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O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir

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22/04/2013 às 17:34
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3 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL: O CASO OMAR AL-BASHIR

Como pode ser visto nos capítulos anteriores, é cada vez mais difícil negar a subjetividade jurídica do indivíduo no âmbito do Direito Internacional, especialmente no seu ramo penal. O indivíduo passou a ter direitos e obrigações que emanam diretamente do Direito Internacional, assim como os demais sujeitos. A possibilidade da sua responsabilização por um órgão internacional é a principal prova disso. Dessa forma, com base no caso do Presidente do Sudão, Omar Al-Bashir, poderão ser analisados alguns aspectos destacados que corroboram este pressuposto.

O Sudão, como grande parte dos países africanos, tem desde a sua independência graves problemas com guerras civis. No caso de Darfur, as tensões foram agravadas por problemas climáticos e por políticas de governo que privilegiaram determinados grupos. O presidente Al-Bashir está sendo acusado de crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra como perpetrador indireto, por ter se utilizado das estruturas do Estado, bem como de milícias para, especialmente, deslocar populações, cometer assassinatos, destruir cidades e vilas, e destruir os meios de subsistência dessas populações.

Em razão de ser Chefe de Estado e de o Sudão não ser signatário do Estatuto de Roma, são levantadas algumas questões sobre a responsabilização do e a vinculação do indivíduo, no caso, Omar Al-Bashir, pela justiça internacional penal. Uma primeira questão é sobre a natureza das normas penais internacionais, as quais, especialmente no que concerne aos crimes internacionais contra a humanidades, de guerra e o genocídio, são consideradas jus cogens, ou seja, normas imperativas de direito. Desta forma, essas normas não podem ser revogadas e permitem o reconhecimento da chamada jurisdição universal, já que são violações que atingem a comunidade internacional como um todo. A segunda questão é sobre a vinculação do indivíduo ao Estatuto de Roma no caso de o seu país não ser signatário, pois, se as normas deste forem consideradas substantivas, poderia ser considerado que a lei penal estaria retroagindo no tempo quando aplicada a fatos anteriores à Resolução da ONU que submeteu o caso ao Tribunal e, caso as normas fossem consideradas jurisdicionais, a defesa dos acusado poderiam alegar que as condutas a eles imputadas não estavam abrangidas pelo jus cogens. A terceira questão é sobre a responsabilização individual, como contraponto à tradicional responsabilização coletiva que acontece no Direito Internacional, a qual, via de regra, acaba afetando toda uma população, e não apenas os responsáveis pelos delitos praticados. 

Nesse sentido, para atingir o objetivo deste capítulo foi necessário subdividi-lo em três partes: primeiramente foi feita uma contextualização sobre a situação do Sudão, especialmente no que concerne aos conflitos de Darfur e foram apresentados os principais aspectos do procedimento investigatório que se tem contra Al-Bashir; em seguida foram trazidas algumas reflexões sobre as questões apontadas com relação à situação o indivíduo no âmbito da justiça internacional penal; e, por fim, foram analisados os principais aspectos dessas reflexões com base no caso de Omar Al-Bashir.

3.1 A SITUAÇÃO DO SUDÃO[64]

A ONU, com base na Resoução 1564 de 18 de setembro de 2004, instaurou uma Comissão Internacional para Investigação sobre Darfur, a qual gerou um relatório que serviria de base para a adoção da Resolução 1593, que submeteu a situação em Darfur, no Sudão, à apreciação do Procurador do TPI e, posteriormente, serviu de base também para que este iniciasse suas investigações. De acordo com este relatório, quando as investigações foram iniciadas, estimava-se que havia 1,65 milhões de pessoas deslocadas internamente em Darfur e mais de 200 mil refugiados de Darfur no Chade. Além disso, haviam sido apurados casos de destruição em larga escala de vilas e aldeias na região.

A República do Sudão era, em 2005, o maior país da África[65]. Contava com uma população de aproximadamente 39 milhões de habitantes de maioria islâmica e que viviam na zona rural. A economia é basicamente voltada para agricultura e pastoreio, além da exploração de alguns limitados recursos naturais. A região de Darfur, que corresponde à porção oeste do país, é uma das regiões mais marginalizadas e negligenciadas pelo governo.

Após sua independência, em 1956, o Sudão teve poucos anos de regimes democráticos. Os principais governos ditatoriais tentaram impor a religião islâmica e a língua árabe a todo o país, o que exacerbava os conflitos internos, especialmente com o sul, que eram constantes desde esta época[66]. Nesse mesmo contexto pode-se inserir Omar Al-Bashir, o qual chegou ao poder em 1989, após mais um golpe de Estado. Em seu governo propriedades foram confiscadas e os partidos políticos foram banidos e, assim como no governo de seus predecessores, foi instituída uma política islâmica.

A região de Darfur tem aproximadamente 250.000 km2, e uma população estimada em 6 milhões de habitantes. A maior parte da população vive em pequenas vilas ou aldeias e vive de uma economia basicamente de subsistência, de agricultura industrial limitada e alguma pecuária. Por isso mesmo, a terra sempre foi uma questão central na política dessa região. A propriedade era tradicionalmente comunal e seu uso determinado pelas lideranças tribais. Todavia, na década de 1970, as leis sobre a terra foram modificadas e a propriedade individual passou a ser possível. Muito embora esta tenha passado para o Estado, aqueles que possuíssem terra por pelo menos um ano poderiam reclamar o título de propriedade. Os que não tinham terra recebiam ‘um incentivo’ para demonstrar lealdade para com o governo, de forma a adquiri-la.

Além disso, nos últimos anos transformações ecológicas e demográficas tiveram um impacto nas relações entre as tribos. A seca e a desertificação intensificaram-se nas décadas de 1970 e 1980 e com elas as lutas pelos recursos. Somando-se a isso, o governo passou a inserir novas formas de resolução de conflitos na região, substituindo o regime que se regia pelas leis tradicionais das tribos, baseado na autoridade dos líderes, mas de forma pouco imparcial, acirrando, assim, as disputas entre tribos.

