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Juiz inquisitor.

Crítica à decisão do STF

01/11/2001 às 01:00
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ADIN 1.517-UF

HC 74.826-SP

Ministro Maurìcio Corrêa( relator)

Relatório

:

Cuida-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, proposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil - ADEPOL/BRASIL, com fulcro no art. 103, inciso IX, da Constituição Federal, tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade do art. 3º da Lei Federal nº 9.034, de 3 de maio de 1995, cujo dispositivo tem o seguinte teor: "Art. 3º - Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça. § 1º - Para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo.

§ 2º - O juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiveram relevância probatória, podendo, para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc.

§ 3º - O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos à mesma, e estão sujeitos às sanções previstas pelo Código Penal em caso de divulgação.

§ 4º - Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz.

§ 5º - Em caso de recurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça."

2. Esses dispositivos que ora são impugnados reportam-se à disciplina do que autoriza o artigo 2°, em seu inciso III, da Lei n° 9.034/95, que para uma melhor compreensão da espécie, abaixo transcrevo:

"Art. 2º - Em qualquer fase de persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações criminosas são permitidos, além dos já previstos na lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

I - omissis

II - omissis

II - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais." 3. Circunscreve-se a irresignação à pretendida inconstitucionalidade do artigo 3º, dizendo-o incompatível com o disposto nos incisos LIV, LVI e LX, do art. 5º e parágrafos 1º, inciso IV e 4º do art. 144, todos da Constituição Federal.(...)

16. Tendo em vista o pedido de medida liminar, trago o feito para deliberação plenária.

É o relatório.

Voto: Senhor Presidente. (...)

3. Acentue-se, antes de mais nada, que a Lei n° 9.034/95 é lei especial, tendo em vista que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por grupos de organizações criminosas e constitui-se em medida de alta significação no combate ao crime organizado, que hoje em dia se espraia pelo mundo afora como verdadeira praga, daí o mecanismo legal visando a conter a sua progressão, na área do território pátrio. Como se sabe a ação maior da empresa criminosa se consolida com mais freqüência pelos redutos do contrabando, narcotráfico, fraudes internacionais, tráfico de crianças, prostituição internacional, tráfico de armas de grande potência, ações delituosas no campo da informática, seqüestros internacionais, e muitos outros. (...).

Era de se esperar, portanto, que o legislador se preocupasse com esse tipo de delito, e até mais preventiva do que mesmo concretamente, antes que o mal alcance maiores dimensões, se adiantasse na elaboração de mecanismos disciplinadores construindo regras procedimentais para o seu combate.

4. A questão de mérito reside na postulação formulada na inicial para que seja expungido do ordenamento jurídico o art. 3º da Lei Federal nº 9.034, de 3 de maio de 1995, sob o argumento de ofensa aos incisos LIV, LVI e LX do art. 5º, ao inciso IV do § 1º do art. 144 e ao § 4º do mesmo art. 144, todos da Constituição Federal.

5. Essa lei atribui ao juiz, nas hipóteses de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, conquanto adotado o mais rigoroso segredo de justiça, realizar pessoalmente e em qualquer fase de persecução criminal, diligências que compreendam o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, como meios de prova e procedimentos investigatórios relativos à prática de crime resultante de ações decorrentes do chamado crime organizado.

6. Para tanto, o juiz pode requisitar o auxílio de pessoas que pela natureza de função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo; contudo, deve pessoalmente lavrar auto circunstanciado da diligência que empreender, sendo-lhe facultado designar escrivão ad hoc, dentre as pessoas que requisitar para auxiliá-lo, cujo auto deverá ser conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, somente podendo a ele terem acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa; deve, ainda, anexar ao auto de diligência, os argumentos da acusação e defesa, apresentados em separado, e que versarem sobre a diligência.

