GESTÃO PATRIMONIAL
Neste capítulo, dois dispositivos legais merecem análise. O primeiro é o §1º do art. 43, que prevê o depósito em conta separada das demais disponibilidades de cada ente dos recursos de caixa dos regimes de previdência social, ainda que vinculadas aos Fundos Previdenciários a que se referem os artigos 249 e 250 da Constituição. A norma, como melhor discorreremos no próximo tópico, visa impedir a utilização de recursos destinados ao sistema de seguridade social para finalidades diversas, em desvio repudiável, que hoje se verifica amiúde em nosso país.
Já o artigo 44 veda "a aplicação da receita de capital derivada da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesa corrente, salvo se destinada por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos". Esta, a nosso juízo, uma das mais importantes regras da lei de responsabilidade fiscal. Ela trará fim a uma prática corriqueira dos maus administradores pátrios de vender o patrimônio para cobrir gastos ordinários, num repudiável procedimento que dilapidou, por longos anos, o patrimônio público. Mais recentemente, aliás, algumas privatizações de empresas públicas refletem o melhor exemplo disso que estamos afirmando. Além de alienadas ao capital privado por valores muitas vezes irrisórios, tais receitas auferidas com a venda das estatais, quando não desviadas, foram aplicadas em despesas ordinárias, desaparecendo do ativo público.
Aliás, anteriormente ao advento da lei de responsabilidade fiscal, havia até mesmo disposições legais que davam um verdadeiro "cheque em branco" ao administrador, para alienar bens imóveis do ente gerido e aplicar as receitas aonde bem entendesse, ao seu bel-prazer. É o caso do artigo 97 da L. 8.212/91, com a redação conferida pela MP 1523, de 23.10.97, convertida na L. 9.528, de 10.12.97, que previa:
"Art. 97. Fica o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS autorizado a proceder a alienação ou permuta, por ato da autoridade competente, de bens imóveis de sua propriedade considerados desnecessários ou não vinculados às suas atividades operacionais"
A regra recém transcrita, como se vê, era por demais aberta, possibilitando à autoridade competente alienar ou permutar bens imóveis, sem, contudo, estabelecer a destinação das receitas auferidas. Sob a égide da Lei de Responsabilidade Fiscal, todavia, a destinação de tal receita ficou expressamente definida (art. 68, §1º, inciso I).
UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS DESTINADOS AO SISTEMA DE SEGURIDADE SOCIAL
A Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998, acrescentou o inciso XI ao artigo 167 da Carta Política. A partir de então é vedada "a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral da previdência social de que trata o art. 201". Mas já na redação original do dispositivo constitucional constava que é vedada a "utilização, sem autorização legislativa específica, de recursos dos orçamentos fiscal e da seguridade social para suprir necessidade ou cobrir déficit de empresas, fundações e fundos, inclusive dos mencionados no art. 165, § 5º" (inciso VIII do art. 167 da CF/88).
E não poderia ser diferente. Aliás, o legislador constituinte -tanto originário como derivado- sequer precisaria ter estatuído tais vedações, porquanto elas decorrem da compreensão lógica do tema. Ora, se a seguridade social possui um orçamento próprio e desvinculado daquele geral da União, com uma composição determinada por lei e aportes também estabelecidos legalmente, os recursos integrantes deste orçamento, obviamente, não podem ser utilizados para finalidades outras que não o custeio dos programas, benefícios e serviços da seguridade social.
Mas nem sempre a lógica é respeitada no Brasil. Além de não destinar todos os recursos que deve ao orçamento da seguridade social, a União retira dele boa parte, para cobrir gastos ordinários como pagamento de fornecedores, servidores e taxas de juros das dívidas externa e interna. Por isso costumamos ouvir, quase que diariamente, nalgum noticiário ou bate-papo de esquina, que "a previdência social tem um rombo de aproximadamente R$ 10 bilhões. Estupenda falácia(!). Apenas com os recursos que a União deveria destinar ao orçamento da seguridade social já empataríamos custos e despesas com benefícios. Somando-se a tal montante a parcela da receita de concursos e prognósticos, além de outras receitas, também desviadas, e teríamos um superávit fantástico.
