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As matérias não sujeitas à preclusão para o Estado-Juiz

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11/05/2013 às 14:50
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V – DIREITO PROBATÓRIO

16. Avancemos para a averiguação da não preclusividade, ao magistrado, das matérias referentes ao direito de provar.

O código de processo brasileiro, especialmente no art. 130, articulado com os incisos I e II do art. 125, reconhece a possibilidade de o juiz, não só a requerimento das partes, mas também de ofício, determinar a realização de provas necessárias à melhor instrução do processo. Especificamente quanto às espécies de provas típicas previstas no CPC, destacam-se as referências expressas às provas ex officio nos arts. 342 (interrogatório para esclarecimento), 355 (exibição de documento ou coisa), 399 (requisição de documentos às repartições públicas), 418 (inquirição de testemunhas referidas), 437 (nova perícia), e 440 (inspeção judicial).

Está assim, o Código, relativizando o princípio dispositivo em sentido impróprio ou processual e o próprio brocardo latino mihi factum, dabo tibi ius, ao passo que admite a necessidade de, no processo moderno, o magistrado ter maior liberdade no impulsionamento do feito, não o deixando à livre intervenção das partes interessadas.

Essa atual concepção de cooperação do Estado-juiz com a atividade probatória originariamente exclusiva das partes, vinculada à exigência contemporânea de o julgador obter suficientes meios hábeis de atingir a verdade processual, impõe, por outro lado, que mantenha o magistrado a necessária imparcialidade que dele se espera (vedado o abuso de autoridade, tão ilegítimo quanto o abuso de liberdade das partes) para que, enfim, possa, em sentença, julgar com responsabilidade e se aproximar, tanto quanto possível, da solução justa no caso concreto.[89]

Tecnicamente mais preciso, segundo Fritz Baur, seria dizer que na instrução a tarefa do juiz, do ponto de vista da pesquisa da verdade processual, é corretiva (se as partes expõem fatos inverídicos) e especialmente supletiva (se lacunosa a exposição e a produção de provas pelas partes, e por isso se faz necessário colher os meios de prova de ofício).[90] Daí por que, agora, na esteira dos ensinamentos de Liebman, não se pode dizer que haja na instrução espaço próprio para aplicação absoluta do princípio inquisitório, ao passo que se admite, nessa seara, uma participação cooperativa do julgador (com as partes litigantes), nunca de forma a ser aceito modelo que relativize completamente o princípio dispositivo (em sentido processual ou impróprio).[91]

Portanto, das lições retiradas da melhor doutrina, extrai-se que em processo atualmente subordinado ao “princípio dispositivo atenuado”,[92] em que a atividade probatória deve sim ser exercida pelo juiz (no entanto, não em substituição das partes, mas juntamente com elas[93]), é flagrantemente descabido se falar em preclusão para o juiz.[94]

17. Inexistindo, como costurado, preclusão para o juiz determinar as provas que entenda cabíveis, certo é que pode a qualquer tempo, antes de proferir decisão final, vir a reconsiderar um despacho que entendia incabível a produção de determinada prova (v.g., pericial), a fim de que agora se faça.[95] Tal raciocínio, acreditamos, vale inclusive para a hipótese de o magistrado ter indeferido a produção de provas, decidindo, a priori, julgar antecipadamente o mérito (art. 330, I, CPC); mas, posteriormente, compulsando os autos conclusos para sentença, decide por bem converter o julgamento em diligência para sanar dúvida quanto à veracidade/extensão de determinados fatos vitais para o deslinde da problemática levada a ele.[96]

Do exposto resultam, a nosso ver, três máximas processuais correlatas, as quais merecem a devida sistematização: 1°) não será possível, ao juiz, conhecer diretamente do pedido se isso não resultar de o processo estar maduro para ser julgado, sendo que qualquer dúvida a esse respeito deve ser solucionada contra o julgamento antecipado da lide – exegese restritiva da hipótese consagrada no art. 330, I, do CPC;[97] 2°) uma separação clara do momento da admissibilidade da prova (juízo de pertinência e relevância) com o da sua valoração (próprio da oportunidade derradeira de os autos serem remetidos à conclusão para julgamento),[98] impõe uma não precipitação no encerramento da instrução (como ilegal medida antecipatória de juízo de valor sobre o meritum causae[99]), a partir de indeferimento de meios probatórios lícitos requeridos/justificados – sendo, assim, aplicada com restrições a regra do art. 130, in fine, do CPC;[100] 3°) quando o processo se encontra concluso para julgamento, e o juiz possui sérias dúvidas quanto à existência/extensão dos fatos que irão influenciar diretamente no resultado do processo, e tendo meios hábeis para tanto (com arrimo no art. 130, ab initio, do CPC), não pode se escusar de tentar maior aproximação da verdade processual, utilizando-se das regras de julgamento do ônus da prova somente em último caso[101] – sendo pertinente uma reflexão mais detida na utilização (restritiva) dos comandos contidos no art. 333 do CPC.

