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A autonomia funcional da Defensoria Pública e o sistema de proteção dos direitos fundamentais

Resumo:


  • A garantia constitucional disciplina e tutela os direitos fundamentais, além de regular o funcionamento das instituições do Estado dentro dos limites da Constituição.

  • A autonomia da Defensoria Pública consiste na capacidade de autogestão da instituição, vinculada ao cumprimento da Constituição e das leis, sem estar sujeita a ordens de outros órgãos ou Poderes.

  • A Defensoria Pública, como parte essencial do sistema jurídico-constitucional, tem a função de promover e defender os direitos dos necessitados, sendo independente e autônoma em relação aos demais Poderes do Estado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Defensoria Pública, como um todo, não pode estar inclusa dentro da hierarquia da Administração Pública, de modo que sua vinculação administrativa com órgãos que por natureza são subordinados ao Poder Executivo é inconstitucional.

A finalidade das garantias institucionais não é constituir uma casta favorecida de servidores públicos, nem criar ou manter uma instituição privilegiada, que exista para só lutar pelo aumento ou manutenção das próprias vantagens; as garantias só têm sentido e só serão mantidas se os predicamentos dos agentes se destinarem à garantia da instituição, os desta para garantia de seu ofício, e os deste para garantia de efetiva defesa da coletividade.

Paulo Bonavides define que:

A garantia constitucional é uma garantia que disciplina e tutela o exercício dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de todas as instituições existentes no Estado.[1]

A autonomia da Defensoria Pública é a capacidade que a Instituição tem de autogestão, estando apenas vinculada ao cumprimento da Constituição e das leis, mas desobrigada a cumprir ordens ou recomendações de outros órgãos ou Poderes. 

Se dentre os objetivos da República fundamentais estão: construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação, e para tanto o Estado se estrutura organicamente, através de Instituições para alcançar tal desiderato. Logicamente, não há razão para limitar funcionalmente tais Instituições às vontades políticas de algum dos Poderes do Estado.

A Constituição é uma ordem de valores e princípios que se harmonizam sistemicamente, de sorte que a existência de uma Instituição está para garantir, justamente, esses princípios e valores.

Segundo Konrad Hesse a Constituição é “ordem jurídica fundamental de uma comunidade ou plano estrutural para a conformação jurídica de uma comunidade, segundo certos princípios fundamentais”[2], uma tarefa que só é possível porque a Lei Fundamental:

·   Fixa os princípios diretivos segundo os quais deve formar a unidade política e desenvolver suas tarefas;

·  Define os procedimentos para a solução dos conflitos no interior da comunidade

·  Disciplina a organização e o processo de formação da unidade política e da atuação estatal

· Cria as bases e determina os princípios da ordem jurídica e global

Em verdade, a Defensoria Pública é parte fundamental de um modelo de um sistema jurídico-constitucional que assegura uma ordem de valores e princípios democráticos, mormente o princípio orientador da dignidade da pessoa humana. Jorge Miranda assinala que “A Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. E ele repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”[3]

Em nosso sistema jurídico, o qual tem a norma jurídica como objeto, sua estrutura é formada pela hierarquia, pela coesão e pela unidade.

A hierarquia vai permitir que a norma jurídica fundamental (a Constituição Federal) determine validade de todas as demais normas jurídicas de hierarquia inferior.

A coesão demonstra a união íntima entre os elementos (princípios e normas jurídicas) com o todo (o sistema jurídico), apontando, por exemplo, para ampla harmonia e importando em coerência.

A unidade dá um fechamento ao sistema jurídico como um todo que não pode ser dividido: qualquer elemento interno (princípio ou norma jurídica) é sempre conhecido por referência ao todo unitário (o sistema jurídico).[4]

Por este sistema jurídico-constitucional a Defensoria Pública, com o caráter de Instituição, assume o importante papel de promoção e defesa dos necessitados, bem como tem a aptidão de concretizar o direito de acesso à justiça aos hipossuficientes.

Para a consecução de sua destinação constitucional a Defensoria Pública não pode estar vinculada a Poderes de Estado, sob a ingerência de órgãos executivos, legislativos ou judiciários, sob pena dos objetivos inseridos na Lei Fundamental tornarem-se letra morta.

Deste modo, a Defensoria Pública é o órgão eleito pela Constituição Federal, que tem a finalidade de resguardar e promover autonomamente os princípios e valores constitucionais sempre que houver, em concreto, o desenlaço ou a ruptura destes valores e princípios, ferindo, pois, os direitos e interesses do indivíduo carente.