A Emenda Constitucional n. 21, de 18.03.1999, que prorrogou a malfadada contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e de direitos de natureza financeira (CPMF), por exemplo, foi muito clara ao estabelecer que "o resultado do aumento da arrecadação, decorrente da alteração da alíquota, nos exercícios financeiros de 1999, 2000 e 2001, será destinado ao custeio da previdência social" (art. 1º, §2º - grifamos). A propósito, a própria lei instituidora da CPMF já estabelecera que "o produto da arrecadação da contribuição de que trata esta Lei será destinado integralmente ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde, sendo que sua entrega obedecerá aos prazos e condições estabelecidos para as transferências de que trata o art. 159 da Constituição Federal." (art. 18 da L. 9311, de 24.10.1996, com grifo nosso). Pois até hoje estes recursos não se somaram ao orçamento da seguridade social. E se estas verbas, ao invés de terem engordado as contas dos credores internacionais, através do pagamento de juros da dívida externa, tivessem sido, efetivamente, destinadas ao fundo nacional da saúde; imaginem quanta notícia triste teríamos deixado de assistir.
O certo é que a utilização dos recursos destinados ao custeio do sistema de seguridade social sempre foi uma grande baderna. Baderna, aliás, que vem de muito longe, desde a implantação entre nós de um sistema único de previdência social. Na época não tínhamos nenhum beneficiário e milhões de segurados-contribuintes. Pois os recursos arrecadados, que deveriam ter sido integralmente destinados a um fundo específico, foram desviados para outras finalidades ou, pior ainda, surrupiados do povo por políticos inescrúpulosos.
A lei de responsabilidade fiscal, embora peque por omissão neste aspecto, porque não traz qualquer disposição expressa impedindo o desvio de verbas destinadas ao custeio da seguridade social, pode se constituir em importante avanço no trato da questão. Primeiro porque estabelece francas regras de transparência da gestão fiscal (arts. 48 e 49). De outra parte, por prever que "as receitas e despesas previdenciárias serão apresentadas em demonstrativos financeiros e orçamentários específicos" (art. 50, inc. IV), o que, a nosso ver, facilitará a fiscalização, por qualquer cidadão, da fiel aplicação dos recursos aonde devem ser aplicados, ao menos do campo previdenciário. Além disso, há previsão de relatórios de execução orçamentária, a cada bimestre, e de gestão fiscal, a cada quadrimestre, (arts. 52 e 54, respectivamente), que funcionarão como mecanismos eficazes de controle da utilização dos recursos públicos. Finalmente, há regras específicas a respeito da prestação de contas e da fiscalização da gestão fiscal (arts. 56/58 e 59, respectivamente), que também contribuirão, e muito, para trazer publicidade ampla a aplicação das receitas.
Tudo isso aliado à compreensão lógica de que a previsão de orçamento próprio e desvinculado, com composição detalhada em lei, impede o administrador de desviar os recursos da seguridade social para outras finalidades, queremos crer, trará maior respeito por parte dos administradores na utilização de tais verbas. Mas é preciso alertar que o controle popular, aqui, será de fundamental importância. Com a transparência preconizada pela lei complementar ficará bastante facilitado o acesso do cidadão aos dados. Oxalá seja desencadeada incessante perseguição da moralidade no trato da questão, nem que para isso seja necessário manejar a ação popular (CF, art. 5º, inciso LXXIII).
