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O processo como instituição no Estado pós-moderno

01/11/2001 às 01:00
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O Estado da pós-modernidade, na assertiva de Rosemiro Pereira Leal é aquele concebido na forma democrática, consoante o disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil e que deve estar disposto e preparado, também institucionalmente para garantir o exercício da soberania popular. Soberania que decorre do fato de que em nome do povo o poder deverá ser exercido e o exercício de tal poder se dará por meio de representantes eleitos, mas também diretamente.

Um enfoque parecido é observado no texto de Dinamarco/Cintra/Grinnover onde está consignado que as bases da filosofia política liberal são repudiadas por este Estado moderno que "pretende ser, embora sem atitudes paternalistas", "a providência de seu povo", pois deve assumir sob o pálio da administração pública certas funções essenciais ligadas à vida e ao desenvolvimento dos indivíduos que compõem esta abstração que é a nação.

Neste ambiente emerge a idéia segundo a qual, jurisdição é direito-garantia sem o qual nenhum dos direitos, reconhecidos, declarados ou constituídos pela Lei Magna ou por outro documento legal, tem exercício assegurado e lesão ou ameaça desfeito eficazmente. Conforme nos ensina a Profª Carmen Lúcia Antunes Rocha, tal entendimento aponta para a conclusão de que não há Constituição verdadeira sem jurisdição garantida.

Diferentemente dos Estados Autocráticos (também reconhecidos como estados de direito), no Estado Democrático, a jurisdição se volta para o recebimento das pretensões do cidadão, diante do princípio da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário em caso de ameaça ou lesão a direito, sendo a justiça um monopólio estatal na medida em que veda totalmente ao indivíduo, quaisquer possibilidades de exercício arbitrário de suas razões. Desta estrutura decorre uma necessidade de se proporcionar um amplo direito de acesso à jurisdição, que se apresenta em três fases: a) o acesso ao poder estatal prestador da jurisdição; b) a eficiência e prontidão da resposta estatal à demanda de jurisdição; c) a eficácia da decisão jurisdita.

Os princípios fundamentais do ordenamento constitucional são sempre informadores da vivência democrática e da ampla participação político-jurisdicional. Neste contexto, Baracho diz que "a judicatura, em um sistema democrático, vem merecendo consagração constitucional, através da aplicação do princípio da participação popular na administração da justiça, como reza a Constituição Italiana, no seu artigo 103", sem que se negue, é claro, a ínfima participação técnica do juiz e do advogado na execução da função jurisdicional.

Os princípios gerais estabelecidos na Constituição são levados em conta pelo exercício da função jurisdicional, dado que é princípio processual básico, o que garante o direito de ação e de defesa. Desta forma, o Direito Constitucional moderno inclui as garantias dos direitos fundamentais, que se efetiva por meio de ações, processos e procedimentos constitucionais, que tornam possível a participação da cidadania, em seus diversos aspectos e conseqüências.

Como dito alhures, não se trata de uma visão paternalista que atribui ao Estado uma obrigação, porém colocada como se fosse uma espécie de benesse, favor ou assistencialismo prestado à cidadania. O direito ao processo como direito púlico-subjetivo decorre da superioridade da Constituição em relação ao próprio Estado. Rosemiro Pereira Leal nos mostra com base na moderna doutrina constitucional que, a Constituição deve ser encarada não como um instrumento do estado, mas como "um texto articulador e legitimante de instituições jurídicas, em que o Estado comparece como uma delas e com funções específicas, sem a conotação hegeliana de expressão entitiva superior, criador de direitos, condutor único e controlador normativo, soberano e absoluto da sociedade política", concluindo ainda que atualmente a própria Constituição é erigida à categoria de instituição jurídica inviolável.

Pacífica é a visão do direito processual como Direito Público. De acordo com Humberto Theodoro Júnior, o direito processual pertence ao grupo das disciplinas que formam o Direito Público, pois regula o exercício de parte de uma das funções soberanas do Estado, que é a jurisdição. É devido a OSKAR VON BÜLOW, o mérito de, em 1868, afirmar a importância do estudo da relação processual, como relação de direito público que se forma entre o particular e o Estado. Em 1936, JAMES GOLDSCHMIDT demonstrou que a relação jurídica de direito privado gera fundamentalmente direitos e obrigações para as partes, o que não acontece, ou apenas excepcionalmente acontece, na relação processual, onde nem o autor e nem o réu, sujeitos desta relação, possuem direitos e obrigações um para com o outro. ENRICO TULLIO LIEBMAN acata esta visão ao criticar a teoria da situação jurídica, que, segundo ele, ao invés de explicar e definir o processo, enquanto unidade jurídica, preocupara-se em examinar a res in judicio deducta que constitui o objeto do processo, não o processo em si mesmo. Em 1903, GIUSEPPE CHIOVENDA coloca a ação como instituto já processualmente configurado, afirmando-a independentemente do direito que ela se destina a fazer valer. Mais recentemente, ELIO FAZZALARI contribuiu renovando o conceito predominante no Direito Processual acerca da sistematização e estruturação da visão do ordenamento jurídico sobre os conceitos de procedimento e processo.

