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O “toque de recolher" como um dos poucos instrumentos à disposição do juiz para proteger a vida dos menores nas ruas

18/08/2013 às 15:30
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Alega-se que o toque de recolher é inconstitucional e fere os princípios do ECA. Isso não se caracterizaria um paradoxo? Não é a vida o maior bem a ser preservado?

A necessidade de Programas de Políticas Públicas Preventivas se impõe diante de tanta barbárie cometidas contra crianças e menores infratores. Creio ser oportuno abordamos um assunto que tem provocado polêmica, mas que, na minha singela opinião, deveria ser motivo de uma releitura: "Toque de Recolher", que sabia e pioneiramente foi utilizado pelo MM. Juíz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Fernandópolis-SP., Dr. Evandro Pelarin, e imediatamente adotada também por outros magistrados; e que comprovadamente tantos benefícios trouxeram a todas as comunidades que a adotaram.

O que mais falta às nossas crianças é um toque de dignidade e de carinho diante do índice inaceitável de violência e mortes a que são submetidas; falta também muita sensibilidade, responsabilidade por parte dos Governantes e autoridades responsáveis pelas áreas da criança e adolescentes em risco de vida, prostituição, drogadição, trabalho infantil, tráfico de pessoas etc.

"Toque de Recolher" é de fato é um dos poucos instrumentos à disposição desses Magistrados na defesa da criança e do adolescente, diante da violência reinante no pais!

Com a experiência de mais de 30 anos trabalhando na condição de voluntária, lutando pelos direitos de crianças e adolescentes em situação de risco, dependentes químicos e delinquentes juvenis, posso afirmar o quão difícil é para um Juiz da Vara da Infância e Juventude cumprir suas obrigações, na defesa dos direito à integridade física, mental e psicoemocional, o direito à vida dessas crianças e jovens, mormente, nas cidades dointerior do Estado de São Paulo, onde o sistema escolar é ainda mais precário, o acesso à pratica de esportes, à cultura e ao entretenimento não existem (em muitas cidades não chega nem saneamento básico e serviços sociais mínimos, que dirá shoppings, quadras de esportes e cinemas), restando a esses menores o ócio, que os desencaminha ainda em tenra idade.

E esse menor, temos acompanhado por meio das pesquisas, a cada dia mais se torna presa fácil do crime organizado em todas as suas modalidades, pela omissão dos Governantes e indiferença de uma sociedade egoísta, que torna o Apartheid Social Brasileiro, que funciona de forma velada, porém ainda mais denso contra as pessoas de baixa renda, nas cidades do interior, mormente, as de médio e pequeno porte como é o caso da maioria das cidades que adotaram a medida Protetiva do "Toque de Recolher", como a cidade de Fernandópolis (Veja:Justiçasuspende Toque de Recolher em Fernandópolis, SP – portal www.globo.com).

Data máxima vênia aos que pensam contrariamente, (inclusive alguns Tribunais que já se posicionaram e revogaram a medida), mas diante da falta de recursos de toda ordem que essa espécie de Magistrado enfrenta na maioria dos municípios, até nas cidades do interior do Estado de São Paulo (considerado o Carro-Chefe da Nação), porque não ver na medida do "Toque de Recolher" um dos poucos instrumentos de defesa a esses míseros menores? É o mesmo que exigir desses Magistrados milagre e, ao mesmo tempo, denota a falta de sensibilidade por parte daqueles que têm muita familiaridade com a fria teoria e,nenhuma, ou pouquíssima, experiência prática, de campo, que são coisas completamente diversas e desconhecidas por muito dos que decidem sobre a sorte desses menores (muitos sãojuízes que decidem de dentro dos seus gabinetes climatizados no conforto da Capital considerada corro Chefe do Brasil).

O "Toque de Recolher" é apenas uma medida que disciplina o tempo de permanência que uma criança ou jovem menor de idade deve permanecer nas ruas, desacompanhados, após o anoitecer, para evitar que esse menor seja vitimado pela violência generalizada, que temos assistido, ou pior, que seja aliciado pelo crime.

