INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta algumas reflexões a respeito do Princípio Constitucional do Contraditório. Inicialmente, apresenta-se um histórico sobre o referido Princípio. Em seguida, expõem-se alguns conceitos fornecidos pela doutrina brasileira, bem como algumas considerações a respeito de sua aplicação e de sua função.
I – HISTÓRICO
Como o Direito é um fenômeno social, nenhum trabalho jurídico pode passar ao largo de uma retrospectiva histórica do instituto abordado, ainda que breve.
Quanto ao Princípio do Contraditório, importa mencionar o procedimento denominado cognitio, ainda na Roma primitiva. Tal instituto era uma rudimentar forma de ação penal, em que não havia uma seqüência regular de atos a praticar. Podia o julgador iniciá-lo de ofício, bem como abandoná-lo a qualquer tempo, ou mesmo retomá-lo posteriormente. Desta sorte, era impossível uma absolvição definitiva do acusado, que jamais se veria livre da possibilidade de ter contra si intentado novo processo. O interrogatório era tido como um dever ao qual o acusado não podia se furtar.
Posteriormente, a Lei das Doze Tábuas disciplinou que o acusado deveria ser formalmente chamado a juízo (in jus vocatio), dando-se-lhe ciência da imputação formulada, bem como facultando-lhe a defesa.
Noticia-se que na Idade Média estabeleceu-se que a ausência de citação provocava a nulidade do processo e da condenação a ele correspondente. Dispositivo similar se encontrava expressamente consignado nas Ordenações Filipinas e Manuelinas, em Portugal.
No Brasil, já o Regulamento 737 previa em seus artigos 672 e 673, que a citação era um dos atos essenciais ao processo, e que sua ausência desencadeava nulidade insanável. Os códigos de processo estaduais, mais tecnicamente, também cominavam a pena de nulidade em tais hipóteses, a não ser que o acusado espontaneamente comparecesse e aduzisse sua defesa. Nesse sentido se pronunciavam os códigos paulista (art. 201), pernambucano (art. 200), mineiro (art. 125), catarinense (art. 576), carioca (art. 1150) e do Distrito Federal (art. 89).
Quanto à nossa história constitucional anterior a 1988, nota-se uma sensível tendência à consagração expressa do direito ao contraditório no processo penal. Desta sorte, os aplicadores do Direito se viam jungidos a expender considerável esforço hermenêutico para estender a aplicabilidade do instituto ao processo civil.
II – CONCEITO
Tratando-se dos contornos conceituais do Princípio do Contraditório, verifica-se uma tendência de enfatizar a importância da participação das partes na formação do convencimento do juiz. Nesse sentido, Carlos Eduardo Ferraz de Mattos Barroso aponta que o conteúdo do Princípio é a “oportunidade de participação das partes na formação do convencimento do juiz que prolatará a sentença”[1]. Analogamente, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, mencionam que “o princípio da audiência bilateral encontra expressão no brocardo romano audiatur et altera pars”[2]. Ainda deve ser mencionado que, segundo José Maria Rosa Tesheiner, “o contraditório se concentra na expressão audiatur et altera pars (ouça-se também a outra parte), o que importa em dar-se ao processo uma estrutura dialética”[3].
José Manoel de Arruda Alvim Netto adverte que, atualmente, têm-se por atendidas as exigências do princípio se for dada à parte a oportunidade de se manifestar sobre o ato desfavorável. Assim, despicienda, no processo civil, o comparecimento efetivo do interessado. Desta forma:
“princípio da bilateralidade da audiência (...), a razão de ser da audiência do réu objetiva que o pedido formulado pelo autor seja contraditado, isto é, que o réu, ciente do mesmo, exponha os motivos em decorrência dos quais entenda que ao autor não assiste razão; (...) a fisionomia do princípio reduziu o contraditório à comunicação idônea do pedido, não mais se entendendo como obrigatória a presença do réu...”[4].
Cândido Rangel Dinamarco destaca que deve ser dada oportunidade de reação aos atos desfavoráveis à parte, provenham eles de seu adversário ou do órgão judicial[5]. Linhas antes, rechaça a idéia de que a exigência constitucional do contraditório não implica em dizer que haja participação no processo decisório. Em seu sentir, tal posicionamento é incompatível com a institucionalização do poder nas mãos do Estado. São as suas palavras:
“enquanto se pensa no poder institucionalizado em algum ´pólo de poder´ (especificamente no Estado), é inadequada a tentativa de conceituá-lo em torno da idéia de participação no processo decisório”[6].
III – EXTENSÃO
Fixadas as linhas conceituais, importa analisar a aplicabilidade do Princípio do Contraditório situações processuais limítrofes à sua mitigação.
Como regra geral, o intérprete deve se nortear pela inadmissibilidade de exceções à aplicabilidade do Princípio. Tal orientação decorre diretamente do texto constitucional, que não menciona qualquer restrição.
Em decorrência desta orientação fundamental, deve ser observado o princípio do contraditório tanto nos processos judiciais (desde que haja lide), aí incluídas as execuções, quanto nos processos administrativos. Quanto a estes, há entendimento de que o conceito se estende até àqueles não-punitivos[7].
Fala-se que o Princípio é mitigado naquelas hipóteses legais em que o provimento judicial atinge a parte antes de sua manifestação sobre o pedido formulado pelo adversário. No entanto, o que ocorre é simplesmente a postergação da participação do sujeito processual, o que se convencionou chamar “contraditório diferido”.