Nesse contexto começaram a surgir as milícias e grupos de defesa de vilas e de suas respectivas tribos. Muitos dos conflitos se davam entre nômades árabes e os povos sedentários da região, sendo que o governo, o qual deveria mediar os conflitos, acabava gerando maiores controvérsias ao rotulas as tribos entre árabes e africanas e demonstrar certa predileção sobre aquelas. As populações destas tribos ‘africanas’ passaram então a apoiar os movimentos armados rebeldes que ganharam cada vez mais força. Os dois principais grupos rebeldes de Darfur, o Sudan Liberation Movement/Army (SLM/A) e o Justice and Equality Movement (JEM) começaram a se organizar durante os anos de 2001 e 2002 em oposição ao governo de Cartum, capital do Sudão, que era visto como o principal causador dos problemas de Darfur. Apesar de não terem conexões fortes, os dois grupos apresentam as mesmas razões para sua rebelião, especialmente questões sócio-econômicas e marginalização política de Darfur e seu povo.

Estes grupos passaram a atuar intensivamente a partir de 2002. Costumavam atacar delegacias para saquear propriedade do governo e armamento. Inicialmente, o governo pareceu ter sido surpreendido e não estar em posição para retaliar tais ações, tendo perdido o controle efetivo de grande parte do território, especialmente nas regiões rurais. Como grande parte das forças armadas era formada por ‘darfurnianos’ que, provavelmente, não aceitariam lutar contra seu próprio povo, o governo passou a chamar por assistência de tribos locais, e se aproveitar das tensões já existentes entra diferentes tribos para responder aos ataques.

Em resposta ao chamamento do governo, várias tribos nômades árabes, sem uma terra tradicional e desejando se assentarem, se apresentaram, vendo nisso uma oportunidade para se alocarem. O governo passou a dar subsídios e presentes aos líderes de algumas tribos como recompensa ao pessoal que estes recrutassem, bem como a pagar as Forças de Defesa Popular (Popular Defense Forces – PDF) através desses líderes. Estes novos recrutas foram chamados pelo povo de Darfur de ‘Janjaweed’[67].

Os esforços para uma solução pacífica do conflito se iniciaram em agosto de 2003, sob mediação do Presidente do Chade. Posteriormente, foram também feitos acordos sob os auspícios da União Africana na Etiópia e na Nigéria, especialmente sobre questões humanitárias e segurança. Mas durantes as negociações as partes não lograram superar as suas diferenças e identificar uma solução global para o conflito. Apesar de todos os esforços dos acordos de cessar-fogo assinados, lutas e violações entre os rebeldes e o governo continuavam sendo relatadas em janeiro de 2005. Independentemente da luta entre os grupos, o elemento mais significante do conflito são os ataques a civis, que levou a destruição e queima de vilas inteiras, bem como ao deslocamento de grande parte da população.

3.1.2 As investigações e o processo contra Omar Al-Bashir

O processo referente à situação do Sudão, assim como a da Líbia, foi submetido ao TPI por resolução do Conselho de Segurança da ONU. A Resolução 1593 (S/RES/1593) foi adotada em 31 de março de 2005. O Conselho de Segurança entendeu que a situação no Sudão constituía uma ameaça à paz internacional e à segurança e, assim, com base no Capítulo VII da Carta da ONU, decidiu submeter a situação em Darfur, desde 1º de julho de 2002, ao Procurador do TPI. (CONSELHO, 2005) Assim, em junho de 2005 foi publicada a decisão de abertura das investigações. O Procurador entendeu que, com base no relatório da Comissão Internacional de Investigação sobre Darfur, outras informações de fontes diversas, e opinião de diversos experts, havia elementos suficientes, nos termos do Estatuto para que fossem iniciadas as investigações. (TPI, 2005)

Com relação a esta situação, estão sendo investigados: Ahmad Muhammad Harun, ex-ministro de Estado para o Interior do Governo do Sudão (teve mandado de prisão expedido em 27 de abril de 2007, mas ainda está solto); Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman, líder de milícia (também teve mandado de prisão expedido, mas continua solto); Bahar Idriss Abu Garda, presidente e coordenador geral de operações militares do United Resistence Front (teve as acusações contra si recusadas pela Câmara Preliminar); Abdallah Banda AbaKaer Nourain, comandante-chefe do Justice and Equality Mouvement e componente do United Resistence Front; e, Saleh Mohammed Jerbo Jamus, ex-chefe do pessoal do SLA-Unity e atual integrante do Justice and Equality Mouvement. Por fim, está também sendo investigado Omar Hassan Ahmad Al-Bashir, Presidente da República do Sudão, contra o qual já foram expedidos dois mandados de prisão, o primeiro em 4 de março de 2009, e o segundo em 12 de julho de 2010, mas até o momento nenhum foi cumprido.[68]

Omar Al-Bashir está sendo acusado por cinco crimes contra a humanidade: assassinato (art. 7(1)(a)), extermínio (art. 7(1)(b)), transferência forçada (art. 7(1)(d)), tortura (art. 7(1)(f)), e estupro (art. 7(1)(g)); dois crimes de guerra: dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades (art. 8(2)(e)(i)), e pilhagem (art. 8(2)(e)(v)); e três crimes de genocídio: genocídio por morte (art. 6(a)), genocídio por ofensas graves à integridade mental ou física (art. 6(b)), e genocídio por sujeição intencional de grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física (art. 6(c)). [69]

De acordo com o requerimento do Procurador para que fosse expedido o primeiro mandado de prisão contra Omar Al-Bashir, este fomentava as disputas entre diferentes tribos, rotulando uma parte de ‘árabes’ e os outros, principalmente as tribos Fur, Masalit e Zaghawa, os quais ele percebia como principais ameaças, de ‘africanos’. O documento ressalta que, tanto os perpetradores quanto as vítimas são africanos e falam árabe. Al-Bashir usou como pretexto para atacar essas tribos a ‘contra-insurgência’ em razão de membros destes grupos fazerem partes de grupos rebeldes que questionavam o seu poder político na região, todavia, seu verdadeiro intento era o genocídio. (TPI, 2008) “Um Governo tem direito a usar a força para controlar seu território, mas ele não pode usar genocídio ou crimes contra a humanidade como meios para fazer isso.”[70] (TPI, 2008, p. 7-8, tradução livre)

