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Precatórios - Emenda Constitucional 62/2009: da violação das garantias constitucionais: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada

25/04/2013 às 16:01

Resumo:


  • A Emenda Constitucional 62/2009 fere direitos constitucionais, como o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito, trazendo insegurança jurídica aos jurisdicionados.

  • A aplicação da EC 62/2009 implica em uma moratória que viola princípios constitucionais, como a separação dos poderes, a segurança jurídica e a celeridade processual, além de eternizar o pagamento de precatórios.

  • A inconstitucionalidade da Emenda se dá ao desrespeitar as garantias individuais, como o direito adquirido, e ao criar um regime de pagamento diferenciado que prejudica o cumprimento de decisões judiciais e a eficiência da administração pública.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Emenda Constitucional 62/2009 trazia ao jurisdicionados uma imposição de inércia diante da mora albergada pela norma, repetindo as normas anteriores quanto a prorrogação do débito relativo a precatórios.

"Num país constitucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a carta constitucuional – ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento." – Eça de Queiroz

Resumo: A segurança jurídica é questão de especial importância para a estabilidade das relações existentes entre jurisdicionados. Não por menos que a Constituição Federal prevê no artigo 5º, inciso XXXVI, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. No entanto, os jurisdicionados tem enfrentado uma situação peculiar após a promulgação da Emenda Constitucional 62/2009, pois ela fere a garantia constitucional do direito adquirido. O presente trabalho visa então à análise da violação desta garantia constitucional em afronta direta à norma constitucional.


INTRODUÇÃO

A Constituição Federal prevê no artigo 5º, XXXVI[1], inserido no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

O texto constitucional visa a proteção e a garantia de uma segurança jurídica quanto as normas no tempo, evitando a eternização de decisões judiciais e garantindo a estabilidade das decisões emanadas pelo Poder Judiciário. 

No entanto, a Emenda Constitucional 62/2009 fere o direito adquirido constitucionalmente garantido quando preconiza no artigo 97, §15, do ADCT, além de nova e temerária dilação do prazo para pagamento em até 15 (quinze anos), que os precatórios parcelados na forma do artigo 33 ou do artigo 78 do ADCT, ainda não quitados, adotam o regime especial.

Diz-se isto porque as parcelas de precatórios vencidas à época da vigência da Emenda Constitucional 62/2009, não podem sofrer a retroação de uma lei posterior, especialmente se prejudicar os interesses do credor.

O presente trabalho é, portanto, uma análise crítica da Emenda Constitucional 62/2009, criada ao arrepio da Carta Magna, em confronto direto com a garantia constitucional de proteção ao direito adquirido, subtraindo do credor de precatório, a aplicação da norma jurídica que lhe albergava, eternizando a liquidação do débito, que em muitos casos, tornam-se direito de herança, tão tardio que é o pagamento, quicá, quando este ocorre.


A Inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 62/2009

O constituinte originário de 1988, no artigo 33 do ADCT, previu que, excluídos os créditos com natureza alimentar, o montante dos precatórios judiciais não pagos à data da promulgação da Constituição, já considerados juros e correção, seria pago em moeda corrente, atualizado, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de 8 (oito) anos, contando-se a partir de 1º de junho do ano de 1989.

Com o advento da Emenda Constitucional de n° 30/2000 prevendo nova e não menos odiosa moratória, acrescentou o artigo 78 ao ADCT. O referido artigo estendeu ainda mais o prazo para pagamento de precatórios, atingindo o prazo de 10 (dez) anos para quitação dos mesmos.

E depois, com o advento da Emenda Constitucional nº 62/2009, o seu artigo 97, §15, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu, além de nova e temerária dilação do prazo para pagamento em até 15 (quinze) anos, que os precatórios parcelados na forma do artigo 33 ou do artigo 78 do ADCT, ainda não quitados, adotariam o regime especial.

