3. A EC nº 73, de 6 de junho de 2013
É exemplo de uso abusivo de emenda constitucional ao ADCT, a EC nº 73/2013, instrumento utilizado como forma de burlar regra constitucional inserida no corpo permanente da Carta Constitucional, referente à iniciativa privativa do Judiciário para projetos de criação de novas unidades jurisdicionais, inclusive, novos Tribunais Regionais Federais.
No último dia 6 de junho, as Mesas da Câmara dos Deputados (CD) e do Senado Federal (SF) promulgaram a EC nº 73/2013, que cria mais 4 Tribunais Regionais Federais (TRF), por desmembramento dos 5 atualmente existentes, nos seguintes termos:
Art. 1º O art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte § 11:
'Art. 27. .............................................................................................................
§ 11. São criados, ainda, os seguintes Tribunais Regionais Federais: o da 6ª Região, com sede em Curitiba, Estado do Paraná, e jurisdição nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul; o da 7ª Região, com sede em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, e jurisdição no Estado de Minas Gerais; o da 8ª Região, com sede em Salvador, Estado da Bahia, e jurisdição nos Estados da Bahia e Sergipe; e o da 9ª Região, com sede em Manaus, Estado do Amazonas, e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima.'
Art. 2º Os Tribunais Regionais Federais da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões deverão ser instalados no prazo de 6 (seis) meses, a contar da promulgação desta Emenda Constitucional.
Segundo a dicção da EC, deverão ser criados:
a) o TRF6, com sede em Curitiba/PR e jurisdição nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. PORTANTO, o TRF4 passará a ter jurisdição apenas no Estado do Rio Grande do Sul; e o TRF3, apenas no Estado de São Paulo; b) o TRF7, com sede em Belo Horizonte/MG e jurisdição no Estado de Minas Gerais. PORTANTO, o TRF1 perderá a jurisdição no Estado de Minas Gerais; c) o TRF8, com sede em Salvador/BA e jurisdição nos Estados da Bahia e Sergipe. PORTANTO, o TRF1 perderá a jurisdição no Estado da Bahia (além de perder no Estado de Minas Gerais, pela criação do TRF7) e o TRF5 perderá, de sua composição originária, a jurisdição no Estado de Sergipe; e d) o TRF9, com sede em Manaus/AM e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. PORTANTO, o TRF1 que já perderá a jurisdição nos Estados de Minas Gerais e Bahia, perderá também nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, restringindo-se sua jurisdição nos Estados do Amapá, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Piauí e Tocantins e no Distrito Federal.
Essa EC de agigantamento da segunda instância da Justiça Federal (que praticamente dobrará de tamanho em exíguo tempo) impõe amplo e cuidadoso debate, no pertinente à constitucionalidade, à complexidade técnica e à repercussão orçamentária.
Vê-se que se trata de discussão, encetada nos limites de um Poder, sobre a estruturação de outro Poder do Estado, o que requer atenção ao delicado campo da independência e da harmonia entre os Poderes, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 2º da CF/88) e cláusula pétrea do nosso ordenamento constitucional (art. 60, § 4º, III, da Carta Magna de 1988).
Ademais, não precisa ser muito atento para depreender que a simplicidade redacional da EC contrasta com os complicados (e dispendiosos) procedimentos a serem disparados para fins de implantação efetiva, no curto prazo de 6 meses, dessas novas estruturas. Perquire-se, inclusive, nesse tocante, acerca da congruência da EC com as exigências encartadas no art. 169 da CF/88. Além dos complicadores técnicos e orçamentários associados ao implante, há os que inequivocamente se revelarão no passo subsequente, inclusive atingindo a consistência da jurisprudência, pela atomização dos precedentes.
A preocupação com a EC se acentua, especialmente, quando entra em cena o dado econômico, fator esse que não pode passar sem a devida ponderação, sem que a ele seja atribuída a devida relevância, especialmente considerada a moderna discussão representada pela teoria econômica do direito e mormente em tempos de crise econômica mundial, em que a maior parte dos países no mundo está lutando para sair ou para não cair no buraco econômico, com graves reflexos sociais.
Nesse tocante, deve ser objeto de consideração cautelosa o impacto orçamentário da EC, consideradas não somente as despesas de implantação, mas, especialmente, a elevação expressiva, que será por ela gerada, do custo fixo de manutenção da Justiça Federal de Segundo Grau.