Sobre os crimes imputados a Omar Al-Bashir foi afirmado o seguinte (TPI, 2008, p. 8, tradução livre):

A Acusação alega que as evidências mostram motivos razoáveis para crer que AL BASHIR pretendia destruir uma parte substancial dos grupos étnicos Fur, Masalit e Zaghawa como tais. Para isto, ele usou todo o aparato estatal, as Forças Armadas e a Milícia/Janjaweed [...]. Forças e agentes controlados por AL BASHIR atacaram civis em cidades e vilas habitadas principalmente pelos grupos alvo, cometendo assassinatos, estupros, tortura e destruindo os meios de sustento. AL BASHIR, portanto, forçou o deslocamento de parte substancial dos grupos alvo e então continuou a visá-los nos campos para pessoas deslocadas internamente [...], causando-lhes sérios danos físicos e mentais – através de estupros, tortura e deslocamento forçado em condições traumatizantes – e deliberadamente infligindo a uma parte substancial destes grupos condições de vida calculadas para levá-los a destruição física, em particular por obstruir a entrega de assistência humanitária.[71] (grifos no original)

Concluíram, por fim, que essas condutas configuram os crimes de genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. (TPI, 2008)

Com base nessas acusações, corroborados por argumentos embasados nas investigações realizadas, a Câmara Preliminar I expediu mandado de prisão contra Omar Al-Bashir em 4 de março de 2009, reconhecendo que havia indícios suficientes de que, nos termos do art. 25(3)(b) do Estatuto de Roma, ele havia sido perpetrador indireto ou co-perpetrador indireto de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Afirmou-se que, como Presidente do Estado do Sudão e Comandante das Forças Armadas desse país, Al-Bashir tinha um papel essencial na coordenação, projeto e implementação da campanha de contra-insurgência contra os rebeldes e que, ainda, havia motivos para crer que seu papel ia além, que ele estava no controle de todo aparato estatal, bem como da milícia e outros grupos, e que usou este controle para assegurar a implementação do plano comum. Dessa forma, entendeu-se cabível a expedição do mandado, nos termos do art. 58(1) do Estatuto para garantir que Al-Bashir se apresentasse à Corte, que não obstruísse ou pusesse em risco a investigação e, ainda, para que não continuasse cometendo os mesmos crimes. (TPI, 2009)

Apesar da expedição desse mandado, tendo em vista que o Sudão não é país signatário do Estatuto de Roma e nem os principais países com os quais ele tem relação e para onde Al-Bashir costuma viajar, ele não foi detido. Então, como as atrocidades cometidas contra as populações de Darfur continuavam, em 12 de julho de 2010 foi expedido novo mandado de prisão contra ele, desta vez incluindo as acusações de genocídio (TPI, 2010).

Até o final de 2011, Omar Al-Bashir ainda não havia sido preso e nem havia perspectiva de que fosse. Todavia, a sua inclusão entre os investigados e o reconhecimento de que existem elementos suficientes para imputar-lhe a responsabilidade, ao menos, como perpetrador indireto de crimes previstos no Estatuto já é muito importante, já que é um Chefe de Estado e de um país que sequer aceitou a jurisdição do TPI.

3.2 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL

Como visto na primeira parte deste trabalho, basicamente, um sujeito de direito é aquele que possui direitos e é capaz de contrair obrigações, sendo que, no âmbito internacional, alguns autores somam a isso a necessidade de se demonstrar a capacidade de interagir nessa plano jurídico. Na segunda parte, então, foi descrito o desenvolvimento da justiça internacional penal, perante a qual o indivíduo responde individualmente pelos delitos cometidos nessa condição. Por fim, foi apresentado o caso de Omar Al-Bashir, o qual esta sendo investigado por crimes descritos no Estatuto de Roma, porém é Presidente de um Estado que não aceitou este tratado internacional. Pode-se dizer que, se o indivíduo pode ser punido por uma justiça internacional é porque, de alguma forma, ele está obrigado por esta justiça. Entretanto, para ele estar obrigado, deve, de alguma forma, estar vinculado a este sistema jurídico.

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3.2.1 Jus cogens e jurisdição universal

As normas de direito internacional podem ser de duas naturezas: positivas ou consuetudinárias, sendo que, entre ambas, há algumas que são consideradas jus cogens. Jus cogens são as chamadas normas imperativas de direito, as quais não podem ser derrogadas. De acordo com o artigo 53 da Convenção de Viena de 1969: “uma norma imperativa de Direito Internacional geral é a que for aceite e reconhecida pela comunidade internacional de Estados no seu conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de Direito Internacional geral com a mesma natureza.” (PELLET, 2003, p. 206)

A prática do genocídio, dos crimes contra a humanidade, bem como dos crimes de guerra são considerados condutas reprováveis pelo jus cogens. Estas normas imperativas visam à proteção da comunidade internacional como um todo. Nesse sentido, a necessidade de uma reparação, ou punição pelo cometimento destes crimes também são normas desta natureza. (ORAKHELASHVILI, 2008)

Em geral, essas normas são relacionadas às questões tratam de direitos humanos, ou seja, direitos de indivíduos. Segundo Orakhelashvili (2008, p. 246, tradução livre):

[...] a grande maioria das situações referentes a reparação de violações dos jus cogens dizem respeito aos direitos dos seres humanos. Isto é natural, porque a maioria dos casos de jus cogens são ‘casos em que a posição do indivíduo está envolvida, e nas quais as normas violadas são normas instituídas para a proteção do indivíduo’.[72]

Sendo desta forma, é defendido que estas normas criam obrigações erga omnes, ou seja, por mais que estejam vinculadas a um tratado específico, uma reclamação contra elas não necessita obrigatoriamente estar vinculada às partes envolvidas no tratado ou nos fatos. Um terceiro Estado poderia reclamar contra atos de violação do jus cogens ocorrendo em outro Estado e contra nacionais de outros ainda, mesmo que não tenha relação alguma com a situação, pois, como já destacado, o jus cogens são normas que visam proteger a comunidade internacional como um todo e, assim sendo, todos teriam legitimidade de reclamá-las. Além de outros Estados, esta natureza do jus cogens também justifica o acesso dos próprios indivíduos aos tribunais internacionais de direitos humanos, muito embora não sejam eles formalmente parte do tratado. (ORAKHELASHVILI, 2008)