O FUNDO DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL
Com o advento da Emenda Constitucional n. 20/98, ficou previsto no artigo 250 da Lex Mater a criação de um fundo para o pagamento de benefícios concedidos pelo Regime Geral de Previdência Social. A Lei Complementar 101 criou o Fundo do Regime Geral da Previdência Social, sem seu artigo 68, "com a finalidade de prover recursos para o pagamento dos benefícios do regime geral da previdência social", estabelecendo que:
"§1º. O Fundo será constituído de:
I - bens móveis e imóveis, valores e rendas do Instituto Nacional do Seguro Social não utilizados na operacionalização deste;
II - bens e direitos que, a qualquer título, lhe sejam adjudicados ou que lhe vierem a ser vinculados por força de lei;
III - receita das contribuições sociais para a seguridade social, previstas na alínea a do inciso I e no inciso II do art. 195 da Constituição;
IV - produto da liquidação de bens e ativos de pessoa física ou jurídica em débito com a Previdência Social;
V - resultado da aplicação financeira de seus ativos;
VI - recursos provenientes do orçamento da União.
Nos termos do §2º, o Fundo será gerido pelo INSS, na forma da lei.
A criação do Fundo é muito bem vinda. Chega tarde, é verdade, mas sempre é hora de se iniciar a constituição do Fundo Previdenciário. Para se ter uma idéia, apenas entre os anos de 1990 e 1995, com base em dados falaciosos, como já demonstramos anteriormente, porque desconsideram os recursos que a União deveria ter entregue à Seguridade Social, bem como as demais fontes de receita, tivemos um superávit de quase R$ 20 bilhões nas contas da previdência. Nas décadas de 80 e 70 o superávit alcançou números muito mais satisfatórios, devido ao pequeno número de beneficiários do sistema. Pois imaginemos o estupendo montante que poderíamos ter hoje, se tivéssemos sido administrados por pessoas sérias e responsáveis. Os dividendos do Fundo, certamente, estariam custeando a totalidade dos benefícios, com sobras, e o país estaria inserido noutro contexto mundial.
Mas, repita-se, nunca é tarde para se começar a constituição de um Fundo Previdenciário. O que esperamos é que aos bens arrolados pelo §1º do art. 68 da LC 101/00 somem-se outros e, principalmente, que a União não utilize os recursos do Fundo Previdenciário para outras finalidades, como faz com as verbas que deveriam ser destinadas ao orçamento da seguridade social e não o são.
CONCLUSÕES
Como diploma destinado a controlar despesas e equilibrar as contas públicas, a lei de responsabilidade fiscal é iniciativa das mais elogiáveis, porque a tradição dos administradores brasileiros sempre foi de extrapolar limites de gastos. Orientada para trazer eficácia aos princípios da moralidade e da eficiência na gestão das verbas públicas, ela representa um instrumento importante, também, para a concretização dos mais valiosos postulados democráticos. Afinal, como bem afirmou Antonio Roque Citadini, "não existe país democrático sem um órgão de controle com a missão de fiscalizar a boa gestão do dinheiro público" 17.
De outra parte, deve-se reconhecer também a importância das diretrizes introduzidas, com relação à destinação de determinados recursos para a seguridade social, o que, certamente, vai funcionar como instrumento hábil a moralizar a utilização destas receitas. Agora, além de algumas restrições quanto ao desvio dos recursos destinados à seguridade social para outras finalidades, temos também valiosos instrumentos colocados à disposição do cidadão, para ativar, com maior precisão, os mecanismos de controle popular.
Ficou também criado o Fundo Previdenciário. Com isso, talvez, acabe a velha estratégia daqueles que pretendem desprestigiar a previdência social pública, com vias a privatização, de cotejar arrecadação de contribuições e benefícios pagos. O fundo, embora tenha sido tardiamente criado, representará, daqui a algumas décadas, a redenção da previdência social pública no Brasil.
