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Da responsabilidade civil dos estabelecimentos de saúde

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01/11/2001 às 01:00
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3. Responsabilidade Civil das Empresas de Assistência Médica (convênio médico)

3.1. Espécies

A previdência privada assume a cada dia maior importância no País. As dificuldades encontradas pela previdência social para atuação eficaz no âmbito da saúde têm levado grande número de pessoas à proteção complementar na área da previdência privada, que hoje já atinge a 35 milhões de pessoas, das quais 28 milhões são ligadas a empresas. Apesar do custo (US$ 35.00 por pessoa), tende a se expandir

Convém ressaltar, todavia, que os planos de saúde privados não são operados apenas por companhias seguradoras, como muitos pensam (chamam tudo seguro de saúde), mas também por empresas de Medicina de Grupo e por Cooperativas de Serviços Médicos.

O que caracteriza o seguro de saúde, propriamente dito, é o fato de ser operado por companhia de seguro mediante regime de livre escolha de médicos e hospitais e reembolso das despesas médicos hospitalares nos limites da apólice.

Empresa de Medicina de Grupo, de acordo com a Portaria n.3.286/86 do Ministério do Trabalho, é toda pessoa jurídica de direito privado, organizada de acordo com as leis do País, que se dedique a assegurar assistência médica ou hospitalar e ambulatorial, mediante uma contraprestação pecuniária preestabelecida, vedada a essas empresas a garantia de um só evento. A mesma portaria estabelece três maneiras pelas quais pode a empresa de Medicina de Grupo exercer sua atividade: a) através de recursos materiais e humanos próprios ( médicos, hospitais e ambulatórios);b) mediante credenciamento de serviços de terceiros; c) por um sistema misto, que inclua serviços próprios e rede credenciada.

Cooperativas de serviços médicos, como o próprio nome o diz, são entidades organizadas por médicos com o fim de dar amparo econômico e social ao exercício de sua atividade. Prestam serviços médicos- hospitalares e ambulatorias também com recursos materiais e humanos próprios ou credenciados.

3.2.- Da responsabilidade Civil

Desses três tipos de operadores de planos privados de saúde, como se vê, apenas as companhias de seguradores funcionam pelo regime da livre escolha de médicos e hospitais e reembolso das despesas médico- hospitalares. As empresas de Medicina de Grupo e as cooperativas de serviços médicos atendem aos seus associados em seus próprios serviços, onde nada têm a pagar. Em contrapartida, não têm o direito da livre escolha, salvo se isso for previsto no contrato para casos de urgência e nos limites ali estabelecidos.

Assim, no primeiro caso- médicos e hospital de livre escolha- a responsabilidade será direta do hospital ou do médico, nada tendo a ver a seguradora de saúde com a eventual deficiência da atuação deles. No segundo caso, - médicos e hospitais próprios ou credenciados- a responsabilidade será também da seguradora. Se escolheu mal o preposto ou profissional que vai prestar o serviço médico, responde pelo risco da escolha.

Sobre o tema observou com pertinência Ruy Rosado de Aguiar Jr.(27), entendendo este ilustre autor com supedâneo na jurisprudência, "que a entidade privada de assistência à saúde, que associa interessados através de planos de saúde, e mantém hospitais ou credencia outros para a prestação de serviços que está obrigada, tem responsabilidade solidária pela reparação dos danos decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados. E mais, excetua dessa responsabilidade as entidades que, em seus contratos de planos de saúde, dão liberdade para a escolha de médicos e hospitais, assim como os seguros- saúde, que apenas reembolsam as despesas efetuadas pelo paciente, e por isso não respondem pelos erros profissionais livremente selecionados e contratados pelo seu segurado.

A entidade privada de assistência à saúde, que associa interessados através de planos de saúde, e mantém hospitais ou credencia outros para a prestação dos serviços a que está obrigada, tem ela responsabilidade solidária pela reparação dos danos decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados. A 2ª CC do TJSP, sendo relator o Des. WALTER MORAES, nos EI 106.119-1, assim decidiu: "Empresa de assistência médica. Lesão corporal provocada por médico credenciado. Responsabilidade solidária da selecionadora pelos atos ilícitos do selecionado... Embte.: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde". Igualmente, o TJRJ no AI 1.475/92, por sua 2ª CC, admitiu que "se há solidariedade da empresa de assistência médica, do médico por ela credenciado e do hospital, na reparação dos danos, contra qualquer deles pode dirigir-se o pedido". Também em ação de indenização promovida contra a clínica médica e a empresa de saúde Blue Life, ficou reconhecido: "A co-ré também é responsável solidariamente em decorrência do contrato de assistência médica havido com a autora. Tendo aquela credenciado o réu para a prestação dos serviços médicos, assumiu a responsabilidade para a sua perfeita execução" (voto vencido proferido na AC 140.190-1, de 06.12.1990, depois acolhido nos EI julgados em 06.08.1992). Na AC 165.656-2, o TJMG reconheceu a responsabilidade solidária da Golden Cross com o médico por ela contratado (Ac. de 14.12.1993).