No caso do cometimento dos crimes referidos anteriormente, entende-se que parte da reparação devida por um Estado seria a persecução e punição dos responsáveis por estes crimes. Ainda, de acordo com Orakhelashvili (2008, p. 265, tradução livre):

Da perspectiva do jus cogens, este aspecto da satisfação adquire uma importância específica. A persecução dos crimes contra a paz e a segurança da humanidade é um tema de interesse da comunidade internacional como um todo. Parece estar estabelecido que a jurisdição universal esteja disponível no caso de violação do jus cogens. Os Estados estão, em algumas circunstâncias, sob o dever de exercer a jurisdição universal através da extradição ou persecução do acusado, e é alegado que a responsabilidade individual dos perpetradores de crimes de guerra e crimes contra a humanidade está baseada em uma norma imperativa.[73]

Desta forma, admitindo-se que a punição dos perpetradores de crimes de guerra e contra humanidade é uma norma de jus cogens, é necessário que se admita a jurisdição universal[74] para que haja alguma aplicabilidade destas normas. Em geral, a questão da jurisdição universal é abordada sob o enfoque da sua aplicação por um terceiro Estado, e a discussão gira em torno da legitimidade deste Estado julgar um crime cometido em circunstâncias que normalmente não permitiriam a aplicação da sua jurisdição.

Todavia, com a instituição do Tribunal Penal Internacional, também se passou a debater a possibilidade deste organismo exercer a jurisdição universal. Inclusive, isto foi uma das questões mais debatidas na conferência de Roma, mas por força de algumas potências, não foi estabelecida no texto final (KAUL, 2000). A jurisdição universal permitiria que os crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra, previstos no Estatuto, fossem investigados pelo TPI, qualquer que fosse o local do cometimento e não importando a nacionalidade do agente ou das vítimas, o que, combinado com o princípio da complementaridade, poderia trazer mais legitimidade e efetividade ao Tribunal.

O argumento usado na conferência de Roma pelos alemães, que defendiam a jurisdição universal para os crimes principais, é muito plausível quando se entende como jus cogens o direito de punir os perpetradores dos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra:

[...] de acordo com o moderno direito internacional penal, genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, seguindo-se o princípio da jurisdição universal, são puníveis em qualquer lugar, observada a nacionalidade do suspeito, da vítima ou do local em que o crime foi cometido. Desde que os Estados membros das Nações Unidas podem exercitar a jurisdição universal para os crimes mencionados, eles podem, igualmente, pela ratificação do Estatuto, transferir esta jurisdição internacional para o Tribunal Penal Internacional. (KAUL, 2000)

Nesse sentido, a legitimidade do Tribunal para julgar estes crimes estaria garantida pela ‘transferência’ do direito ao exercício da jurisdição universal pelos Estados signatários do Estatuto ao TPI. Todavia, como já destacado, não foi essa a solução final adotada na conferência. Somente nos casos submetidos pelo Conselho de Segurança é que o Tribunal teria, ao menos em tese, uma jurisdição próxima à universal.

Essa prerrogativa do Conselho de Segurança é legitimada se for entendido que, ao aceitar a Carta das Nações Unidas, os Estados conferiram ao Conselho determinados poderes. A criação dos Tribunais ad hoc, pode ser um exemplo desses poderes implícitos do Conselho de Segurança. Foi considerado como uma forma pacífica de zelar pela paz e a segurança da comunidade internacional. Com este mesmo intuito é que lhe foi outorgado o poder de submeter Estados não signatários ao TPI (CRETELLA NETO, 2008).

Enfim, os crimes internacionais: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra são condenados pelo jus cogens, o qual, da mesma forma, legitima a chamada jurisdição universal para a persecução dos perpetradores destes crimes. Entretanto, no Estatuto de Roma não ficou determinado que o TPI tivesse este tipo de jurisdição. Seu alcance só passa a ser universal, na medida em que o Conselho de Segurança pode denunciar qualquer situação ao Tribunal, tendo em vista os poderes a ele conferidos na Carta das Nações Unidas.

Assim, levando-se em consideração que o Sudão é signatário da Carta das Nações Unidas, ele admitiu os poderes conferidos ao Conselho de Segurança. Então, indiretamente ele foi vinculado ao Estatuto de Roma, quando neste foi determinado que o Conselho de Segurança pudesse submeter situações em países não-signatários do Estatuto, já que se entende que isto está dentro das prerrogativas deste órgão de manutenção da paz e da segurança internacionais. Além disso, o fato de os crimes a serem julgados serem considerados jus cogens, resolve a questão do princípio do nullun crimen, já que são normas preexistentes. Portanto, com base no jus cogens e nos poderes do Conselho de Segurança, estaria o TPI legitimado a julgar os fatos ocorridos no Sudão e, por consequência, dos indivíduos nacionais deste país.

Essa é conclusão que se pode tirar de uma maneira mais prática com relação à forma como está sendo aplicado o Estatuto e a vinculação do país, no caso, o Sudão, ao TPI. Outra abordagem, mais voltada para a vinculação do próprio indivíduo é trazida pelo estudioso Marko Milanovi? (2011) que questiona a natureza das normas do Estatuto de Roma para analisar a vinculação dos indivíduos a este, conforme descrito na próxima seção.  