Acresça-se, nessa contextura, que a opção por essa estratégia de ação, de multiplicação dos TRF, para se alcançar a finalidade declarada com a EC (promoção do acesso à Justiça pela aproximação dos órgãos jurisdicionais da população e pela maior rapidez da prestação jurisdicional, reputadas derivadas da descentralização), deveria estar lastreada em estudo objetivo (fundado em parâmetros reais, concretos) de eficiência e de economicidade (não se olvidando que tem assento constitucional o princípio da eficiência - art. 37, caput, da CF/88 -, cujo conceito está amalgamado ao de economicidade). O acolhimento da EC não poderia, assim, prescindir de exame demonstrativo de que, dentre todas, essa medida é a mais eficiente, produz as melhores respostas com os menores custos, não sendo possível, com menor nível de despesa, chegar aos mesmos ou melhores resultados em prol dos jurisdicionados.
Pensa-se que essas ponderações constitucionais, técnicas e financeiras não foram suficientemente maturadas, o que coloca em xeque a EC.
A PEC correspondente, nesse sentido, parece ter caminhando, muito mais, em decorrência de pressões políticas, por parte dos que, individualmente, vão ganhar com a exposição pública pela vinculação dos seus nomes aos Estados que, em específico, serão beneficiados diretamente com a nova organização administrativa, a exemplo de Paraná, Minas Gerais e Bahia, o que pode, inclusive, gerar mais trincas no federalismo brasileiro (guerra fiscal e distribuição dos royalties de petróleo, exemplificativamente, são pontos que o têm castigado bastante nos últimos tempos).
Observem-se, nessa linha, os Estados de origem dos deputados federais que formularam sucessivos requerimento de inclusão da PEC em questão na ordem do dia. Registrem-se, outrossim, outras PEC de mesma matéria: o Senador Eunício Oliveira (PMDB/CE) é o autor da PEC 61/2012, que sugere a criação de um TRF com sede em Fortaleza/CE; pelo parlamentar Flexa Ribeiro (PSDB/PA) foi sugerida a criação de um TRF com sede em Belém/PA, cuidando-se da PEC 46/2012; da parlamentar Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) é a PEC 86/2011, na qual sugere a criação de um TRF com sede em Manaus/AM; o senador Sérgio Souza (PMDB/PR) é o autor da PEC 45/2012, que cria um TRF com sede em Curitiba/PR; o senador Clésio Andrade (PMDB/MG) é o autor da PEC 65/2011, que cria um TRF com sede em Belo Horizonte/MG. Em outros termos, parece que cada parlamentar quer um TRF para seu Estado de origem, sem se preocupar com os impactos, especialmente os financeiros, que decorrem dessa fragmentação, tanto que muitos deles sequer se deram ao trabalho de dizer de onde adviriam os recursos necessários para essa implantação.
O Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como dirigente máximo do Poder Judiciário brasileiro, já manifestou seu entendimento, no sentido da inconstitucionalidade da PEC (ora EC nº 73/2013). Se, por um lado, sua compreensão pode, eventualmente, não ser perfilhada por outros integrantes do STF, por outro lado, dela se pode depreender um fio importante do grande emaranhado de debates em que se encontra imersa a EC telada, novelo que pode vir a ser desfiado em eventual ação de controle de constitucionalidade.
Em verdade, no próprio Parlamento, há significativa discordância acerca da competência do Poder Legislativo para tratar da matéria, tida por muitos com afeta ao Poder Judiciário. Ao lado dos que defendem a constitucionalidade da EC, outros parlamentares discursam no sentido da inconstitucionalidade da criação de outros Tribunais Regionais Federais a partir do Poder Legislativo. Esses últimos parecem estar com a razão.
O art. 96 da CF/88 é claro (negritos acrescidos):
Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;
b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;
c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;
d) propor a criação de novas varas judiciárias;
e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;
f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;
II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:
a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;
b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver;
c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;
d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;
III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.
Vê-se, portanto, que a criação de novos TRF deve partir do Poder Judiciário, por expressa disposição constitucional (art. 96, II, c).
O argumento de que essa regra constitucional não foi maculada pela EC 73/2013, porque essa implementou apenas uma alteração do art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da CF/88, é falacioso.