Todos os cuidados supra-anunciados que se deve ter no trato com o material probatório a ser aportado aos autos, a fim de não se inviabilizar (precipitadamente) uma melhor instrução do feito, tem como pano de fundo o que chamaremos de “caráter excepcional da limitação ao direito (constitucionalmente resguardado) de provar”.

Na Itália, com boa profundidade, o ponto foi enfrentado por Luigi Paolo Comoglio, o qual justamente tratou de defender posição, por nós perfeitamente acolhida, no sentido de se “privilegiar a capacidade expansiva do direito a prova e o caráter excepcional de suas limitações”.[102] Por aqui, a preocupação foi adequadamente encampada por Eduardo Cambi, o qual trabalha com o conceito de direito prioritário e constitucional à prova, para efeitos de justificar a sua residual limitação.[103]

O defendido caráter excepcional da limitação ao direito de provar ganha mais um reforço argumentativo, se passarmos a refletir que o próprio sistema já trata de, previamente, dificultar a produção e o acolhimento de meios probantes no processo. De fato, além de ser vedada a utilização de provas ilícitas (nos termos do art. 332 do CPC articulado com o art. 5°, LVI, da CF/88), existem também restrições, de duas ordens, apresentadas pelo próprio código processual, a impor limites no manejo dos meios lícitos ali tipificados: uma determinada pelo próprio procedimento, a estabelecer a necessidade de produção das provas em oportuno momento processual, sob pena de preclusão;[104] e a outra corporificada em normas específicas sobre a utilização adequada e racional de cada meio probatório[105] – na prova testemunhal, v.g., tem-se a vedação da sua exclusividade como meio de prova limitado a certo valor do contrato em discussão (art. 401), a restrição de certas pessoas serem ouvidas em juízo (art. 405), a não obrigação de depor (art. 406), e a limitação ao número de pessoas a depor sobre o mesmo fato (art. 414, § 1°); na prova pericial, v.g., a restrição a sua utilização, dependendo da matéria sub judice (art. 420 e art. 427), e a possibilidade de o perito ser recusado por impedimento ou suspeição (art. 423); já na prova documental, v.g., a exclusão do dever da parte ou terceiro exibi-lo (art. 363), e a imprescindibilidade da forma: documento público, quando da substância do ato (art. 366).

18. Por derradeiro, cabe-nos destacar a seguinte discussão proposta por Manoel Caetano Ferreira Filho.[106] Embora o poder de iniciativa probatória do Estado-juiz inclui o de determinar a produção de prova anteriormente indeferida (mesmo que a parte interessada não tenha agravado – tendo deixado precluir o seu direito de exigir o meio probante), o contrário também poderia ser realizado pelo magistrado? Ou seja, poderia ele indeferir prova que já tenha determinado produzir, com base até na parte final do art. 130 CPC, que prega o indeferimento das diligências inúteis ou meramente protelatórias; e/ou mesmo no regulado pelo art. 125, II, do CPC, a estabelecer como dever do diretor do processo o de velar pela rápida solução do litígio?

A resposta, a partir desses fundamentos, é afirmativa para Eduardo Cambi, o qual alega que seria um contrassenso, se em face de outras provas produzidas, não pudesse o juiz reconsiderar a decisão anterior autorizadora da realização da prova, que no curso da instrução aos olhos do diretor do processo mostrou-se supérflua ou irrelevante: “assim, a inutilidade ou a desnecessidade da prova também podem ser supervenientes, quando um fato já estiver sido provado por outras provas, devendo-se aplicar, neste caso, o princípio da economia processual”.[107]

No entanto, de acordo com a manifestação de Manoel Caetano Ferreira Filho, cremos, a priori, que não possui esse poder o juiz, a não ser que excepcionalmente a parte a quem aproveite a prova expressamente concorde com a sua não realização (diante do que Cambi denomina de uma superveniente verificação da inutilidade de sua produção).