7. Não há dúvida que a lei em tela subtraiu da Polícia a iniciativa desse procedimento investigatório especial, em face de sua própria natureza, cometendo-o diretamente ao Juiz, pelo fato peculiar de destinar-se o expediente o acesso a dados, documentos e informações protegidas pelo sigilo constitucional, o que, mesmo antes do advento dessa lei, já estava a depender de autorização judicial para não caracterizar prova ilícita.

8. Assim, em princípio, parece-me aceitável o entendimento de que se determinadas diligências, resguardadas pelo sigilo, podem ser efetuadas mediante prévia autorização judicial, inexiste impedimento constitucional ou legal para que o próprio juiz as empreenda pessoalmente, com a dispensa do auxílio da polícia judiciária, encarregando-se o próprio magistrado do ato.

9. Os argumentos da Autora estão aduzidos em duas linhas de raciocínio: a primeira, fulcra-se na premissa de que ao Juiz, cuja imparcialidade é inerente à condição da magistratura, não cabe ir em busca da prova posto que esta, se por ele desvendada, e não pela Polícia, implicitamente estaria a caracterizar obtenção por meio ilícito e afastada do devido processo legal; a segunda, especificamente situada no rito estabelecido para que a diligência seja realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça, configura violação ao princípio constitucional da publicidade.

10. Na visão da Autora, os apontados vícios de inconstitucionalidade residem simplesmente no fato de que o instrumento processual adequado à apuração das infrações criminais ser o inquérito policial, sob a responsabilidade da polícia judiciária. E este é o ponto nodal da tese esposada na inicial.

11. A questão, todavia, não é tão simples quanto à Autora parece, uma vez que o dispositivo impugnado está inserido em um sistema que, tendo por corolário o dever do Estado, objetiva a prestação da segurança pública, a apuração das infrações penais e a punição dos infratores.

12. Não há como interpretarem-se as normas contidas no art. 144, § 1º, inciso IV, e § 4º, como limitativas do dever da prestação jurisdicional, cuja extensão vai desde a apuração dos fatos até decisão judicial, elastério esse compreendido no conceito de exercício da magistratura.

13. Competindo ao Judiciário a tutela dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição, não há como imaginar-se ser-lhe vedado agir, direta ou indiretamente, em busca da verdade material mediante o desempenho das tarefas de investigação criminal, até porque estas não constituem monopólio do exercício das atividades de polícia judiciária. Querer elevar à condição de processo inquisitorial ou à inovação do juiz de instrução, mera diligência a ser efetuada pelo Juiz, na apuração do deplorável crime organizado, a meu ver é ir longe demais. É extremismo que não se compatibiliza com a realidade das normas impugnadas que apenas traçam comportamento especial para o magistrado em situação excepcional, ou seja, lhe dá o remédio adequado para, sem delongas, permitir-lhe ação imediata no levantamento de dados e informações que podem se tornar indispensáveis no combate a esse modo de delito hoje em pleno curso.

Assim como essas quadrilhas se organizam com todo um instrumental moderno e sofisticado, penetrando inclusive na intimidade do poder, é mais do que justificável que também o Estado se apreste no sentido de buscar meios ágeis e eficientes, em defesa da sociedade, que é a vítima maior do alastramento desse mal, sem que com isso se extraia que haja qualquer violação ao sistema constitucional.

14. Basta ver, dentre outras normas do nosso ordenamento jurídico, o art. 4º e seu parágrafo único do CPP:

"Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas jurisdições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função."

15. Da mesma forma é de salientar-se que a Lei 8.112/90 ao estatuir no parágrafo único do seu art. 154 que "na hipótese de o relatório da sindicância concluir que a infração está capitulada como ilícito penal, a autoridade competente encaminhará cópia dos autos ao Ministério Público, independentemente da imediata instauração do processo disciplinar".