Por este novo regime, os entes federativos poderão optar entre duas formas de pagamento, a critério do Poder Executivo responsável, quais sejam:

i) promover o depósito de determinada quantia mínima por ano para pagamento dos precatórios;

ii) efetivar um regime especial com o depósito de determinado montante em conta especial, devendo 50% do valor ser destinado para o pagamento segundo a ordem estabelecida pelo artigo 100 da Constituição Federal, e 50% ser destinado ao pagamento através de leilão[2], sendo adimplido o credor que oferecer o maior deságio em relação ao débito - a norma determina o depósito do valor do saldo total dos valores devidos a título de precatórios em uma conta especial, acrescido de juros de mora e correção monetária, sendo necessário o depósito anual equivalente ao total do valor devido reduzidas as amortizações realizadas e dividido pelo número de anos em que faltam para completar 15 anos do início da efetivação do regime especial.

Pois bem. Apesar de o artigo 60 da Constituição Federal[3] prever a possibilidade de ser a Constituição emendada pelo Congresso Nacional, de modo que, promulgada a EC 62/2009, fizeram crer os legisladores, que essa emenda teria força de norma constitucional, o §4° do mesmo artigo restringe as hipóteses de emenda constitucional no seguinte caso especificamente: "§4°. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir [...] IV - os direitos e garantias individuais".”

Assim, o regime diferenciado trazido pela referida Emenda, ao determinar a suspensão da obediência da ordem dos pagamentos dos precatórios já vencidos em relação a qualquer ente público, impede o interessado de requerer o sequestro de verbas públicas no caso do descumprimento da ordem dos precatórios.[4] Há, assim, violação ao princípio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, que são garantias constitucionais, instaurando-se a insegurança jurídica e delongando, ainda mais, a espera pelo recebimento de precatórios que, mesmo abrangidos pelo regime anterior, já estavam eivados por regra de duvidosa constitucionalidade.

Aliás, o tema sobre a inconstitucionalidade é bem abordado pelo Ministro Cezar Peluso em seu voto-vista proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.356[5]:

[...]

O legislador derivado, no entanto, ao rever ou ao emendar a obra do constituinte original, não pode alhear-se às regras materiais e formais de produção normativa constantes da Constituição, porque, como expressão da vontade e do poder incontrastáveis daqueloutro, tais regras constituem os próprios limites da concepção e da atuação do poder constituinte derivado. E, no exercício do mister de rever, reformar ou emendar, sujeita-se assim ao controle concreto, abstrato de constitucionalidade das normas que promulgue.

Desse estrito ponto de vista, admite-se distinção entre normas constitucionais ditas superiores e normas constitucionais inferiores, no sentido de que, de acordo com a ordem constituída e a diversidade dos poderes constituintes, só as segundas possam ser modificadas pelo legislador derivado, cuja competência nasce da própria Constituição, reputando-se superiores as que, por decisão normativa do constituinte original, não possam sê-la, porque sua modificação tenderia a corroer princípios fundamentais da ordem que instituiu, ou seja, tal mudança corresponderia não a revisão ou emenda, mas a mudança da Constituição mesma, na identidade político-ideológica do seu todo.

Ora, já ninguém tem dúvida de que, à luz dessa distinção, é normal superior e, como tal, insuscetível de modificação por ato do contribuinte derivado, a regra objeto do disposto no art. 60, §4°, da vigente Constituição da República, em especial – porque relevante ao caso – a do seu inciso IV, que proíbe a simples deliberação de proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Tampouco há dúvida de que tão explícita limitação material, cujo sentido manifesto é o de abortar já o simples processo legislativo de emenda contrária à subsistência dos direitos e garantias individuais, apanha a fortiori, nas malhas de seu veto, emenda constitucional que, sem abolir como classe tais direitos e garantias, lhes negue eficácia, ainda que temporária e circunstancial. O que está proibido a título de supressão de princípios, também o está, por mui boa consequência, a título de supressão dos efeitos práticos que produziria a incidência dos mesmos princípios que produziria a incidência dos mesmos princípios sobre um conjunto determinado de fatos que interessam a particular categoria de pessoas. O que, com a cláusula, chamada pétrea, pretende a Constituição resguardar, não é tanto a instituição dos princípios em si, mas sobretudo aquilo que, em termos concretos, os direitos e as garantias representam aos cidadãos nas perspectivas de realização de seu projeto histórico, sob o pálio de um Estado Democrático de Direito, ou seja, os efeitos práticos da incidência dos princípios sobre fatos da vida. (grifo do autor).