É de se entender que algumas garantias processuais são implicações lógica e diretamente derivadas do Contraditório. Embora alguns as mencionem como regras autônomas, não se distanciam de proposições sintéticas, destinadas a resolver questões em que a participação dos sujeitos processuais se veria constantemente prejudicada.
Desta forma, diferentemente da arcaica idéia de que a parte não pode se eximir de colaborar com a elucidação da verdade, o interrogatório consiste em direito fundamental da parte. Não se trata de obrigação do réu, mas de instrumento de autodefesa.
No mesmo sentido, é direito das partes tomar ciência dos atos processuais. Tal garantia já foi enunciada sob a forma de Princípio da Publicidade. Contudo, jamais se afastou a sua função instrumental em relação ao Contraditório. Obviamente, não passaria de mera alegoria sem cor a oportunidade de manifestação da parte se ela não conhecesse os atos sobre os quais deveria se manifestar, ou mesmo que era chegado o momento processual para tanto. Assim, a publicidade dos atos processuais é decorrência lógica e exigência sistêmica para que se aperfeiçoe o Princípio do Contraditório.
IV – FUNÇÃO
O cerne do Princípio do Contraditório é a sua função legitimadora da atuação processual. Contudo, tal circunstância parece ainda não ter sido detalhada pela maior parte da doutrina.
Inicialmente, deve-se extremar os atos de vontade, que vinculam apenas aqueles que a emanaram, dos atos de poder. Como estes dispensam a concorrência da vontade do sujeito passivo da obrigação, o seu fundamento não pode ser o mero consentimento destes. Dessa forma, o contraditório processualmente aperfeiçoado, garante que o provimento judicial seja legítimo, porque produto da comunhão dos esforços das partes (embora conflitantes).
O conceito atualmente atribuído ao processo está indissoluvelmente ligado ao Princípio aqui tratado: diz-se que o processo é o procedimento realizado sob o crivo do contraditório. Desta sorte, chega-se a afirmar que o limite da legalidade do procedimento é a integridade do contraditório. Assim, ainda que haja irregularidade processual, não há cerceamento de defesa da parte, caso a garantia de participação permaneça ilesa[8].
Pondera-se ainda que não haveria como emprestar qualquer nuance de legitimidade ao procedimento que prescindisse da participação do indivíduo. Nesse sentido, se o procedimento regular é nota de legitimação do exercício do poder, ele próprio é legitimado pelo modo como disciplina este exercício[9]. Nesse sentido, José Maria Rosa Tesheiner pontifica que “o processo assim estruturado, sem direito de defesa, não tem caráter jurisdicional. Trata-se, aí, de repressão administrativa de crimes e de delinqüentes...”[10].
De forma análoga, a garantia do contraditório também se identifica como concretização do dever de imparcialidade do órgão judicial[11].
CONCLUSÃO
De todo o exposto, advém a certeza de que o Princípio do Contraditório tem invulgar função legitimadora da atuação do Estado pela via do processo. Talvez a doutrina pátria, ainda atada aos anos de formalismo processualista imposto pelas baionetas que aqui imperaram, não tenha se apercebido de que o Princípio expressa a garantia processual da participação democrática no processo judicial.
Cremos que o presente enfoque é fundamental para a melhor compreensão do Direito Processual moderno, bem como para a correta consecução dos objetivos colimados pela Nova Ordem Constitucional.
BIBLIOGRAFIA
ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda - “Direito processual civil: teoria geral do processo de conhecimento”, São Paulo. Revista dos Tribunais, 1972.
BARROSO, Carlos Eduardo Ferraz de Mattos - “Processo civil - teoria geral do processo e processo de conhecimento”, 3a. Edição, São Paulo. Saraiva, 2000.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel - “Teoria Geral do Processo”, 17a. Edição, São Paulo. Malheiros Editores, 2001.
DINAMARCO, Cândido Rangel - “Fundamentos do processo civil moderno”, 4a. Edição, tomo I, São Paulo. Malheiros Editores, 2001.
DINAMARCO, Cândido Rangel - “Instituições de Direito Processual Civil”, v. 1, São Paulo. Malheiros Editores, 2001.
DINAMARCO, Cândido Rangel - “A Instrumentalidade do processo”, 6a. Edição, São Paulo. Malheiros Editores, 1998.
TESHEINER, José Maria Rosa - “Elementos para uma teoria geral do processo”, São Paulo. Saraiva, 1993.
Notas
[1] “Processo civil - teoria geral do processo e processo de conhecimento”, 3a. Edição, São Paulo. Saraiva, 2000, p. 11.
[2] “Teoria Geral do Processo”, 17a. Edição, São Paulo. Malheiros Editores, 2001, p. 55.
[3] “Elementos para uma teoria geral do processo”, São Paulo. Saraiva, 1993, p. 44.
[4] “Direito processual civil: teoria geral do processo de conhecimento”, São Paulo. Revista dos Tribunais, 1972, p. 111.
[5] “Fundamentos do processo civil moderno”, 4a. Edição, tomo I, São Paulo. Malheiros Editores, 2001, p. 127.
[6] Idem, p. 112.
[7] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel - “Teoria Geral do Processo”, 17a. Edição, São Paulo. Malheiros Editores, 2001, p. 56.
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel - “A Instrumentalidade do processo”, 6a. Edição, São Paulo. Malheiros Editores, 1998, pp. 126 e 136.
[9] Idem, p. 131
[10] “Elementos para uma teoria geral do processo”, São Paulo. Saraiva, 1993, p. 44.
[11] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel - “Teoria Geral do Processo”, 17a. Edição, São Paulo. Malheiros Editores, 2001, p. 57.