 Organicamente, portanto, a Defensoria Pública é uma Instituição imprescindível para a consecução dos objetivos da República, e por isso ela não tem relação de hierarquia com quaisquer dos Poderes de Estado, uma vez que se trata de uma Instituição independente e autônoma.

Topologicamente a autonomia da Defensoria Pública está prevista no Título IV – Da Organização dos Poderes e no Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça, arts. 134 e 135 da Constituição Federal, pois está em seção separada da estrutura dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Qualquer Instituição de Estado tem sua autonomia decorrente de sua destinação constitucional, independente de previsão expressa desta autonomia. A Defensoria Pública, assim, é autônoma pela sua natureza e finalidade. De que adiantaria a previsão de um órgão destinado a defesa e promoção dos direitos dos necessitados se tal órgão não tivesse liberdade para litigar contra o próprio Estado? Teria a Defensoria Pública condições reais de defender o direito à saúde do necessitado se fosse ele subordinado ao Chefe do Poder Executivo? Qual seria então o sentido e o alcance da palavra “integral” prevista no artigo 5º LXXIV da Constituição Federal?Se a Constituição Federal reconhece originariamente a Defensoria Pública como uma instituição, essencial à função jurisdicional do Estado, poderia o próprio Estado subtrair suas funções?

Expressamente, a emenda constitucional n.º 45/04, assim dispõe:

art. 134 “§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.

Ainda que aprovada apenas em 2004, a emenda da Reforma do Judiciário conferiu expressamente autonomia funcional, administrativa e financeira apenas às Defensorias Públicas Estaduais. De qualquer modo, as Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal, pela sua natureza e finalidade constitucionais, suas autonomias, embora não expressas em norma jurídica, decorrem do próprio sistema de proteção dos direitos fundamentais.

Portanto, a autonomia à Defensoria Pública da União decorre assim da natureza e finalidade do órgão público, do que propriamente da previsão expressa em ato normativo que lhe atribua tal autonomia.

Para fins meramente argumentativos, note-se, por outro lado, que a representação judicial do Estado é exercida no âmbito da União, pela Advocacia Geral da União e Procuradoria Geral da Fazenda Estadual e na esfera estadual pela Procuradoria Geral do Estado, e nos Municípios existe a possibilidade de criação de uma Procuradoria Municipal. Pois bem, quaisquer destes órgãos têm a precípua função de defender os interesses do ente jurídico que o instituiu. Nesta defesa, seja por questões de interesse público, ligados à conveniência e oportunidade do Chefe do Poder Executivo, seja por questões políticas, tais órgãos de representação se subordinam diretamente à vontade do Poder Executivo, motivo pelo qual não são dotados, por natureza, de autonomia funcional. Assim, se nos termos da Constituição Federal compete a Advocacia-Geral da União representar a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe exercer às atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. Desta forma, atuando como curadora da União está impedida constitucionalmente de manifestar-se contra ela, sob pena do descumprimento da função que lhe foi atribuída pela própria Constituição, notadamente o exercício da consultoria e assessoramento do Poder Executivo.

Calha, então, lembrar que o Supremo Tribunal Federaljá declarou:

a inconstitucionalidade do inciso I do art. 135 da Constituição do Estado da Paraíba, que conferia autonomia funcional, administrativa e financeira à Procuradoria-Geral do Estado, por considerar que tal prerrogativa é incompatível com a função exercida pelas procuradorias estaduais, desvirtuando a configuração jurídica dada pelo art. 132 da CF (...) Precedente citado: ADI 470-AM." (STF - ADI 217 - Rel. Min. Ilmar Galvão - DJU 13.09.2002)

No mesmo já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, declarando inconstitucional a suspendendo a expressão “autonomia funcional” prevista em Lei Complementar concedida à Polícia Judiciária, até mesmo porque em relação às polícias estaduais há previsão constitucional expressa de subordinação ao Poder Executivo. Neste sentido, o artigo 144, parágrafo 6º,da Constituição Federal: As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Art. 3º - A Policia Judiciária Civil terá autonomia administrativa, funcional e financeira, dispondo de dotação orçamentária própria, conforme dispuser a Lei Orçamentária. Art. 4º - São princípios institucionais da Policia Judiciária Civil, a unidade, a indivisibilidade, a AUTONOMIA FUNCIONAL, a unidade de doutrina e de procedimento, a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a hierarquia e a disciplina. Fundamentação Constitucional. Decisão da Liminar. Por votação UNANIME, o Tribunal DEFERIU medida cautelar, para suspender, ate a decisão final da ação, os efeitos dos arts. 3º; 4º, no tocante a expressão "a autonomia funcional "; 010, § 002º, nº 012; 104, 0II e III e § 3º; 114; e 127, 0II e III, todos da Lei Complementar nº 020, de 14.10.92, do Estado de Mato Grosso. (STF ADI 883 - Maurício Correia. Plenário- Acórdão, DJ 19.02.2004)