Procurou definir os conceitos existentes utilizando-se no desenvolvimento de sua argumentação valendo-se da tese dualista. Abordou este insigne doutrinador, com muita propriedade a questão central da Teoria Geral do Processo. Analisando o Direito Romano, chegou à conclusão de que, neste direito, não havia atividade criativa do pretor, o qual não se inseria no "processus" da produção do direito nem mesmo na faixa reservada ao jus honorarium. Passando pelo Direito Italiano, afirma também a tese dualista, dizendo que aquele ordenamento contém três espécies de normas: reguladoras da atividade privada, da atividade dos órgãos públicos (legislativos e executivos) e da atividade jurisdicional.

Há estudiosos, dos mais autorizados, que vêem entre os vocábulos "processo" e "procedimento", uma vinculação de natureza puramente alternativa entre o planos abstrato e concreto. Sustentam que, enquanto o processo é o próprio movimento em sua forma intrínseca e abstrata; o procedimento é a maneira, o modo ou a forma extrínseca pela qual se externa esse movimento no mundo material, factível.

Fazendo uma distinção entre processo e procedimento, devemos dizer que o primeiro é espécie do qual o segundo é gênero, assim, na visão de Fazzalari, o processo é o procedimento em contraditório. Fala do "módulo processual" representado pelo procedimento realizado em contraditório e propõe que, no lugar daquela, se passe a considerar como elemento do processo essa abertura à participação, que é constitucionalmente garantida (Dinamarco/Cintra/Grinover). Rosemiro Pereira Leal faz uma anotação à Teoria Fazzalariana na medida em que esta, ao conferir status de processo ao procedimento no qual é devidamente oportunizado o contraditório, não o fez enfocando o contraditório enquanto direito-garantia, alçado à condição de verdadeiro instituto constitucional, o fez pensando tão somente como a possibilidade de participação das partes no processo em simétrica paridade, influenciando de maneira igualitária a construção do raciocínio prudencial do decididor.

Ressalta porém que tal enfoque talvez não seria possível no contexto histórico em que vivia Fazzalari. O fato é que o discurso jurídico-constitucional das democracias eleva o contraditório à condição de instituto legitimador da atividade jurisdicional no Processo. Tais paradigmas democráticos, consubstanciam-se em nosso tempo através dos estudos de Canotilho, Baracho, Pizzorusso e Carpizo.

O processualista Fazzalari, expõe a diretriz adequada a respeito, pois ao mencionar os processos administrativos observa: "O contraditório se realiza às vezes entre particulares, às vezes entre o particular e um órgão da Administração; o que conta, nesta última hipótese, é que a Administração Pública é colocada pela norma em posição substancialmente igual à do particular, de modo que, nos limites determinados pela mesma norma, a participação dos dois sujeitos realiza aquele jogo de ações, reações e controles recíprocos, características justamente das garantias do contraditório". Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover estabelece uma íntima ligação entre o contraditório e a ampla defesa, dois pilares do Direito Processual: "Num determinado enfoque, é inquestionável que é do contraditório que brota a própria ampla defesa. Desdobrando-se o contraditório em dois momentos: a informação e a possibilidade de reação. Não há como negar que o conhecimento, ínsito no contraditório, é pressuposto válido para o exercício da defesa. De outro ponto de vista, é igualmente válido afirmar que a defesa é que garante o contraditório, conquanto nele se manifeste. Porque a defesa, que o garante, se faz possível graças a um de seus momentos constitutivos, a informação, e vive e se exprime por intermédio de seu segundo momento, a reação. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório."

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Em Rosemiro somos alertados porém, para o fato de que não basta reconhecer que o processo é um procedimento técnico-estrutural em contraditório entre as partes, porque o simples dizer que o processo é um procedimento em contraditório não emprestaria necessária e juridicamente ao procedimento o predicado principiológico, balizador e definidor do contraditório. Isto importa em afirmar que na verdade não há Processo, nos procedimentos, quando o Processo não estiver, antes, institucionalmente definido e constitucionalizado pelos fundamentos normativos do contraditório, ampla defesa (produzida pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado na Lei), direito ao advogado (assistência jurídica e judiciária) e isonomia (igualdade temporal de dizer e contradizer) aos quais deve ser acrescentado ainda o princípio do devido processo legal. Conclui, dizendo que sem esta institucionalização de fundo constitucional, ainda que o procedimento respeite o contraditório, não há que se falar na existência de Processo.