Desta feita, em consonância com o inciso IV, do "§4° do artigo 60 da Constituição Federal, a Emenda 62/2009 é inconstitucional porque fere direitos e garantias individuais daqueles credores de precatórios já vencidos, constituídos, pois, pelo direito adquirido de ser-lhe aplicada a norma vigente à época de sua constituição. Este tema será abordado no tópico adiante.


Das ofensas às garantias constitucionais

Com a edição da Emenda Constitucional 62/2009, incluindo os precatórios pendentes de pagamento ao novo regime de pagamento, houve ofensa ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada em detrimento do credor, trazendo insegurança jurídica aos jurisdicionados, além do desrespeito à irretroatividade das leis que, sobre este tema, bem comenta Rubens Limongi França[6]:

A constante interferência das leis novas nas relações entabuladas no regime da lei antiga geraria a mais abstrusa instabilidade jurídica, incompatível com a segurança que, ao contrário, o Direito deve propiciar aos cidadãos. Fora tal, com efeito a negação daquela fides, que o indivíduos devem ter na eficácia do sistema, da qual já tinham noção os próprios romanos e que levou Teodósio o Grande na sua célebre regra, a falar em calumnian facere, em relação à retroatividade.

E ainda sobre o tema da irretroatividade, Cláudia Toledo completa:

A lei relativa à fase dinâmica visa aos meios para se chegar a uma certa situação jurídica e não à situação jurídica em si mesma, isto é, determina como se constitui ou extingue uma situação jurídica, quais os fatos e ou atos jurídicos são considerados suscetíveis de gerar sua constituição ou extinção, quais as suas condições de validade. Uma lei que tenha por objeto regular as condições de constituição ou extinção de uma situação jurídica não pode, então, questionar a validade dos fatos anteriores à sua entrada em vigor, sob pena de retroatividade. E não pode fazê-lo porque os indivíduos agem conforme a ordem jurídica existente, criam situações jurídicas com base nela, de acordo com os requisitos que ela exige, não podendo prever quais condutas devem adotar para produzir atos jurídicos, isto é, válidos, regulares. A lei só pode obrigar a partir do momento em que existe, pois, antes disso, seu conhecimento é impossível.[7]

[...]

Os direitos de crédito são aqueles que importam em exigibilidade de uma obrigação relativamente a determinada(s) pessoa(s); os direitos reais, aqueles que atribuem ao sujeito a dominação direta sobre o objeto, ora abrangendo todas as suas qualidades, ora uma parte delas. Os direitos de crédito são, então, na sua essência, temporários, extinguindo-se com o cumprimento da obrigação jurídica; seu efeito essencial é fazer nascer o direito à execução do crédito. Que a execução não seja feita imediatamente não altera o direito existente, pelo que, para interpretar e julgar os efeitos dos direitos de crédito, o juiz deve remontar ao dia do nascimento ou da criação do direito. É nesse momento que os efeitos foram definidos ainda que não instantaneamente executados, perpetuando então o direto de crédito por certo período de tempo, mas disciplinado pela lei em vigor quando do seu estabelecimento, sem modificação por lei posterior.