No entanto, a autonomia da Defensoria Pública no texto original da Constituição Federal de 1988 já era, portanto, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, muito embora o silêncio eloqüente da Constituição, de tal sorte que a cada Defensoria já se concedia, antes mesmo da emenda constitucional n.º 45, as garantias institucionais de autonomias funcional, administrativa e financeira. A organização de Defensorias Públicas Estaduais mediante lei complementar já previa a autonomia funcional e administrativa à Defensoria Pública. Em sede liminar assim pronunciou-se a Corte:

O Tribunal retomou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra a Lei Complementar 7/90, do Estado do Mato Grosso, que organiza a Defensoria Pública do mesmo Estado - v. Informativo 97. O Min. Nelson Jobim, presidente, em voto-vista, acompanhou o voto do relator, que, analisando a argüição de inconstitucionalidade quanto ao art. 5º da lei impugnada ("A Defensoria Pública é instituição com autonomia funcional e administrativa."), julgou improcedente o pedido formulado por entender que o silêncio da CF sobre a autonomia funcional e administrativa da Defensoria Pública não acarreta a inconstitucionalidade da lei que a estabelecer. (Informativo nº 421 do STF).

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Há que se distinguir, então, entre a ausência de previsão expressa na norma, sendo ela a Constituição Federal ea teoria do “silêncio eloquente”. Ao se referir ao texto original da Constituição, em seu artigo 134, que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV, utilizou-se ela do “silêncio eloqüente”, pois sua autonomia funcional decorre de sua destinação constitucional. Este silêncio traduz que a autonomia funcional da Defensoria Pública da União, dos Estados e do Distrito Federal é a única hipótese contemplada de organização e estruturação a que se aplica ao preceito constitucional, previsto no “caput” do artigo 134 da Constituição Federal. 

Deste modo, a Defensoria Pública, como um todo, não pode estar inclusa dentro da hierarquia da Administração Pública, de modo que sua vinculação administrativa com órgãos que por natureza são subordinados ao Poder Executivo é inconstitucional. Esse posicionamento foi esculpido na Ação direta de inconstitucionalidade:

art. 2º, inciso IV, alínea c, da L. est. 12.755, de 22 de março de 2005, do Estado de Pernambuco, que estabelece a vinculação da Defensoria Pública estadual à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos: violação do art. 134, § 2º, da Constituição Federal, com a redação da EC 45/04: inconstitucionalidade declarada. 1. A EC 45/04 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus orçamentos (art. 134, § 2º): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado. 2. A norma de autonomia inscrita no art. 134, § 2º, da Constituição Federal pela EC 45/04 é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos humanos. II. Defensoria Pública: vinculação à Secretaria de Justiça, por força da LC est (PE) 20/98: revogação, dada a incompatibilidade com o novo texto constitucional 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal - malgrado o dissenso do Relator - que a antinomia entre norma ordinária anterior e a Constituição superveniente se resolve em mera revogação da primeira, a cuja declaração não se presta a ação direta. 2. O mesmo raciocínio é aplicado quando, por força de emenda à Constituição, a lei ordinária ou complementar anterior se torna incompatível com o texto constitucional modificado: precedentes. (STF.ADI 3569.1, Rel. Min.  Sepúlvida Pertence, DOU 29.05.2007)


NOTAS

1BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10.ed. São Paulo: Malheiros. 2000, p.493.

2 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris , 1991, p.36

3 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora 1988, p. 66.

4 NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. 1ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 31.

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Sobre o autor
Filovalter Moreira dos Santos Júnior

Defensor Público do Estado de São Paulo. Pós Graduado "Latu Sensu" em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional. Coolaborador do Núcleo de Segunda Instância e Tribunais Superiores da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS JÚNIOR, Filovalter Moreira. A autonomia funcional da Defensoria Pública e o sistema de proteção dos direitos fundamentais . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3698, 16 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24571. Acesso em: 28 dez. 2024.

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