Temos, como regra geral, que se a parte exerceu regularmente a faculdade de requerer oportunamente a prova que entendia como necessária para o resguardo dos seus interesses, e teve seu pedido acatado pelo magistrado, o posterior indeferimento da prova implicaria ofensa ao direito de licitamente provar. Além disso, a preclusão tem por finalidade assegurar a estabilidade das situações jurídicas processuais, e a situação de quem teve a prova admitida seria profundamente alterada com o posterior indeferimento.

Esta também é a posição de Daniel Amorim Assumpção Neves (criticando posição contrária defendida por Vicente Miranda), explicitando que não se pode admitir que o juiz monocrático, que tão somente dá a primeira, e quase nunca definitiva decisão na demanda, possa dar-se por convencido no meio da fase instrutória, encerrando-a prematuramente e decidindo o mérito: “Tal atitude configuraria indubitavelmente nulidade da decisão por flagrante cerceamento de defesa da parte prejudicada”. Complementa, o anunciado jurista, que o indeferimento posterior de meio probante já autorizado encontra óbice mesmo se a produção de prova tenha sido determinada oficiosamente: “os efeitos do deferimento pelo juiz de uma prova requerida pela parte e de sua determinação ex officio são os mesmos: trazer para o processo uma prova a ser produzida, não importando, em absoluto, como surgiu o requerimento de sua produção em juízo”.[108]


VI – ERRO MATERIAL

19. A penúltima matéria não preclusiva a ser abordada serão os erros materiais, tratados no art. 463, I, do CPC a partir de duas modalidades: inexatidões materiais e erros de cálculo.

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Sérgio Gilberto Porto foi um dos que melhor sistematizou a (conflituosa) conceituação do erro material,[109] fazendo nos seguintes aproximados termos: “A inexatidão material, ou, na linguagem da lei, o erro material passível de retificação, diz respeito àquele equívoco involuntário, completamente desvinculado da vontade do subscritor da decisão e, portanto, perceptível ‘primo ictu oculi’ da simples leitura da sentença. Assim, por exemplo, o erro de digitação, o erro na data do nascimento de determinada parte, o nome errado do autor ou do réu, a identificação do número do processo (...). Igual tratamento recebe o erro de cálculo, o qual, ultima ratio, se constitui em erro material. Desta forma, a decisão que fixa a condenação em 100 e divide, como forma de implemento, em três parcelas de 30”.[110]

O objeto da correção, destaca Moniz de Aragão, há de ser nada mais do que um equívoco, um erro “notório” como dizem as leis alemã e austríaca; “manifesto” como diz o CPC português; “evidente” como diz a lei polonesa. A notoriedade, a evidência, advém de tratar-se de erro que não gera dúvida, “erros de cópia, de referência”, como diz a lei chilena, “erro puramente aritmético”, como diz o CPC colombiano. Em suma: “inexatidões tais que a seu respeito não pode surgir a mínima hesitação, porque se alguma puder elevar-se, caso não é de correção pela via prevista no inc. I da disposição comentada (art. 463) e sim através de embargos de declaração, ou recurso”.[111]

Giovanni Torregrossa, estudando as disposições do CPC italiano a respeito do tema (arts. 287/289), fixa uma coerente distinção entre erro material e erro lógico. Destaca o processualista que o atributo “material” indicado para caracterizar o erro corrigível em estudo, serve a significar que, mesmo que o equívoco seja evidente e essencial, se for gerado pela adoção de um particular processo lógico do Estado-juiz, não pode ser compreendido na mesma classificação. Exemplifica, a partir daí, que o clássico “dois mais dois é igual a cinco” pode derivar de um notório engano do agente (erro material); ou, diferentemente, até de uma demonstração matemática, mesmo que errônea (sofisma), que apontasse o procedimento técnico adotado para se obter o resultado (erro lógico).[112]

Bem se pode dizer, então, que o erro material (não equiparável ao erro lógico) configura-se um determinado vício na exteriorização (expressão) do julgamento, não no teor do julgamento em si (âmbito de cognição do Estado-juiz), daí a razão pela qual se diz que pode ser auferível numa vista de olhos. É, sem dúvida, regra que deita raízes no direito romano e tem validade universal (tanto é que presente nos mais diversos ordenamentos alienígenas), atendendo a um “princípio” elementar e de razoabilidade, pois “não se compadece com o senso comum a ideia de que, contendo uma sentença ou acórdão lapso manifesto, não possa este ser eliminado”.[113] Eis aqui o interesse público que eleva o erro material ao patamar de matéria não preclusiva, destinada a permitir a correção até de decisão acobertada pela preclusão ou mesmo pela coisa julgada, “quando ela contiver erro diretamente verificável e que objetiva e inequivocadamente não tem como corresponder a finalidade da atuação do órgão jurisdicional”.[114]