A respeito da coleta de prova realizada através do próprio juiz, vê-se que o procedimento não é novo no nosso ordenamento processual, consoante se extrai do que expressam os artigos 440 a 443 do CPC ao magistrado atribuindo a inspeção judicial, sem que tais mecanismos tenham sido ajuizados como inconstitucionais.

16. Ainda quanto à concessão de poderes investigatórios, a própria Constituição Federal, no § 3º do art. 58, conferiu-os às Comissões Parlamentares de Inquérito, determinando que as suas conclusões serão encaminhadas diretamente ao Ministério Público para a promoção da responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

17. Acrescente-se, ainda, que a Carta Magna, no art. 129, inciso III, inclui nas funções institucionais do Ministério Público, a de "promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos".

18. Diga-se o mesmo com relação à Lei de Falências que pelos seus artigos 103 e seguintes trata do inquérito judicial. (...)

20. Assim sendo tenho que a expressão "com exclusividade", inserida na regra contida no inciso IV do § 1º do art. 144 da CF, deve ser interpretada no sentido de excluir das demais polícias elencadas nos incisos II a V do referido artigo, inclusive as de âmbito federal (rodoviária e ferroviária), a destinação de exercer as funções de polícia judiciária da União. 21. Ao cuidar das funções de polícia judiciária e investigações criminais atribuídas às Polícias Civis, o texto constitucional do § 4º do art. 144 não utiliza o termo "exclusividade". 22. Constata-se, pois, que a Constituição não veda o deferimento por lei de funções de investigações criminais a outros entes do Poder Público, sejam agentes administrativos ou magistrados.

23. Ademais, o dispositivo questionado não prevê a feitura do inquérito e sim a realização de diligência judicial.

24. Por isso mesmo subsumindo-se inexistir a alegada inconstitucionalidade no que diz respeito à outorga legal de competência ao juiz para pessoalmente realizar a diligência a que se refere o art. 3º da Lei nº 9.034/95, há de prosseguir-se na apreciação dos demais argumentos da Autora: violação aos incisos LIV, LVI e LX do art. 5º da CF.

25. Não há falar-se, por conseguinte, em prova obtida por meio ilícito, visto que colhida de conformidade com o previsto em lei e sob a tutela do Judiciário. A participação do juiz na fase pré-processual da persecução penal é a garantia do respeito aos direitos e garantias fundamentais, sobretudo os voltados para a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem da pessoa acerca de quem recaem as diligências, e para a inviolabilidade do sigilo protegido pelo primado constitucional.

26. Por outro lado, não há cogitar-se de violação das garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, pois os §§ 3º e 5º do art. 3º da Lei nº 9.034/95 até asseguram, expressamente, o acesso das partes às provas objeto da diligência. Quer dizer: o investigado pode acompanhar a diligência e exercer sua defesa preliminar; assim, o princípio do contraditório e ampla defesa, assegurado aos acusados, conforme inciso LV do art. 5º da CF, está preservado mesmo antes da própria indiciação.

27. Da mesma forma a argumentação segundo a qual a colheita de provas feita pessoalmente pelo juiz compromete a sua imparcialidade não merece prosperar. Colhê-las não implica valorá-las, o que há de ser feito de forma fundamentada e após o contraditório. Não antecipa a formação de um juízo condenatório, do mesmo modo como não o antecipa a decretação de prisão preventiva ou temporária.

28. Quanto à apontada violação ao princípio constitucional da publicidade porque a diligência é realizada sob segredo de justiça, vale lembrar que o inciso LX do art. 5º da CF admite restringi-lo. De fato o dispositivo atacado visa exatamente a assegurar o sigilo constitucional, dispondo que " ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo Juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça." Por conseguinte ao invés de o preceito constitucional dar suporte à autora, na verdade coonesta a norma impugnada.

29. Como leciona PAULO LÚCIO NOGUEIRA, ob.cit., pág. 39, comentando sobre o inquérito:

"É uma peça sigilosa. Não só no interesse das investigações, mas também do acusado e da própria sociedade, durante a realização do inquérito policial deve ser guardado certo sigilo, pois sua feitura é incompatível com o princípio da publicidade, que só vigora no processo contraditório."