3.2.2 Estatuto de Roma: norma substantiva ou jurisdicional?

Para responder a questão de se o Estatuto de Roma vincula os indivíduos ou não, Marko Milanovi? (2011) propõe uma análise da natureza do tratado, se ele seria um estatuto substantivo ou jurisdicional. Para este autor, a problemática se encontra na questão de entender se as normas do Estatuto definem quando um indivíduo é criminalmente responsável ou se elas apenas dizem quando o corte pode estabelecer a sua jurisdição sobre violação de um indivíduo a normas que emanam de outras fontes do direito internacional, como o costume. O problema, segundo ele, de se considerar o Estatuto como norma substantiva é que, nesse caso ele estaria vinculando os indivíduos, os quais nunca consentiram em ser vinculados por ele, nem poderiam ter feito isso. (MILANOVI?, 2011)

 Para Milanovi? (2011) os estatutos dos tribunais anteriores ao TPI eram jurisdicionais, uma vez que não criavam nenhuma nova lei, apenas deveriam aplicar as leis costumeiras (e por vezes tratados) preexistentes. Assim, se for considerado o Estatuto de Roma como uma norma substantiva, para ele, este seria talvez o primeiro tratado a vincular diretamente os indivíduos, mas sendo o texto do Estatuto ambíguo no que diz respeito a esta questão, não se pode chegar a uma conclusão definitiva. Todavia, dependendo da interpretação que se der, diferentes serão as implicações. (MILANOVI?, 2011)

Apesar dessas ponderações, tendo em vista o princípio da legalidade, nullun crimen sine lege, e das expressas disposições de que os crimes a serem investigados pelo tribunal só poderiam ser aqueles cometidos após a entrada em vigor do Estatuto, ou da sua ratificação pelo país específico, faz com que haja uma maior tendência pela interpretação do mesmo como uma norma substantiva. Na decisão de confirmação de acusações contra Thomas Lubanga Dyilo, da República Democrática do Congo, a Câmara se manifestou confirmando uma interpretação do Estatuto como norma substantiva, afirmando que ele poderia ser acusado já que, no momento do cometimento dos crimes, já estava em vigor o Estatuto e descrita a conduta a ele imputada. (MILANOVI?, 2011)

A questão mais interessante investigada, porém, é o caso do Sudão, já que, este não aceitou a jurisdição do tribunal e esta foi, inclusive, estendida, retroativamente até o dia 1 de julho de 2002, quando o Estatuto entrou em vigor, mesmo tendo a resolução que submeteu o caso sido adotada apenas em 2005. Milanovi? (2011) pergunta-se se os acusados, neste caso, estavam vinculados ao Estatuto ao tempo em que se alega que cometeram seus crimes, ou, até mesmo, se poderiam estar. Um entendimento seria o de que, desde a entrada em vigor do Estatuto, todos os indivíduos estariam a ele vinculados, mas, para o autor, essa não seria uma resposta óbvia. Nem a submissão do Conselho de Segurança poderia impor aos indivíduos a responsabilidade individual. Assim, a solução encontrada por alguns poderia ser a de ser considerar que a responsabilidade dos acusados neste caso se dariam com base no direito consuetudinário, e não no Estatuto, o que daria abertura para que eles discutissem a questão da acusação ser feita com base nos crimes descritos no Estatuto. (MILANOVI?, 2011)

[...] se Omar al-Bashir for (um dia) processado criminalmente por violação de leis consuetudinárias, em vez do Estatuto de Roma, então Bashir deverá poder contestar as acusações que se baseiam nas previsões do Estatuto e que vão além da lei consuetudinária. Por exemplo, o mandado de prisão de Bashir aprova a sua acusação sob a perpetração indireta ou perpetração por meio da teoria da responsabilidade, de acordo com o artigo 25(3)(a) do Estatuto [...][75] (MILANOVI?, 2011, p. 33, tradução livre)   

O autor parte do pressuposto de que as normas consuetudinárias podem vincular indivíduos bem como terceiros, afastando assim os argumentos voluntaristas que alegam que os tratados só vinculam os Estados que os aceitaram, pois, uma vez que as normas consuetudinárias podem ser estendidas a terceiros e vincular indivíduos, os tratados também poderiam. Como exemplo de tratado que vincula terceiros, seja indivíduos ou atores não-estatais, ele cita o artigo 3 da Convenção de Genebra de 1949 que vincula todas as partes de um conflito armado não-internacional. Por fim, rejeitando o absoluto voluntarismo, e aceitando que os indivíduos podem ser vinculados por tratados, o autor aponta como próxima questão a ser respondida quando isso pode ocorrer. (MILANOVI?, 2011)

Nesse caso, para se admitir que o Estatuto de Roma vincule indivíduos nos casos como o do Sudão, deve-se admitir que o Estatuto substantivo deixe de ser aplicado e somente os vestígios das normas jurisdicionais persistam, fazendo-se necessária a referências às normas consuetudinárias; ou, admite-se que o Estatuto substantivo é mais amplo em seu escopo que a jurisdição da corte, aplicando-se universalmente e vinculando todos os indivíduos no mundo desde que entrou em vigor. Nesse sentido, de uma análise doa artigos 11, 12(3) e 24, pode-se perceber que o Estatuto permite que a sua competência seja estendida para antes de quando o Estado, que não era parte, aceitou a jurisdição do tribunal. (MILANOVI?, 2011) Assim, a explicação possível apontada pelo autor seria a de que:

[...] os Estados-partes do Estatuto de Roma não vinculam indivíduos por obrigações substantivas de direito criminal com base na sua nacionalidade ou presença no território do Estado. Pelo contrário, eles poderiam ter exercido jurisdição universal prescritiva, vinculando todo indivíduo no mundo desde 1 de julho de 2002 e, assim, evitando quaisquer problemas relativos ao nullum crimen, mesmo se a jurisdição da corte ela mesma fosse por planejamento mais delimitada.[76] (MILANOVI?, 2011, p. 40, tradução livre)

O autor conclui então que a parte substantiva do Estatuto deve ser aplicada com base na territorialidade e na nacionalidade. Nos outros casos, como no do Sudão o Estatuto deve ser considerado jurisdicional. Nesses casos os indivíduos estariam vinculados apenas com base no direito consuetudinário e a corte precisaria estabelecer em que medida as acusações feitas estão de acordo com os costumes. (MILANOVI?, 2011)

A análise feita por Milanovi? corrobora a visão de que a vinculação do indivíduo, no caso de um Estado não-signatário do Estatuto, ocorre em razão das normas costumeiras, o que se poderia delimitar para as normas imperativas, o jus cogens. Essa análise esclarece, entretanto, que, considerando que as acusações sejam feitas com base nessas normas consuetudinárias, a defesa dos acusados pode alegar que algumas das condutas a eles imputadas não são reprovadas pela comunidade internacional como um todo e, portanto, eles não poderiam ser por elas punidos.