O erro material pode ser objeto de análise judicial a qualquer tempo – seja na fase de conhecimento ou de execução, sem que daí resulte ofensa à coisa julgada; sendo matéria reconhecível de ofício, pode ser retificado pela iniciativa do próprio Estado-juiz ou de qualquer um que tenha interesse na correção, inclusive pelas vias recursais adequadas, como os embargos de declaração (art. 463, II, c/c art. 535, ambos do CPC).[115] Por sua vez, o erro de cálculo (ou de conta), como já pinçado, nada mais é do que uma espécie de erro material, específico da fase de execução, que não se confunde com o critério de cálculo, a envolver não mero erro aritmético, mas sim o próprio parâmetro da execução fixada em cognição judicial na fase anterior já transitada em julgado.[116]

Nada obstante o art. 463, I, do CPC tratar tão somente de erros materiais constantes de engano provocado pelo juiz e em exclusiva sede de decisão final de mérito (sentença definitiva), por certo os manifestos equívocos pronunciados pelo julgador em sentenças terminativas, em decisões interlocutórias e até em despachos de mero expediente podem ser retificados a qualquer tempo, mesmo ex officio; como também os erros materiais próprios das partes e/ou dos peritos das partes, a redundar especialmente no erro de cálculo (ou de conta) podem ser supridos imediatamente, assim que identificados.[117] É o caso, certamente, de utilizar versão dilatada do dispositivo infraconstitucional, a fim de serem abarcadas situações semelhantes, de lapso manifesto, que exigem reparação dentro do processo, independente do ator causador do equívoco e da circunstância procedimental que deu azo à incorreção.

20. Uma importante aplicação dos préstimos da noção de erro material pode-se dar quando do estudo do dispositivo sentencial, a fim de bem se cumprir o decisum, encontrando-se o processo já em fase de execução. É que pode acontecer que o julgador tenha, na fundamentação da sentença, exposto, v.g., a necessidade da condenação do réu em dois pedidos, e tenha externado no dispositivo, por manifesto lapso, somente um deles – a redundar, esta anômala circunstância, que no momento de cumprimento espontâneo do julgado, venha o demandado a efetivamente se negar a adimplir o pedido tão somente externado na fundamentação, sustentando que o dispositivo sentencial transitou em julgado com a fixação da obrigação de acertamento de um só pedido.[118]

Essa seria uma oportuna hipótese, a nosso ver, em que o julgador, a pedido da parte ora exequente, poderia corrigir o erro material, adequando o dispositivo à fundamentação sentencial, por estar-se diante de vício na exteriorização do julgado, perceptível primo ictu oculi da simples leitura da sentença. Sobre o tema, reforçando o nosso entendimento no caso enunciado, Vicente Greco Filho defende certo conteúdo dispositivo aos acertamentos contidos na fundamentação, mesmo que não constem na parte final da sentença: “É de observar-se que a parte dispositiva da sentença, em princípio, deve estar concentrada e resumida no final, mas pode ocorrer que o juiz, ao fazer a fundamentação, pode decidir algum ponto da lide principal, sem depois reproduzir, em resumo, no dispositivo. Tal decisão fará coisa julgada porque, apesar de formalmente não fazer parte do dispositivo, tem conteúdo dispositivo”.[119]

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Sobre o autor
Fernando Rubin

Advogado do Escritório de Direito Social, Bacharel em Direito pela UFRGS, com a distinção da Láurea Acadêmica. Mestre em processo civil pela UFRGS. Professor da Graduação e Pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos Reis – UNIRITTER, Laureate International Universities. Professor Pesquisador do Centro de Estudos Trabalhistas do Rio Grande do Sul – CETRA/Imed. Professor colaborador da Escola Superior da Advocacia – ESA/RS. Instrutor Lex Magister São Paulo. Professor convidado de cursos de Pós graduação latu sensu. Articulista de revistas especializadas em processo civil, previdenciário e trabalhista. Parecerista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUBIN, Fernando. As matérias não sujeitas à preclusão para o Estado-Juiz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3601, 11 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24400. Acesso em: 25 abr. 2024.

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