30. Diante do exposto, pelo menos neste exame preliminar, não me convenço que a fumaça do bom direito comprometa a indicada conveniência da manutenção das normas impugnadas, pela sua alta destinação visando ao desmantelamento das quadrilhas organizadas, que já começam a constituir em pesadelo para a sociedade e o Estado.

Ademais, depois de dois anos da vigência desses dispositivos, não me consta que tenha havido qualquer fato capaz de apontá-los como a justificar a sua suspensão pelas premissas do periculum in mora.

Diante do exposto, Senhor Presidente, indefiro a cautelar.

* acórdão ainda não publicado


ANÁLISE CRÍTICA DA DECISÃO

A presente análise tem por objeto uma decisão proferida liminarmente pelo STF em sede de AÇÃO DECLARATÓRIA DE INCONSTITUCIONALIDADE, ainda em trâmite, requerida pela ASSOCIAÇÃO DE DELEGADOS DE POLÍCIA DO BRASIL, interposta pelo advogado Dr. Wladimir Sérgio Reale, que contesta a legitimidade constitucional do artigo 3º da Lei 9.034/95 (Crime Organizado).

Quanto ao que diz a redação do dito dispositivo e as alegações que indeferiram a cautelar, já estão mencionados na primeira parte deste trabalho. A respeito dos fundamentos (todos estritamente constitucionais) pelos quais a ADEPOL contesta a constitucionalidade desta norma, não nos cabe aqui tratar, posto que vamos nos deter apenas na análise daquelas alegações proferidas pelo STF, que poderão ser mencionadas ao longo desta crítica com o único propósito de melhor nos situarmos na discussão.

Nossa irresignação vai de encontro a basicamente três posições afirmadas pelo Egrégio Tribunal: a) que o magistrado tem poderes instrutórios; b) que a coleta de provas não antecipa a formação de juízo condenatório; c) que a CF/88 autoriza restrições ao princípio da publicidade naquelas condições.

Em breve parênteses, convém lembrarmos antes o que vem a ser processo inquisitório, que, ao nosso ver, está sendo ressuscitado pelo artigo 3º da dita lei, sob o pretexto de que se trata "de lei especial (...) que constitui-se em medida de alta significação no combate ao crime organizado(...)"[1].

Pois bem. A figura do juiz inquisidor data da era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da inquisição. Foi combatido ardorosamente pelos Iluministas e proscrito na Revolução Francesa.

Atualmente, na maioria dos países no mundo vige o sistema acusatório, que melhor se adapta ao Estado Democrático de Direito, e principalmente com o almejado Judiciário Democrático. Algumas características deste sistema são a rígida separação entre juiz e acusador, a paridade entre a acusação e a defesa, a publicidade dos atos processuais, etc. De outro lado, são próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz no campo probatório, a disparidade de poderes entre a acusação e a defesa, o caráter sigiloso e secreto da instrução, etc. Logo, o que se nota e a tendência garantista do modelo acusatório, enquanto que o inquisitório aproxima-se do autoritarismo e da eficiência repressiva a todo custo.

Ora, partindo-se da premissa de que algum juiz, no Brasil, realmente vai pessoalmente proceder aquela diligência necessária na apuração dos fatos da causa, investigando e recolhendo o material probatório, o que se nota é que o legislador pretendeu, da noite para o dia, restaurar o sistema inquisitório, nos esplendores do século XXI. E, analisando-se o Direito Comparado, não precisamos viajar muito para notar que mais uma vez o Brasil caminha pela contramão. Na Espanha, Gimeno Sendra adverte no sentido de que tal permissão "tem a capacidade de converter os meros atos investigatórios em atos de prova". Na Itália, recentemente foi banido do ordenamento jurídico o antigo modelo persecutório, desaparecendo com a figura do juiz de instrução após a reforma processual de 1989.