Esse raciocínio não exclui o fato da vinculação ao Tribunal se dar pelo Conselho de Segurança, pois esta vinculação serve para legitimar o Tribunal a julgar esses indivíduos de países não-signatários, mas não vincula aos tipos penais que a eles podem ser imputados. Por isso é importante o debate trazido por Milanovi? sobre a natureza das normas do Estatuto. Não se poderiam julgar estes indivíduos, por mais que o Sudão, por exemplo, estivesse vinculado ao Estatuto, se não se considerar que a proibição do cometimento de tais crimes era anterior a prática deles também para os seus perpetradores.

Por fim, resta estudar os tipos de responsabilidade do direito, especialmente do Direito Internacional, para se compreender a mudança dos tipos de sanções aplicadas nesse âmbito, de um plano coletivo para o individual, nos casos de violação das normas internacionais.

3.2.3 Responsabilidade Coletiva x Responsabilidade Individual

No Direito Internacional, por muito tempo, a responsabilização por um ato ilícito, ou delito internacional, só poderia ocorrer por meio de uma sanção coletiva (fosse com a imposição do pagamento de uma indenização pelo Estado, fosse por meio de retaliações ou da guerra). Em outras palavras, o Estado era responsabilizado, mas, indiretamente, quem sofria a sanção eram todos os cidadãos, mesmo que em nada tivessem contribuído para o ato, unicamente por terem um vínculo jurídico com o responsabilizado. (KELSEN, 2010)

Nesse sentido, Kelsen considerava o Direito Internacional uma forma de direito primitivo, já que, além de as punições serem voltadas para a coletividade, o que imperava era o princípio da auto-ajuda. Ou seja, a aplicação da sanção não era feita por um órgão especial com poderes jurisdicionais, era descentralizada: quem teve seus interesses violados pelo autor do delito, poderia aplicar-lhe a sanção. (KELSEN, 2010) Isso é o que ocorria, via de regra, nas situações de guerra. Ao Estado que tinha um interesse violado, era considerado legítimo, pela comunidade internacional, que aplicasse uma sanção contra o Estado que lhe infligiu o dano, iniciando-se, normalmente, uma guerra.

 Os povos primitivos costumavam aplicar e acreditar nas sanções coletivas, fosse um castigo divino, fosse a punição de toda uma família ou clã em razão do delito cometido por apenas um de seus membros. A sanção coletiva também costuma ser aquela voltadas para as pessoas jurídicas que é, via de regra, o que ocorre no caso dos Estados, pessoas jurídicas de Direito Internacional por excelência. (KELSEN, 1995)

Quando um Estado comete um delito, toda a comunidade de pessoas a ele vinculadas pode sofrer os efeitos das sanções. Por exemplo, se um Estado invade parte do território de outro, além deste poder vir a sofrer com uma guerra, pode ser que venham a ser impostas outras sanções, como sanções econômicas, bloqueios comerciais, ou impedimentos de manter relações com outros países, etc. Nesse sentido, quem vai acabar realmente sofrendo com as sanções aplicadas, seja a guerra, sejam as demais represálias, é o povo que vai ter que se defender e que vai ser privado de meios para importar e exportar, por exemplo. Portanto, já que o Estado é uma entidade abstrata, uma pessoa jurídica, quem sofre com as sanções são os indivíduos, mas não como tais, e sim como uma coletividade vinculada juridicamente aquele Estado delinqüente.[77] (KELSEN, 1995)

Nesse sentido Kelsen ainda afirma (1995, p. 109):

As sanções específicas do Direito internacional, guerra e represálias, têm esse caráter [coletivo]. Na medida em que implicam privação forçosa de vida e liberdade de indivíduos, elas são dirigidas contra seres humanos, não porque esses indivíduos tenham cometido um delito internacional, mas porque são sujeitos do Estado cujo órgão violou o Direito internacional. No direito criminal moderno, porém, prevalece o princípio da responsabilidade individual.

Por outro lado, o mesmo autor afirma que no direito dos povos civilizados os indivíduos são responsabilizados pelas condutas por eles cometidos como tais. Nesses casos, para apurar a responsabilidade é averiguada a intenção, ou seja, a culpa do delinqüente, enquanto com relação à responsabilidade coletiva, esta é considerada sempre absoluta, não havendo como se mensurar os diferentes níveis de culpa para aplicar as sanções. (KELSEN, 2010)

Os indivíduos podem agir como órgãos do Estado quando as obrigações e direitos do Estado são suas obrigações e direitos. Todavia, agir em conformidade com esta ordem jurídica é um dever do indivíduo e, quando não o faz, a sanção deve se dirigida contra ele como tal, e não contra o Estado “já que um indivíduo é órgão [...] do Estado apenas na medida em que sua conduta se conforme com as normas jurídicas que determinam sua função. No momento em que um indivíduo viola uma norma jurídica, ele não é um órgão do Estado” (KELSEN, 1995, p. 199-200) Assim, quando um indivíduo comete um crime, violando a ‘vontade’ do Estado, a sua responsabilização, seja no âmbito interno ou internacional, deve ser feita de maneira individual e não coletiva, caso contrário estar-se-á a punir inocentes pela conduta de um único criminoso. Isso pode ser considerado ainda mais grave quando se está diante de países que possuem regimes ditatoriais apoiados apenas por uma minoria, já que as sanções internacionais com caráter coletivo irão atingir todos os indivíduos vinculados àquele Estado, tenham eles concordado ou não com as atitudes tomadas por seus governantes.

Por outro lado, há algum tempo já existem situações que o Direito Internacional impõe obrigações diretamente aos indivíduos, mas, estes primeiros casos, não se confundem com os crimes tratados anteriormente, como de guerra ou contra a humanidade, que podem ser imputados ao próprio Estado e praticados em nome dele. É o que acontece, por exemplo, como já referido no primeiro capítulo, nos casos de pirataria, quando o Direito Internacional permite que os Estados punam os agentes desse tipo de crime da forma que lhes convier, pois de acordo com o Direito Internacional essa conduta é criminosa e deve ser punida (KELSEN, 1995). Mesmo assim, é um primeiro sinal da imposição de um ‘dever’ pelo Direito Internacional diretamente ao indivíduo como tal. Muito embora não haja uma sanção específica a ser imposta, caso o indivíduo cometa atos de pirataria, poderá ser punido em qualquer lugar do mundo e esta punição será aceita pela comunidade internacional como legítima.