Além das considerações formuladas, antecedentemente, no início deste trabalho, observem-se os ensinamento de José Afonso da Silva, que bem resume a natureza jurídica e as características do que se designa de ADCT:
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias traz um conjunto de disposições constitucionais, geralmente separado do corpo da Constituição, como a nossa de 1946 e a vigente, com numeração própria dos artigos. Essa é a melhor técnica, porque se trata de regular e resolver problemas e situações de caráter transitório, ligados à passagem de uma ordem constitucional à outra. São constitucionais, porque emanadas do mesmo poder constituinte de que emanaram as disposições definitivas e permanentes da Constituição; ou seja, são produzidas pelo legislador constituinte por ocasião de uma mutação formal do regime constitucional, com o objetivo de disciplinar situações jurídicas pendentes no momento da transição do regime velho para o novo, e têm por conteúdo uma disciplina diversa da velha e da nova normatividades constitucionais - e, por isso, apresentam particularidades a respeito de ambas. Daí suas características básicas: (a) são normas materiais, porque disciplinam situações fáticas; (b) têm sua eficácia circunscrita pela eficácia das disposições permanentes, por isso não são normas de indefinida aplicação, mas de aplicação limitada às situações jurídicas existentes naquele momento de transição como regra distinta quer daquela posta pela norma ab-rogada, quer daquela posta pela norma ab-rogante; (c) por isso, têm efeitos concretos, porque disciplinam situações determinadas e concretas; (d) não são disposições autônomas, mas destinadas a vincular-se ou com a velha ou com a nova ordem, ou trocar elementos de uma ou de outra; (e) não introduzem novidade, senão não seriam transitórias; mas introduzem particularidades na disciplina disposta por outras normas. Disse decorrem as seguintes consequências: (a) as disposições transitórias são necessariamente temporárias, não porque tenham um termo, mas porque destinadas a se exaurir com o exaurimento, progressivo ou instantâneo, da situação concreta por elas contemplada; (b) por essa razão, não admitem interpretação extensiva, nem integração analógica, porque as situações concretas, exatamente por serem concretas, são únicas e exclusivas - e, nessa qualidade, não admitem analogia - e porque situações analógicas são situações diferentes, conquanto semelhantes, e, assim, admitir-se a extensão de uma disposição transitória a uma situação análoga à que ela disciplina seria dar vida a outra disposição transitória; (c) disposições transitórias só disciplinam situações de transição a respeito das normas velhas, pois a respeito das novas normas não podem ocorrer questões transitórias; (d) eficácia exaurida de disposição transitória não se restabelece[14].
É patente, portanto, que a matéria em questão (criação de novos TRFs) não poderia ser tratada na forma de alteração de ADCT, simplesmente porque ela não tem as características que justificariam sua inclusão naquele adendo ao Texto Constitucional. Reitere-se: o papel do ADCT é a adequação de situações preexistentes ou temporárias à nova Ordem Constitucional. Não pode essa figura ser utilizada para, vinte e quatro anos após a promulgação da Carta Magna, se burlar a regra constitucional, do seu corpo permanente, no sentido de que a iniciativa de projeto de lei de criação de novos Tribunais Regionais Federais é do Judiciário.
Trata-se de evidente manobra, para garantir a criação de novos tribunais pelo Poder Legislativo, sem a participação devida do Poder Judiciário no processo legislativo correspondente, em clara ofensa à cláusula pétrea, por invasão inadmissível do campo do Judiciário pelo Legislativo.
Nesse tocante, é apropriado dizer, de logo, que não se mostra suficiente ao atendimento da regra constitucional da iniciativa a manifestação, que tem sido invocada, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos autos do Processo nº 0200511-29.2009.2.00.0000, haja vista a não implementação, na forma estatuída constitucionalmente, do relacionamento entre esse órgão e o Legislativo, em sede de processo legislativo.
Nesse ponto, também deve ser realçado que se mostra bastante limitada a tese de que a intromissão não teria ocorrido, porque a organização da estrutura do Judiciário não seria função típica desse. É consabido que, em nosso sistema republicano, a competência para a criação de Tribunais integra o rol de garantias institucionais do Poder Judiciário, constitucionalmente ancoradas, como garantia de autonomia orgânico-administrativa, de independência para estruturar e fazer funcionar os seus órgãos, reverberando, dessarte, no exercício da função típica.
Aluda-se, a propósito, ao fato de que, em 11.12.1989, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se, para deferir medida cautelar (MC), nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 161-2/PR. Nesse feito, o Procurador-Geral da República, atendendo à solicitação do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, havia alegado a inconstitucionalidade do art. 102 da Carta Estadual paranaense, bem como dos arts. 44, caput e parágrafo único, e 60 do ADCT respectivo, que dispunham:
Art. 102. Haverá três Tribunais de Alçada, com sede em Curitiba, Londrina e Cascavel, com jurisdição territorial definida pela Lei de Organização e Divisão Judiciárias, sendo que o da Capital será composto por um mínimo de vinte e cinco Juízes e os de Londrina e Cascavel por um mínimo de dezessete Juízes.
Art. 44. Os Tribunais de Alçada de Londrina e Cascavel serão instalados, no prazo de cento e oitenta e trezentos e sessenta dias, respectivamente, da promulgação desta Constituição.
Parágrafo único. Aos Juízes do Tribunal de Alçada da Capital será facultada a remoção para os tribunais criados, quando de sua instalação.
Art. 60. No prazo de noventa dias da promulgação desta Constituição, o Tribunal de Justiça remeterá projeto de lei à Assembleia Legislativa, propondo a nova Lei de Organização e Divisão Judiciárias.