Diferentemente ocorre com os planos de saúde que dão liberdade para a escolha de médicos e hospitais, e os seguros-saúde, que apenas reembolsam as despesas efetuadas pelo paciente, e por isso não respondem pelos erros dos profissionais livremente selecionados e contratados pelo seu segurado.

As instituições privadas utilizam-se de contratos de adesão, cujas cláusulas muitas vezes não se harmonizam com o princípio da boa-fé objetiva e com as regras do Código de Defesa do Consumidor. Convém examinar, embora sucintamente, alguns exemplos desse conflito, que tende a se ampliar na medida em que se estende o campo da previdência privada, utilizando informação jurisprudencial coletada, no Estado de São Paulo.

a) não se admitiu como válida cláusula de exclusão de pagamento de seguro de reembolso de despesa com internação hospitalar, quando, apesar da internação, não houver a cirurgia (3ª CC - TJRS, 30.09.1992, AC 592070528);

b) a limitação do número de dias de internação não foi aceita pela 15ª CC - TJSP, na AC 222.217-2/7, em ac. de 22.02.1994, porque "a norma contratual há de ser sopesada ante a realidade da situação individual, sob pena de chegar-se ao absurdo de impor ao próprio paciente que limite a extensão do seu mal ou que estabeleça o prazo da sua internação, tarefa que na realidade está afeta ao médico acompanhante. No caso presente, tem-se que o paciente esteve internado por seis dias, além dos trinta dias, vindo o óbito";

c) julgou-se inadmissível a exigência de apresentação de guia de internação subscrita por médico credenciado, até 24 horas depois da internação de urgência determinada por médico não credenciado: "Se o paciente é atendido por médico particular e nessa situação é internado, é mais do que evidente que nenhum outro médico credenciado interferirá ou assinará requisição de guia, criando-se um impasse que, como bem salientou o julgado, viola a essência do contrato" (AC da 14ª CC - TJSP, na AC 222589-2/3, de 08.03.1994);

d) os contratos de seguro ou de assistência excluem, modo geral, a cobertura para o tratamento dos pacientes afetados pelo vírus da AIDS. A Res. 1.401/93, do Conselho Federal de Medicina, condenou essa prática, mas nos Tribunais as decisões são divergentes. A 5ª CC - TJRS considerou que a mera exclusão de tratamento de moléstia infecto-contagiosa de notificação compulsória não é cláusula abusiva (MS 594012130, de 14.04.1994), invocando outra decisão no mesmo sentido, da 4ª CC - TJRJ, na ap. civ. 6.217/93, e o conteúdo da Circular 10/93, da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão federal encarregado da fiscalização das companhias de seguros, vedando a inclusão, nos seguros de assistência médica ou hospitalar, de coberturas não particularizadas na apólice. Já a 14ª CC - TJSP, em mandado de segurança impetrado para garantir a continuidade da assistência, afirmou, com melhor razão, que "a supressão de determinados tratamentos como é aquele aqui contemplado configura em princípio uma cláusula abusiva nos termos do art. 51, I, § 1º, da L. 8.079, de 11.09.1990 (CDC)" (MS 224430-2/3, de 03.05.1994). A 18ª CC - TJSP considerou que, já estando sendo prestada a assistência, ela deve de qualquer modo continuar, "na medida em que a suspensão de tratamento médico do paciente aidético, como notório, implica abreviação da morte", reservado à seguradora o direito de, na ação principal, uma vez acolhida a sua tese de exclusão, cobrar-se das despesas efetuadas (MS 231.992-2, de 29.03.1994);

e) se o segurado procura hospital conveniado com o plano de saúde (Blue Life), considerou-se abusiva a cláusula que condicionava a cobertura ao atendimento por médico credenciado: "A cláusula VI, nº 8º, do mesmo plano de saúde exclui da obrigatoriedade do ressarcimento tratamento e exame de qualquer espécie por médicos não credenciados, mas, como se pode concluir, trata-se de verdadeiro artifício malicioso utilizado pela ré-apelada, porquanto ao credenciar determinado hospital está aceitando o tratamento por médicos a este vinculados, e não seria possível ao autor ficar procurando médico que se dispusesse a atendê-lo nesse hospital" (AC 223.242-2/8, 18ª CC - TJSP, de 09.05.1994);