Na época em que Kelsen teceu essas reflexões, a instituição de um Tribunal Internacional Penal permanente ainda era um sonho muito distante. Todavia, com base nessa análise por ele feita é possível verificar de certo modo, uma evolução do direito, tanto interno, quanto internacional. Assim como nos povos primitivos as sanções eram coletivas e, com o passar do tempo foram se individualizando até que se chegou, ao menos nas civilizações ocidentais modernas, ao princípio de que uma sanção não pode ultrapassar a pessoa que praticou o delito, direta ou indiretamente, no âmbito do Direito Internacional, pode-se dizer que também há uma evolução nesse sentido.

Atualmente, muito embora as sanções contra os Estados como um todo, sejam retaliações ou guerras, ainda sejam comumente aceitas e aplicadas pela comunidade internacional, questiona-se cada vez mais a sua efetividade, já que quem normalmente acaba sofrendo é a população e não os governantes que tomaram as atitudes consideradas violadoras do Direito Internacional. Nesse sentido, a aplicação e a efetividade da justiça internacional penal são muito importantes, especialmente quando os ilícitos são cometidos por Chefes de Estado, como Omar Al-Bashir, que normalmente se considerariam cobertos pelas imunidades, já que tentam enquadrar suas atitudes como políticas de Estado para isentar-se de qualquer responsabilidade individual e acabam prejudicando toda uma população por atitudes cometidas com o apoio de apenas uma parte desta.

A responsabilização individual é importante também na medida em que muitas das violações praticadas não acontecem contra um Estado diferente. Grande parte dos crimes de genocídio, contra a humanidade e até de guerra, são cometidos por grupos, sejam do governo ou não, dentro do território de um mesmo Estado, contra nacionais deste mesmo país. Dessa forma, uma sanção coletiva seria, além de provavelmente ineficaz, injusta, pois atingiria tanto os perpetradores dos crimes quanto as suas vítimas, sendo que estes existem em ambos os lados de uma luta, normalmente. Com a identificação e persecução dos indivíduos responsáveis, por mais que não sejam de todos eles, ao menos serão poupados os inocentes, e os líderes e mentores das práticas criminosas, espera-se, sentir-se-ão ao menos um pouco mais vulneráveis, pois haverá a possibilidade de serem responsabilizados individualmente por suas condutas.  

Bianchi (2009, p. p. 24, tradução livre) ressalta que:

Em geral, a dualidade dos regimes de responsabilidade do estado e individual não devem ser vistas como um desenvolvimento negativo. Apesar de sua operação diferente, os dois regimes podem agir de forma complementaria e aumentar a eficácia da justiça internacional penal. O caráter predominantemente indenizatório da responsabilidade do estado e o caráter punitivo do direito processual penal contra indivíduos são parte e parcela da estrutura dos remédios contemporâneos do direito internacional.[78]

Em outras palavras, tanto a responsabilização do Estado quando a dos indivíduos é importante e devem sem aplicadas de forma complementar. Ao Estado pode ser aplicada uma sanção, no âmbito de tribunais de direitos humanos, por exemplo, de indenização. Já os perpetradores de condutas que violam estes direitos, quando configurarem crimes internacionais, deverão por estes serem julgados, sejam nos seus países, quando possível, seja por um tribunal internacional, pois a garantia da impunidade é vista como um dos incentivos a, especialmente, altos membros de governo e forças armadas, para o cometimento das mais diversas atrocidades, muitas vezes, contra o seu próprio povo.

3.3 OMAR AL-BASHIR E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Apresentados estes aspectos, volta-se ao caso de Omar Al-Bashir, para ilustrar o que foi explanado. Pelos fatos apurados pela Comissão Internacional para investigação sobre Darfur e pelo Procurador do TPI, Omar Al-Bashir seria perpetrador indireto de crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Sua situação foi submetida ao TPI pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, já que o Sudão não é signatário do Estatuto de Roma e, apesar de ele ser um Chefe de Estado, as condutas criminosas são imputadas a ele como indivíduo, sendo que como tal deverá sofrer as devidas sanções.

Os crimes imputados têm natureza de jus cogens. Assim, tanto a proibição da sua prática, quanto a imposição de sua persecução, são normas imperativas de direito internacional. Do mesmo modo, entendeu o TPI-ex-I no caso Tadi? que “certos crimes como crimes de guerra e crimes contra a humanidade ofendem o interesse da comunidade transcendendo o interesse de um Estado individual e chocam a consciência da humanidade, e consequentemente justificam a ação no interesse da comunidade para processar e suprimir esses crimes.[79]” (ORAKHELASHVILI, 2008, p. 291, tradução livre) Essa afirmação serve também para o caso do Sudão. Os crimes ali cometidos ofendem a comunidade internacional como um todo e, portanto, pelo próprio Direito Internacional, há um dever imperativo de suprimir estes crimes e processar os seus responsáveis.

Nesse caso, algum Estado poderia ter invocado a jurisdição universal. Já que:

A criminalização e subsequente jurisdição universal sob tratados humanitários refletem o fato de que os crimes jus cogens estão sujeitos a persecução em qualquer lugar e quem quer que o tenha cometido, independentemente de qualquer ligação com o Estado do foro para o crime em questão. Essa jurisdição universal reflete a natureza da jurisdição universal para os crimes do jus cogens – persecução sem qualquer vínculo com o crime. Isso corre em paralelo ao fato que os tratados humanitários operam no interesse da comunidade e incorporam obrigações integrais não divisíveis em relações bilaterais, ou seja, eles incorporam o jus cogens e prevêem a sua jurisdição universal para as violações que eles declaram objetivamente repreensíveis.[80] (ORAKHELASHVILI, 2008, p. 292)

Todavia, como essa é uma questão ainda controversa e, no caso em apreço, as violações, em geral, não ultrapassaram as fronteiras do próprio Estado, ou quando o fizeram – como no caso do contingente populacional que se deslocou de Darfur para o Chade – o país envolvido também não teria força ou estrutura para exercer essa jurisdição, a viabilidade deste princípio ser posto em prática é muito baixa, além de politicamente não ser interessante para nenhum país específico assumir a responsabilidade.