Mas é preciso registrar algumas omissões do diploma legal. Como apontamos, ele deveria ter sido mais específica com relação à proibição de se utilizar receitas destinadas à seguridade social para outras finalidades, o que, talvez, acabasse com esta nefasta prática, muito habitual em nosso país. Além disso, devemos registrar um grave defeito da nova lei. O projeto foi elaborado num momento em que o país está sendo conduzido por um modelo de política neo-liberal. Nesse prisma, a lei de responsabilidade fiscal traz conceitos e regras voltadas quase que unicamente às questões econômicas, sem qualquer cuidado com aspectos sociais. Lamentamos, diante disso, que o Congresso Nacional não tenha corrigido tal vício, através da inserção de mecanismos viáveis para que se pudesse cobrar do administrador providências e investimentos mínimos em políticas sociais.
NOTAS
O melhor exemplo do que estamos aqui afirmando é o modelo de gestão da crise econômica proposto pelo Fundo Monetário Internacional, e acatado por nossos governantes, orientada apenas para a correção do desequilíbrio macroeconômico, sem qualquer preocupação com aspectos sociais;
in "A Lei de Responsabilidade Fiscal e as Vedações Impostas aos Municípios", artigo disponível na Revista Eletrônica do Centro de Estudos da AGU, www.agu.gov.br, Ano II, n. 8, março/2001, p.3;
ver Lei Orgânica da Saúde - L. 8.080, de 19.09.1990, que regula as ações e serviços de saúde em todo o território nacional;
ver Leis de Custeio e de Benefícios da Previdência Social - Leis ns. 8.212 e 8.213, ambas de 24.07.1991;
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ver Lei Ôrgânica da Assistência Social - L. 8.742, de 07.12.1993, e seu regulamento, Decreto n. 1.744/95, que dispõem sobre a organização da assistência social em todo o território nacional;
O modelo chileno de seguridade social, por exemplo, tão decantado pelos adeptos do neo-liberalismo, abdicou desse elemento de mutualismo. E exatamente por isso já começa a sofrer críticas, de pessoas preocupadas com a falta de solidariedade do sistema, com a ausêcia de distribuição dos riscos pelo conjunto da sociedade.
Ressalvados, é claro, os casos em que houver insuficiência financeira, quando a União ficará responsável pela sua cobertura, na forma do parágrafo único do art. 16 da L. 8.212/91;
in "A Lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal", artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Brasília, Ano 37, n. 146, abril/junho-2000, p. 110;
in "Controle de gastos públicos, crise econômica e governabilidade no Brasil", artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Brasília, Ano 36, n. 144, out/dez-1999, p. 33;
José Matias Pereira, Op. Cit., p. 36;
Sempre que nos deparamos com situação semelhante, vem à memória lapidar pronunciamento do Ministro Celso Mello, que afirmou peremptoriamente: "... É preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional. Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e das Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica – dos Tribunais, especialmente – porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada" (excerto extraído de voto proferido na ADIn 293-DF);
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A propósito, vem a calhar o modo de agir do Sr. Arno Augustin, quando ocupou a função de Secretário Municipal da Fazenda de Porto Alegre-RS, entre os anos de 1988/1996, bem antes da nova lei, portanto, assim explicado: "Sempre tivemos um compromisso firmado com a população de que nenhuma anistia seria concedida. Este preceito foi cumprido à risca. Nenhuma anistia fiscal foi concedida nos oito anos que administramos Porto Alegre. Mais do que isso, nenhuma isenção ou benefício fiscal de qualquer ordem foi concedida aos grandes interesses econômicos da cidade. O resultado é que o poder econômico já sabe que não é lucrativo, no caso de Porto Alegre, tornar-se devedor de impostos, pois as multas e penalidades são aplicadas rigorosamente." (in "Finanças Públicas", artigo que integra a obra Porto da Cidadania, ed. Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997, p. 96);
in "Isenções Tributárias em face do Princípio da Isonomia", artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Brasília, Ano 37, n. 145, jan-mar/2000, p. 241/242 e 251;
Op. Cit., p. 115;
"Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de: I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes";
"Art. 17. (....) §3º. Para efeito do §2º, considera-se aumento permanente de receita o proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição";
in "Controle Externo da Administração Pública", Max Limonad, São Paulo, 1995, p. 12.