Aos que alegam que a medida "Toque de Recolher" é inconstitucional e fere os princípios do ECA, isso não se caracterizaria um paradoxo? Não é a vida o maior bem a ser preservado, mormente, o de crianças e adolescentes que ainda estão em processo de formação físico-psicoemocional e mental e, por essa razão, mais vulneráveis a todo tipo de engodo?

Também não se constitui outro paradoxo achar que o Conselho Tutelar, que na teoria funciona com a maestria de uma orquestra a favor do menor, mas que na pratica não tem sequer autonomia financeira (nem para manter uma condução, um veículo disponibilizado diuturnamente, para servir as necessidades de transportes desses menores) e vive dos favores do Executivo? Afinal, o que é mais relevante: a preservação da vida dos menores ou a soberania dos princípios do ECA?

A título de sugestão, não seria mais coerente com a triste realidade desses menores que, ao invés de mexer em uma das poucas medidas que apresentou resultados satisfatórios, contribuindo para queda das infrações cometidas por menores que ficam vadiando nas madrugadas desacompanhadas, se a medida fosse erigida à condição de Lei?

Há assuntos que de tão relevantes e urgentes dispensam discussões e polêmicas, e que deveriam ser priorizados. E esse me parece ser o caso do “Toque de Recolher" que, em países civilizados, é Lei regulatória do comportamento: nesses países existem deveres e direitos das crianças e adolescentes e ponto.

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O "Toque de Recolher" utilizado pela cidade de Diadema/SP, por exemplo, como instrumento capaz de reduzir o alto índice de homicídios naquela cidade, foi instituído com o apoio do Executivo e Legislativo, e se mantém até hoje, ordenando que os bares e botecos (Brasil tem um milhão de botecos) sejam fechados até 23h impreterivelmente. O povo acatou se submetendo à medida, o que tem sido um instrumento de vida e sobrevivência pacífica para aquela cidade. Será que a vida (o bem mais precioso do ser humano) não deve prevalecer ante a liberdade de ir e vir tendo em vista a realidade em que essas cidades vivem (e que não são alteradas significativamente pelo Estado)? (Veja: Fecharbares uma hora mais cedo reduz violência em 16%, afirma estudo).

No Japão, crianças e menores de idade nunca saem desacompanhadas, não frequentam vida noturna nem ingerem bebidas alcoólicas e, caso isso ocorra, os pais ou responsáveis por esses menores, bem como os estabelecimentos comerciais arcarão não apenas com multas vultosas, mas também poderão ser presos sem direito a fiança porque lá o princípio da igualdade de direitos é o mesmo para ricos e pobres. Não há o que discutir porque as leis por lá são feitas para serem cumpridas por todos! A Prevenção nos países civilizados começa na mais tenra idade (por exemplo: no Japão as leis de trânsito começam a ser aprendidas, obrigatoriamente, na primeira infância). Não será por essa razão que a taxa de mortes no trânsito no Japão é tão baixa, 64,5 mortes a cada milhão de veículos em 2010 e a taxa de homicídios é de 0,4 mortes a cada 100 mil habitantes (dados do UNODCde 2009)

Passemos então a refletir, na prática, nos colocando na situação da criança e do adolescente vulneráveis e dos aplicadores de leis em meio ao caos dessas cidades brasileiras, desamparados de qualquer apoio social ou político, ultrapassando interpretações apenas teóricas, baseadas em princípios e normas legais (que apesar de muito bonitos e importantes, quando aplicados como fundamento isolado e genérico, acabam por prejudicar seus tutelados em vez de protegê-los), mas avaliando em conjunto aquilo que o direito trabalhista chama de “primazia da realidade”, e que nas situações acima demonstradas situações poderíamos chamar de “primazia de uma realidade destroçada”.

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Sobre a autora
Conceição Cinti

Advogada e educadora. Especialista em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas, com experiência de mais de três décadas. Articulista de vários sites.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CINTI, Conceição. O “toque de recolher" como um dos poucos instrumentos à disposição do juiz para proteger a vida dos menores nas ruas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3700, 18 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24591. Acesso em: 28 mar. 2024.

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