f) é muito comum cláusula abusiva que permita à entidade de assistência rescindir unilateralmente o contrato, utilizada quando o paciente avança na idade ou começa a aparentar doenças. A 19ª CC - TJSP, na AC 292.337-2/6, considerou inválida a cláusula que permitia à companhia Amil a extinção unilateral do contrato de cobertura de serviços médicos, ainda durante o período de carência (25.10.1993). Já a extinção do contrato por falta de pagamento das prestações somente pode ocorrer "após constituído o devedor em mora, já que não se cuida na espécie de mora ex re, pois as cláusulas contratuais devem ser interpretadas em favor do consumidor" (AC 18ª CC - TJSP, AC 233.323-2/6, de 09.05.1994). Nesse mesmo acórdão, foi excluída a cláusula que estabelecia carência por dias de atraso no pagamento das prestações.

A defesa judicial dos associados de instituição privada de seguro ou assistência médico-hospitalar pode ser individual ou coletiva (art. 80 do CDC). A defesa coletiva (art. 81) será exercida quando se tratar de interesses ou direitos difusos (os transindividuais, indivisíveis, de pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), de interesses ou direitos coletivos (os transindividuais, indivisíveis, de grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base), e de interesses ou direitos individuais homogêneos (os decorrentes de origem comum). São legitimados, concorrentemente, o Ministério Público, a União, Estados e Municípios, as entidades da administração pública destinadas especificamente à defesa desses interesses e direitos, e as associações constituídas há pelo menos um ano, que tenham por fim a sua defesa (art. 82). Os interesses e direitos dos associados de companhia de seguro ou assistência médica podem ser classificados no grupo dos interesses ou direitos coletivos, cabendo a ação coletiva quando se cuida, genericamente, da eliminação de uma cláusula abusiva usada em contrato de massa, ou da redução dos reajustes de prestações, estando legitimada para promover a ação a associação privada constituída para a defesa do consumidor. No Brasil, a mais ativa e respeitada entidade desse gênero é o IDEC - Instituto de Defesa do Consumidor, com sede em São Paulo, de significativa atuação na área, cuja legitimidade ativa tem sido reconhecida para promover ações civis públicas sobre a validade de cláusulas e práticas nesse âmbito (EI 180.713-8-01, de 20.12.1993).

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Notas

1. DE AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade Civil dos médicos, Revista Jurídica nº.231, jan/97, pág.122.

2. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, vol. 1, p.382.

3. STOCO,Rui.Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, p.273.

4. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. Coimbra Editora, pág. 405

5. Obra Citada, pág.126

6. GOMES, Orlando. Obrigações. Forense, 1978, pág. 362.

7. STOCO, Rui. A teoria do resultado à luz do Código de Defesa doConsumidor. Revista do Consumidor, n.26, p.212.

8. lato sensu

9. Obra citada.p. 213.

10 O Dano estético, Revista dos Tribunais. São Paulo,1980,p.30.

11 Responsabilidade civil do médico, in RT 718/41.

12. Obra citada.p.41-42

13. Obra. Citada. p.213-214

14. AFONSO, Francisco Caramuru.Responsabilidade Civil dos Hospitais, Clínicas, e Prontos-socorros, in Responsabilidade Civil Médica, Odontológica e Hospitalar, Saraiva, págs. 177/198.

15. in Revista Veja, de 18.08.1993, a insuportável leveza da morte.

16. in RT 768/99.p.355.

17. Sergio Cavalieri FILHO, Programa de Responsabilidade Civil, 2ª edição.p.120

18 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do Anteprojeto. p.89

19. Obra Citada, p.382

20. in RT 522/90 e 652/52.

21. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982,p.30

22. DE ARAÚJO, Edmir Netto. Da Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais,1981,p.42

23. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da responsabilidade do Estado por atos lícitos, Almedina, Coimbra, págs. 231 e segs.

24. Obra. citada., pág. 252, nota 47.

25. Obra. citada., pág. 373.

26. DIAS, Figueiredo e MONTEIRO, Jorge. Responsabilidade Médica em Portugal, RF 289/53.

27. Obra Citada, pág.145


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Sobre a autora
Lízia de Pedro Cintra

advogada, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), mestranda em Direito Civil pela Unesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CINTRA, Lízia Pedro. Da responsabilidade civil dos estabelecimentos de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2458. Acesso em: 11 mai. 2024.

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