Afora a restauração do sistema inquisitório, já que, de acordo com nossa Suprema Corte "querer elevar à condição de processo inquisitorial ou à inovação do juiz de instrução, mera diligência a ser efetuada pelo Juiz, (...) é ir longe demais (...)"[2], argumento inconvencível por sinal, nos perguntamos: e o devido processo legal? Será que aquela "mera diligência" está isenta da submissão ao dito princípio?

Ora, o due process of law é só um mandamento constitucional mesmo….

Vemos com acerto a lição da processualista Ada Pellegrini Grinover, acentuando a inconstitucionalidade do artigo 3º, ora em comento, "porque fere a mais importante garantia do devido processo legal, que é a imparcialidade do juiz. E é, igualmente, inconstitucional, porque vulnera o modelo acusatório, de processo das partes, instituído pela CF/88, quando considera os ofícios da acusação e da defesa como funções essenciais ao exercício da jurisdição, atribuindo esta aos juízes, que têm competência para processar e julgar, mas não para investigar no âmbito extraprocessual"[3].

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Entre as atribuições do juiz fixada pela Carta Magna, em nenhum momento se vislumbra a colheita de provas fora do processo legal (artigo 5º, LIV da CF/88). É mais do que mencionado na doutrina, e mesmo em sede jurisprudencial, que juiz e devido processo legal são dois conceitos inseparáveis. Também se sabe que toda prova que possa ofender a privacidade protegida pela Constituição só pode ser deferida por juiz, e desde que constatada justa causa. Mais evidente ainda é que esta ordem não pode ser quebrada para permitir que o juiz vá em busca dessa justa causa. Pelo menos não nos lembramos de que alguém, em algum lugar, tenha mencionado que é função do magistrado ir atrás do fummus boni iuris. Por este motivo é que alguns doutrinadores, como o Prof. Luiz Flávio Gomes, afirma que estas provas seriam ilegítimas.

Ademais, qual imparcialidade terá um investigador comprometido com a colheita das provas procedidas por ele mesmo? Bom, mas aí "essa argumentação não merece prosperar (...) Colhê-las não implica valorá-las, o que há de ser feito de forma fundamentada e após o contraditório. Não antecipa a decretação do juízo condenatório (...)"[4]. Tudo bem, mas para isso vamos ter que contar com uma dupla personalidade de fundo esquizofrênico por parte do julgador. Assim, o mesmo juiz na hora da colheita da prova é um, mas na hora de valorá-la é outro. O juiz divide-se em dois e não irá contaminar-se, embora tenha sido o "investigador" da fase preliminar. "Incontestável".....

Por fim, e não menos importante, é de se mencionar a importância da publicidade em sede processual. Ao nosso ver, a função fundamental dessa premissa é o controle público da atividade jurisdicional, que se faz pela motivação e publicidade das suas decisões. Aliás, quando falam em controle "externo" do Poder Judiciário (que consistiria na criação de um órgão composto por quem não pertence a esse Poder para controlar seus atos), um dos mais relevantes argumentos em sentido contrário é exatamente este: o Judiciário, em sua atividade jurisdicional, não necessita de controle externo porque já é suficientemente controlado, seja pela motivação das sentenças, seja pela publicação delas. No dia em que o Judiciário abrir mão da motivação e da publicidade das decisões, é evidente que se tornará impostergável a instituição de um órgão "externo" que venha controlá-lo. Onde há sigilo, onde há sessão secreta ou reservada, impõe-se a fiscalização, inclusive externa. A publicidade, segundo salienta Castanho de Carvalho, é que dá a legitimação da função judicial. Por sua vez, a motivação confere aquela legitimação a posteriori, mencionada por Calmon de Passos.