Esta teoria vem sendo denominada "TEORIA NEO-INSTITUCIONALISTA DO PROCESSO" e se baseia na idéia de que o Estado na pós-modernidade, não é o todo do ordenamento jurídico, mas está no ordenamento jurídico em situação homotópica (isonômica) com outras instituições e com estas se articula de modo interdependente e num regime jurídico de subsidiariedade recíproca. O Processo, como instituição jurídica deste mesmo ordenamento, define-se como bloco de condicionamentos do exercício da jurisdição na solução dos conflitos e da validade da tutela jurisdicional, que, não mais sendo um ato ou meio ritualístico, sentencial e solitário do Estado-Juiz, é o provimento construído pelos referentes normativos da estrutura constitucionalizada do Processo. Na condição de direito-garantia, o acesso à justiça e ao Processo com todos os seus predicados é cláusula pétrea da Constituição brasileira, consoante o disposto no § 4º do seu art. 60 o que reforça a sua característica institucional, fortalecida pelo próprio texto da Carta Magna, vez que, inatacável pela via legiferante só podendo ser inobservado no caso de um retrocesso à política das baionetas.

Cândido Rangel Dinamarco aponta dentro de sua lógica instrumentalista a existência de um direito processual constitucional, o que não se confunde com a tese esposada por Rosemiro Pereira Leal, apesar de não serem também antitéticas. Na visão de Dinamarco o direito processual constitucional é a condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais do processo. Não é um ramo autônomo do direito processual e trata de um lado a tutela constitucional dos princípios fundamentais da organização judiciária e do processo (disposições sobre os órgãos da jurisdição, sua competência e suas garantias) e de outro a jurisdição constitucional (compreende o controle judiciário da constitucionalidade das leis e dos atos da Administração, bem como a denominada jurisdição constitucional das liberdades, com o uso dos remédios constitucionais-processuais – "habeas corpus", "mandado de segurança", "mandado de injunção", habeas data" e "ação popular"). Sobre a jurisdição constitucional, Rosemiro Pereira Leal nos diz que "a juridificação constitucional das inúmeras instituições, entre as quais o Estado, se dá atualmente por uma articulação normativa horizontalizadora, num plano "poliárquico", não autárquico-estatal, hierárquico ou autocrático em que se conceberia a primazia de instituições sobre outras ou uma abrangendo outras".

Voltando aos ensinamentos da Profª Carmen Lúcia Antunes Rocha, relembramos a noção segundo a qual a Constituição é lei sublimada. Quando um direito é declarado ou constituído por esta lei-mãe ele adquire conteúdo dotado de vigor superior aos demais e contornos envolvidos por garantias fundamentais no plano jurídico-positivo. Ela relembra o discurso de posse de Aroldo Plínio Gonçalves no cargo de Presidente do TRT 3ª Região quando o ilustre jurista afirmou: "Os jurisdicionados são a razão de ser do Poder Judiciário, e para eles está voltada a finalidade de nossa atuação". Ao dizer isto, o jurista nos remete ao pressuposto de que o Poder, nos Estados Democráticos de Direito, emana do povo e em seu nome deve ser exercido.

Rosemiro nos mostra ainda que neste sentido a cidadania, entendida como o conjunto de direitos e garantias fundamentais constitucionalizados, só pode ser exercida por meio do Processo (Legislativo, Judiciário, Administrativo, etc.), porquê só este reúne garantias dialógicas de liberdade e igualdade do homem ante o Estado na criação e reconstrução permanente das instituições jurídicas, das constituições e do próprio modelo constitucional do Processo. Atualmente, pelas características da expansividade, variabilidade e perfectibilidade do Processo, não há que se falar em Processo constitucional e outro infraconstitucional (segundo Juarez Freitas "todo juiz, no sistema brasileiro, é, de certo modo, juiz constitucional"), de vez que é este forma juridicamente fundada naquele dentro de um outro modelo institucional constitucionalizado e unificado por princípios, garantias e institutos que lhe são seminais e indecomponíveis.


BIBLIOGRAFIA

SANTOS, Moacyr Amaral - Primeiras Linhas de DIREITO PROCESSUAL CIVIL - 15ª Edição – 1º Volume.

LEAL, Rosemiro Pereira – Teoria Geral do Processo – Primeiros Estudos – 3º Edição, revista e ampliada – Síntese – Dez. de 2000.

CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO – Teoria Geral do Processo, RT/1998.

JÚNIOR, Humberto Theodoro – Curso de Direito Processual Civil – 1º Volume – Forense, 14ª edição/1995.

JÚNIOR, Humberto Theodoro – Perfil Atual do Processo Civil – Artigo – site UFMG.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes – O Direito Constitucional à Jurisdição – As Garantias do Cidadão na Justiça – Saraiva – São Paulo/1993

FREITAS, Juarez – O Intérprete e o poder de dar vida à Constituição: Preceitos de Exegese Constitucional – Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais – nº 35 - Pág. 15 e seguintes – Abril/Junho/2000.

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Sobre o autor
Dário José Soares Júnior

advogado em Caratinga (MG), mestrando em Direito Processual pela PUC/Minas e pós-graduado em Direito Processual pelo IEC-PUC/Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES JÚNIOR, Dário José. O processo como instituição no Estado pós-moderno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2440. Acesso em: 23 abr. 2024.

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