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Consideram-se então, segundo Roubier, como efeitos produzidos no dia do nascimento do crédito a modalidade e o regime das obrigações, bem como as consequências do atraso na sua execução. Porém, são entendidos como efeitos futuros da obrigação, e não como condições de validade da sua constituição, sendo então eregidos pela lei nova: as formas de constituição de mora, pois as leis de “forma” são sempre as atuais, a taxa de atualização monetária dos contratos, desde sua entrada em vigor (o que foi contestado por Gabba e Affloter, mas afirmado pela jurisprudência francesa de então, posição acertada para a manutenção do valor monetário real da obrigação); os meios de preservação em benefício do credor, como a separação de patrimônios; o procedimento de execução.[8]

Desta forma, os pilares jurídicos de que: todos são iguais perante a lei, a todos são garantidos o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade; a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, em sua integralidade, são afrontados pela Emenda Constitucional 62/2009 quando determina que os precatórios não quitados serão abarcados por esta emenda, que por sua vez, proíbe o sequestro de rendas da entidade devedora.

Há redução drástica da força normativa das decisões transitadas em julgado do Poder Judiciário ao se acatar a modificação trazida pela Emenda Constitucional 62/2009, pois é exatamente o que ocorre ao se aplicar a ordem cronológica por ela proposta, ou seja, em relação a somente 50% dos valores depositados para atender aos débitos da Fazenda Pública. A determinação do Judiciário torna-se, em outras palavras, inócua, afastando também por completo o princípio constitucional da eficiência da Administração Pública.

Desta forma, acatar a referida emenda é aceitar a criação de uma inovação que violenta em demasia o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito e acabado, que são garantias individuais constitucionais.

Cezar Peluso complementa sobre o tema em seu voto-vista[9]:

[...]

É que, ao impor aos titulares de direitos subjetivos hospedados em precatórios pendentes à data do início de sua vigência nova situação jurídico-subjetiva material, violou os respectivos direitos, adquiridos nos termos do art. 100 da Constituição. Na verdade, expedido, em execução definitiva, o precatório, desse ato resultou ao credor não mero direito processual, mas direito subjetivo material de receber a dívida na forma então capitulada pelo art. 100 da Constituição da República, ou seja, até 31 de dezembro do exercício seguinte, o que representava vantagem econômica de perfil claro e indiscutível, incorporada como tal ao patrimônio jurídico da pessoa. Se lhe deu a Emenda outro perfil, com não menos clara e indiscutível desvantagem econômica, submetendo o credor a moratória de até dez anos, então, quando pouco, mutilou o direito adquirido sob o império da norma geral (art. 100), subtraindo-lhe a qualificação de pronta exigibilidade ao crédito reconhecido e garantido por res iudicata.

[...]

E esse direito adquirido, mutilou-o a Emenda, porque aquela norma excepcional não se radica em nenhum fato extraordinário, capaz de justificar tal exceção, nem quando incompatível com a Constituição da República, porque a inadimplência sistemática das Fazendas Públicas, cuja evocação é a única coisa concebível como escusa desse excesso do constituinte derivado, era e é fruto não de dificuldades financeiras súbitas e imprevisíveis, senão do permanente descaso administrativo e da rotineira prevalência doutros interesses sobre o dever de cumprir as decisões judiciais e a Constituição mesma. Não pagar precatórios sempre foi, entre nós, apanágio de má política. (grifo nosso).

Portanto, a Emenda Constitucional em comento, ao criar regime de pagamento diferenciado em desrespeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e a coisa julgada, viola a regra elementar de que o pagamento deve ser feito, pura e simplesmente, sem subterfúgios, já que garantido individualmente mediante apreciação judicial, insuscetível de alteração por meio de emenda ou qualquer outro meio.

Especificamente quanto ao direito adquirido, Rubens Limongi[10] faz as seguintes ponderações:

A face de quanto vai exposto a respeito da matéria, pedimos vênia para ponderar que o conceito de Direito Adquirido pode ser o seguinte: É a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto.