Ora, por um lado a Constituição no seu artigo 5º, LX, diz que "a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou do interesse social o exigirem", de outro, dispõe o artigo 93, IX que "todos os julgados dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes". Um dispositivo complementa o outro, e com clareza especificam que, o que a lei pode restringir é nada mais do que a presença, em determinados atos, do público em geral, limitando-a às partes e a seus advogados, ou somente a estes. Logo, a imposição de "segredo absoluto" em torno de um auto de diligência não encontra amparo constitucional.

Muito menos a nomeação de escrivão ad hoc. Chega a ser tal mandamento hilário, para não dizer "preconceituoso". Não se concebe tamanha desconfiança para com um agente que, por lei, goza de fé pública. No mínimo absurdo é o juiz lavrar pessoalmente o auto de diligência (falando nisso, ainda não conseguimos imaginar o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito subindo os morros cariocas atrás de provas a respeito do "crime organizado". Por sinal, seria com ou sem toga? Quem sabe ele teria mais sucesso do que o exército...). Por outro lado, se o juiz pode nomear um escrivão ad hoc (o que significa que outras pessoas terão conhecimento da prova colhida), porque a lei não poderia prever a designação de um perito para a colheita das provas?

É certo que há necessidade que o Estado assuma alguma postura em face do crime organizado, antes que este mal alcance maiores dimensões. Porém, deslocar esse problema para o "juiz", dando-lhe atribuição de "pessoalmente", dentro do "mais rigoroso segredo de justiça", realizar "diligência" para colheita de provas, é no mínimo um equívoco muito grande, para não falarmos em jogo político. Politicagem sim, porque apesar do manifesto absurdo que é esta lei (que nem ao menos define o que vem a ser crime organizado), a mídia já enaltece os "novos poderes dos juízes", que ganharam poderes que "jamais tiveram"[5]. Daí para frente, considerando-se que o povo brasileiro é uma "entidade amorfa", como disse o Des. Humberto Manes no seu artigo A Politização do Judiciário, fez "bem" o legislador ao nos brindar com essa solução.

Por fim, com exceção de alguns "detalhes", como a afronta ao sistema traçado pela nossa Magna Carta, pela qual nossa Suprema Corte Constitucional deveria velar, como Guardião da Constituição, garantidor dos anseios do Poder Constituinte Originário... mais pesar ainda pela resposta dada pelo Estado ao mal avassalador que representa hoje o crime organizado (que foi nenhuma), cremos que esta obra de ficção, denominada Lei 9.034/95, não trará maiores problemas, pois que é inócua, a não ser que algum juiz desavisado, após ater-se na leitura de Cervantes, incorporar o espírito de "Dom Quixote", e sem o auxílio de um "Sancho Pança", porque o sigilo deve ser absoluto, resolva imiscuir-se em batalhas na colheita de provas, por onde o crime organizado estiver.


NOTAS

1.Vide Informativo STF, nº 71, página 2 (voto, ponto 3)

2,Idem, página 4 (voto, ponto 13, 2ª parte)

3,No Boletim IBCCrim n. 30, p. 1.

4,Vide Informativo STF, nº 71, página 6 (voto, ponto 27)

5,Assim, Veja de 10.05.95, p. 97


BIBLIOGRAFIA

Obras:

Crime Organizado. Luiz Flávio Gomes & Raúl Cervini. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais. 1997

Os 10 anos da Constituição Federal. Temas diversos. Vários autores. Editora Atlas. 1999

Tutela Constitucional das Liberdades. Vicente Greco Filho. Editora Saraiva. 1989

Textos:

PASSOS, J.J. Calmon de. A formação do convencimento do magistrado e a garantia constitucional da fundamentação das decisões.

MANES, Humberto. A politização do Judiciário.

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Sobre a autora
Beatrice Merten Rocha

acadêmica de Direito na Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Beatrice Merten. Juiz inquisitor.: Crítica à decisão do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2463. Acesso em: 23 abr. 2024.

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