 Deste modo é que se mostrou pertinente a previsão de que o Conselho de Segurança pudesse submeter casos ao TPI. Este órgão assim, com base nos poderes que lhe foram outorgados na Carta das Nações Unidas, aceita, inclusive, pelo Sudão, pode investir o TPI de legitimidade para julgar os crimes ocorridos no território desse país, muito embora o Tribunal não tenha jurisdição universal. Desta forma, independentemente de ter o Sudão aceito ou não o TPI, a combinação do fato de os crimes praticados serem jus cogens, com os poderes de manutenção da paz e da segurança internacionais conferidos ao Conselho de Segurança, permitem que Omar Al-Bashir seja investigado e processado perante o tribunal, bem como, caso consigam o deter para julgamento, ser condenado e penalizado individualmente pelos crimes que foi responsável e que, como sempre ressaltado por Orakhelashvili, são de interesse da comunidade internacional como um todo.

Ainda, como já adiantado na exposição dos questionamentos de Milanovi?, apesar dessa combinação anteriormente exposta legitimar o julgamento de Omar Al-Bashir, no que concerne à questão material dos crimes, considerando-os como jus cogens e, portanto, que o julgamento se daria não com relação aos tipos descritos no Estatuto de Roma, mas sim nas condutas já condenadas pela comunidade internacional, entende-se que permitirá, a sua defesa, alegar que certas condutas a ele imputadas não tem caráter de jus cogens e portanto, não poderiam ser processadas. Na prática, entretanto, como são várias as condutas imputadas e, a maior parte delas é realmente considerada reprovável pelo jus cogens, seu processamento, considerando-se o Estatuto como uma norma jurisdicional, não teria qualquer problema.

Por outro lado, se fosse feita uma análise positivista do Estatuto e considerá-lo apenas como norma substantiva, tornar-se-ia mais difícil legitimar a punição de Al-Bashir pelos crimes cometidos antes de 2005, já que, nesse período, ele não estaria vinculado ao TPI e, portanto, seu processamento estaria violando o princípio exposto no próprio Estatuto do nullum crimen, nulla poena sine praevia lege. Porém, esta questão ainda deverá ser levantada pelos defensores dos acusados nessa situação para que seja possível uma análise mais completa, tanto teórica quanto prática, desta questão que é bastante complexa e cria inúmeros questionamentos. No caso de Omar Al-Bashir, verifica-se, no entanto, que apesar de os mandados de prisão serem requeridos e deferidos com bases nos crimes previstos no Estatuto, poder-se-ia dizer que o embasamento e a legitimação para a sua persecução estão, na verdade, no jus cogens, já que praticados antes dele ter qualquer vinculação com o Estatuto.

Por fim, cumpre explicar a importância da responsabilização individual no caso do Sudão. Primeiramente, o que é importante destacar é que os crimes ocorreram dentro do território do Estado, contra nacionais deste mesmo. Ainda, conforme visto, por estas violações serem de interesse da comunidade internacional como um todo, haveria a permissão do Direito Internacional para a aplicação de sanções, mas, com base no princípio da auto-ajuda isso seria inviável, já que não houve outro Estado envolvido, sendo então, com base no próprio jus cogens a legitimação da aplicação dessa sanção.

A sanção, entretanto, caso fosse coletiva, iria atingir toda a população do país, o qual já é bastante pobre, causando mais sofrimento aos inocentes do que aos verdadeiros responsáveis pelas atrocidades cometidas. Muito embora desde antes da instituição do TPI sanções, especialmente econômicas, tenham sido aplicadas ao país, em nada contribuíram para a resolução dos conflitos no local, além de não serem muito eficazes neste caso, já que a China, maior parceira comercial do país, continua suas relações normalmente. (BBC, 2007)

Nesse caso, muito embora pelo estágio de desenvolvimento ainda não completo da justiça internacional penal, a qual não possui um poder de polícia ou qualquer outro que pudesse forçar a prisão de Omar Al-Bashir onde quer que ele esteja, a sua persecução, ao menos, poupa a população inocente de mais privações dos que a que já vem sendo impostas pelo exterior e pelo próprio governo. Muito embora seja essa a intenção, sabe-se que, na prática, a penalização de condutas não tem o condão de evitar que outras iguais sejam cometidas. Todavia, tendo em vista a natureza dos crimes cometidos e o fato de seus perpetradores em geral, acreditarem na sua impunidade, a eventual condenação de Omar Al-Bashir poderá servir de exemplo para outros criminosos que acreditam que nunca serão punidos, pois acobertados pelas razões de Estado.

Enfim, apesar de ainda haver quem acredite que os indivíduos sequer são sujeito de Direito Internacional, verifica-se que este vem, juntamente com os mecanismos de sua implementação, evoluindo no sentido de vincular todo e qualquer indivíduo às suas normas. O reconhecimento do caráter de jus cogens às normas que proíbem a cometimento dos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra, e a criação de mecanismos para a existência de uma ‘quase-jurisdição universal’ no âmbito do TPI, demonstram a preocupação da comunidade internacional em responsabilizar individualmente os responsáveis por estes, e não apenas aplicar sanções de caráter coletivo contra a população, ou indenizatório em favor das vítimas.

Assim os indivíduos, especialmente aqueles que estão em posição de comando dentro de suas comunidades, sejam Estados reconhecidos ou não, não podem mais justificar suas condutas criminosas com base nas razões de Estado, pois nem a este, nem ao indivíduo, é permitida a violação das normas reconhecidas como de interesse de toda a humanidade. Portanto, apesar das muitas inconsistências que ainda existem com relação à aplicabilidade das normas de Direito Internacional Penal, torna-se patente que a comunidade internacional não tolera mais atos de tamanha atrocidade e está em busca de uma forma de punir os responsáveis por elas sem penalizar ainda mais as comunidades que já foram vítimas dos crimes e, injustamente, acabam sendo também ‘vítimas’ das sanções aplicadas ao seu Estado.

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Sobre a autora
Arisa Ribas Cardoso

Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - PPGD/UFSC. Bacharel em Direito e em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Arisa Ribas. O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3582, 22 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24245. Acesso em: 19 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado como monografia de conclusão do curso de Direito em novembro de 2011 na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

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