E sobre as ofensas às garantias constitucionais, em decisão da lavra do Desembargador do Tribunal de Justiça Ivan Sartori na Intervenção Municipal n° 994.09.229279-4, colaciona-se in verbis:

Constata-se que a emenda referida introduziu no ordenamento jurídico nova moratória, até que seja editada a lei complementar prevista no §15 do art. 100, segundo a redação que lhe deu, moratória essa a abarcar todos os precatórios pendentes (Administração direta ou indireta) e os emitidos durante o período de vigência da dilação, sem exceção, isso em favor dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Essa moratória foi denominada "regime especial", ficando afastada a incidência do art. 100, ressalvados os §§ 2o (humanitário e credores com 60 anos ou mais), 3º (RPV), 9o (compensação de débitos a favor da Fazenda), 10 (procedimento para a compensação), 11 (precatório em troca de imóvel da entidade devedora), 12 (incidência dos índices e apenas de juros simples, ambos da caderneta de poupança), 13 (cessão) e 14 (procedimento relativo à cessão), todos segundo a nova redação. Mas, inconcussa a inconstitucionalidade do regime que se pretende implantar, quando abarca precatórios pendentes e até aqueles em que presente mora importante do devedor [...], além das inconstitucionalidades materiais, tendo em vista os princípios que regem o estado democrático, a dignidade da pessoa humana, a separação dos Poderes, a segurança jurídica, o direito de propriedade, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a moralidade, a razoável duração do processo e a igualdade. [...] E, realmente, na parte que alcança precatórios a ela anteriores, a emenda atual está fadada ao mesmo destino meritório, justamente porque essa retroação fere garantias constitucionais básicas, mormente aquelas previstas no art. 5o, inciso XXXVI, da Lei Maior (direito adquirido e coisa julgada), a decorrerem de cláusula pétrea imutável pelo poder constituinte derivado, a teor do art. 60, § 4o, inciso IV.

Diante de tais fatos, não seria exagero afirmar que a presente situação fere até mesmo a separação dos Poderes, eis que o direito assegurado pelo Poder Judiciário, na prática, não seria mais plenamente implementado, sendo, portanto, ambos os regimes trazidos pela Emenda Constitucional n° 62/2009 incompatíveis com a própria razão de existir dos precatórios. É o parecer do Desembargador Ivan Sartori quanto a este tema na decisão acima identificada:

Manifesto, ainda, o abuso no poder de legislar, como argüido em uma das ações diretas, considerado que se trata da terceira moratória em favor do Poder Público (houve antes as dos arts. 33 e 78 do ADCT, o último advindo por força da EC 30/00), sucedendo ser patente o maltrato aos princípios da moralidade e da razoabilidade (art. 37 da Carta da República), sem falar que, ferindo a coisa julgada, porque já estabelecidos por decisão judicial definitiva o crédito e a forma de pagamento, segundo o regramento então vigente, a emenda também afronta a independência que deve haver entre os Poderes (art. 2o da Lei Maior). Ensina Alexandre de Moraes: "(...) o legislador constituinte, ao proclamar a existência de poderes da República, independentes e harmônicos entre si, cada qual com sua função soberana, buscou uma finalidade maior, qual seja, evitar o arbítrio e garantir a liberdade individual do cidadão. Ambas as previsões vieram acompanhadas pelo manto da imutabilidade, pretendendo o legislador constituinte evitar o futuro desequilíbrio entre os detentores das funções estatais. A harmonia prevista entre os Poderes vem acompanhada de um detalhado sistema de freios e contrapesos (checks and balances), consistente em controles recíprocos." (Direito Constitucional, São Paulo: Atlas, 24a. ed., 2009, p. 512). Não é o que se observa aqui, como exposto. Daí a inconstitucionalidade manifesta da retroação enfocada. Ressalte-se que a este Órgão Especial cabe apreciar a inconstitucionalidade incidental (Art. 97 da CF e Súmula Vinculante 10 do STF), devendo, pois, com muito mais razão, pronunciá-la ao ensejo de decisão final que deva proferir, inclusive no âmbito administrativo, como no caso. Por conseguinte, arreda-se, na espécie, a incidência da EC 62/09, por desrespeitar os arts. 2o; 5o, inciso XXXVI; 37 e 60, § 4o, inciso IV, da Constituição Federal.

