos que se chegou mesmo a cogitar a sua própria extinção. A medida radical encontrou ressonância principalmente entre aqueles que ainda acreditam que os conflitos devem ser solucionados somente por meio da jurisdição e que qualquer outra forma de solução equivale à negação do acesso à justiça.

Vale aqui, em contraponto a tal posicionamento, a opinião de Georgenor de Sousa Franco Filho:

Falar em extinguir as Comissões de Conciliação Prévia, criadas pela Lei n. 9.958, de 12 de janeiro de 2000, é, no meu entendimento, um retrocesso. Muito antes de extingui-las, é preciso criar formas para o seu fortalecimento e meios para o seu adequado funcionamento. A concepção dessas Comissões foi boa. Sua implementação, no entanto, tem sido, no geral, equivocada. Ao invés de promoverem a composição dos conflitos em seus diversos âmbitos de atuação, algumas têm se prestado mais como fonte de arrecadação, sobretudo para entidades sindicais que não se encontram devidamente engajadas no sentido de promover a melhoria dos integrantes da respectiva categoria.

As formas extrajudiciais para a solução dos conflitos, quer coletivos, quer individuais, heterônoma (como a arbitragem) ou autonomamente existentes (como a conciliação direta), são os meios mais indicados para encontrar uma resposta pacificadora. Os próprios interlocutores buscam os meios que precisam, eliminam as divergências existentes e encontram a paz que deve existir entre ambos.[23]

As Comissões, por serem um importante instrumento de solução extrajudicial dos conflitos devem ser, portanto, fortalecidas. Para isso, a valorização da participação dos sindicatos de classe é medida que se impõe.

O já combalido movimento sindical no ordenamento brasileiro, sofreu, para Márcio Túlio Viana, novo golpe de enfraquecimento com a criação das Comissões. Esse autor, portanto, também revela a sua preocupação com o fortalecimento deste movimento:

Como se sabe, o objetivo básico dos sindicatos, historicamente, é reduzir as taxas de exploração. Para isso, têm eles lutado em duas frentes principais. De um lado, criando a norma, seja diretamente, nas convenções e nos acordos coletivos, seja indiretamente, pressionando o legislador. De outro, aumentando a sua efetividade.

Pois bem. As comissões podem vir a se tornar uma espécie de Cavalo de Tróia. Ao invés de servirem aos sindicatos, abrindo-lhes um novo espaço político, podem deles se servir para legitimar a desconstrução individual de direitos conquistados coletivamente. Com isso, os próprios sindicatos estarão se deslegitimando e se desconstruindo.[24]

O mecanismo inaugurado pelas Comissões, inédito em sua forma de solução extrajudicial para os dissídios individuais no Brasil não deve ser abandonado diante dos problemas que surgiram no seu cotidiano. As desvirtuações que se constatam servem para o aperfeiçoamento do mecanismo. O combate a tais fraudes deve ser realizado não só pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, como também pelo Ministério Público do Trabalho, órgão sempre vigilante e aberto a denúncias, com o ajuizamento de ações civis públicas nas quais até mesmo a dissolução judicial das Comissões pode vir a ser pleiteada.

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Sobre a autora
Priscila Cunha Lima de Menezes

Juíza do Trabalho Substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Pós graduada em Direito Constitucional do Trabalho. Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Priscila Cunha Lima. Comissões de conciliação prévia e acesso à justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3546, 17 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23936. Acesso em: 25 abr. 2024.

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