A violação das garantias constitucionais traz a tona um questionamento acerca de saber qual o limite da soberania do Estado, aqui incluídos os três Poderes. Cabe ao legislativo normatizar lei em prejuízo do direito já adquirido? E ao Judiciário, cabe aplicar lei inconstitucional, ferindo vários princípios e garantias, como o do direito adquirido, da coisa julgada, do ato jurídico perfeito, da morosidade, da celeridade processual? E ao Executivo? Cabe a ele eternizar o cumprimento da obrigação de pagar os precatórios? A resposta a estas perguntas é: não! Mas a sensação que esta situação específica criada com a edição da Emenda 62/2009 é de impunidade do poder público devedor, já que se cria moratória em cima de moratória causando o alongamento da dívida por anos ou décadas.


4CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Emenda Constitucional 62/2009 trouxe ao jurisdicionados uma imposição de inércia diante da mora albergada pela norma, repetindo as normas anteriores quanto a prorrogação do débito relativo a precatórios.

Além disso, a violação das garantias constitucionais do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito e acabado, traz a insegurança jurídica aos jurisdicionados e a percepção de que a supremacia do Estado ao legislar contrariamente à sua própria Constituição deve prevalecer.

Mas pior do que isso é ver créditos se transformar na maioria dos casos em herança, porque a demora (e a mora da mora) para pagamento está sob o controle (e vontade) do Poder Legislativo e Executivo, e ainda, da inércia do Poder Judiciário quando lhe são postas estas questões, que simplesmente ficam sob o manto da inconstitucionalidade acobertada.


Notas

[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

[2] O Governo do Estado de São Paulo alterou o percentual destinado ao pagamento e leilão conforme o Decreto nº 58.298, de 14 de agosto de 2012:

Artigo 1º - O artigo 1º do Decreto nº 57.658, de 21 de dezembro de 2011, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Artigo 1º - Dos recursos que, nos termos do artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e artigo 1º, "caput" e § 1º do Decreto estadual nº 55.300, de 30 de dezembro de 2009, durante o exercício de 2012 forem depositados em conta própria para o pagamento de precatórios judiciários, o Estado de São Paulo opta, como previsto no inciso II do artigo 2º do referido decreto, que no exercício de 2012 sejam aplicados:

I - do montante de recursos depositados de 1º de janeiro a 30 junho de 2012, 50% (cinquenta porcento) no pagamento em ordem única e crescente de valor por precatório, nos termos do inciso II do § 8º do referido artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

II - do montante de recursos depositados de 1º de julho a 31 de dezembro de 2012:

a) 47% (quarenta e sete porcento) no pagamento por meio de leilão, nos termos do inciso I do § 8º do referido artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

b) 3% (três porcento) no pagamento em ordem única e crescente de valor por precatório, nos termos do inciso II do §8º do referido artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.". (NR)

[3] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

[4]Art. 97. [...]

§ 13. Enquanto Estados, Distrito Federal e Municípios devedores estiverem realizando pagamentos de precatórios pelo regime especial, não poderão sofrer sequestro de valores, exceto no caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1º e o § 2º deste artigo.

[5] PELUSO, Cezar. Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade nº 2.356 – Distrito Federal. Revista do Advogado, São Paulo, n. 111, 2011, p. 8.

[6] FRANCA, Rubens Limongi. Irretroatividade das leis e o direito adquirido. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.  p. 210.

[7] TOLEDO, Cláudia. Direito adquirido e estado democrático de direito. São Paulo: Landy Editora, 2003. p. 159-160.

[8] TOLEDO, Cláudia. Op. cit., p. 162-163.

[9] PELUSO, Cezar. Op. cit, p. 9.

[10] FRANCA, Rubens Limongi, Op. cit., p. 231.

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Sobre a autora
Marli Emiko Ferrari Okasako

Advogada. Mestranda em Teoriado Direito e do Estado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OKASAKO, Marli Emiko Ferrari. Precatórios - Emenda Constitucional 62/2009: da violação das garantias constitucionais: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3585, 25 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24296. Acesso em: 22 dez. 2024.

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