Analisando o pedido de medida acautelatória na ADI, seu Relator, Ministro Celso de Mello destacou (o negrito é nosso):
O pedido do ilustre Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - cujas razões foram adotadas pelo Procurador-Geral da República, como fundamento da ação - enfatiza que a '... postura do constituinte estadual, criando Tribunais de Alçada, sem proposta do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, (- aliás, criando dois Tribunais inferiores e contrariando expressa manifestação da mais alta Corte Estadual), invadiu esfera de competência alheia, posto que a Constituição Federal delegou tal iniciativa para proposta de criação ou extinção de tribunais inferiores única e exclusivamente aos Tribunais de Justiça dos Estados (cf. art. 96, inciso II, letra 'c'), sendo absolutamente incontestável que, para a organização da Justiça dos Estados, não poderia o legislador constitucional estadual, investido de poder derivado, secundário, condicionado e complementar, olvidar o texto do art. 125 da Lei Maior, que obrigava a manter obediência restrita aos princípios da Carta Magna'.
O confronto das normas impugnadas com o disposto nos artigos 2º, 96, II, c, e 125, § 1º, da Constituição Federal evidencia a relevância da questão jurídica posta nesta ação direta.
O relevo jurídico do tema evidencia-se, ainda, pela singular circunstância de que o poder constituinte do Estado-membro - denominado poder constituinte decorrente pela doutrina [...] - traduz função jurídica necessariamente sujeita aos condicionamentos normativos postos e impostos pela Carta Federal.
[...]
Esta Corte, em precedentes ações diretas que envolviam o tema do autogoverno da Magistratura e o poder de criar, alterar ou extinguir tribunais locais, sem o necessário concurso do Tribunal de Justiça, não só deferiu as medidas liminares requeridas (Rp nº 1.102-RS, relator Min. Soares Muñoz, in RTJ 104/496; ADIn nº 157-AM, relator Min. Paulo Brossard), como também proclamou a inconstitucionalidade de emenda constitucional promulgada pela Assembleia Legislativa local (RTJ 111/523).
Insurge-se o autor, ainda, contra a norma inscrita no art. 60 do ADCT, que impôs, em caráter vinculante, ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, o exercício do seu poder de iniciativa do processo de formação da lei de organização e divisão judiciárias, cuja instauração deverá ocorrer no prazo estabelecido pelo preceito ora impugnado.
O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, na representação que dirigiu ao Procurador-Geral da República, acentuou que essa regra '... fere os princípios constitucionais superiores da interdependência e harmonia entre os Poderes da República (art. 2º, da Constituição Federal), quando fixa o prazo de 90 (noventa) dias da promulgação da Carta Estadual, para o Tribunal de Justiça remeter projeto de lei à Assembleia Legislativa, propondo nova Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado'.
É também iniludível o relevo jurídico do tema suscitado por essa norma transitória, eis que ela converte em compulsório o exercício voluntário, nos termos da Constituição Federal, do poder de iniciativa da lei de organização judiciária deferido, pela Carta da República, com exclusividade, ao Tribunal de Justiça.
O texto constitucional federal limita-se a prescrever regra definidora do poder de instauração do processo legislativo pertinente à organização judiciária estadual, sem vincular ou subordinar o seu concreto exercício, pela mais alta Corte Judiciária do Estado-membro, a qualquer prazo.
A norma impugnada revela conteúdo inovador, pois adiciona elemento, de ordem temporal, aparentemente não autorizado pela Carta da República, a qual, prima facie, quis submeter à discrição do Tribunal de Justiça dos Estados-membros o exercício do poder de iniciativa da lei de organização judiciária.
A suspensão cautelar postulada atende, na perspectiva da orientação que vem sendo adotada pela Corte, a preservação da regularidade dos trabalhos judiciários, que restariam certamente afetados pela implantação de novos tribunais inferiores de 2ª instância.
Esse aspecto da questão foi bem realçado pelo ilustre Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que acentuou a necessidade da concessão do provimento cautelar [...]:
'..................................................................................................................................
A medida cautelar impõe-se face à natureza da matéria regulada pelos dispositivos da Carta Estadual inquinados de inconstitucionalidade, pois a sua permanência em vigor, até o final da Ação, poderá ocasionar danos irreparáveis ao Erário Púbico Estadual, ou criar situação de difícil reparação, especialmente porque, para instalar os Tribunais recém criados, o Executivo terá que dispor de verbas para a aquisição de sedes, deverá designar Procuradores de Justiça, contratar pessoal, adquirir material e tomar outras providências de caráter administrativo.
Do mesmo modo, o Poder Judiciário deverá dispor de recursos de material e pessoal, devendo, inclusive, alterar todo o quadro da Magistratura Estadual, para viabilizar dita instalação.
Além do mais, o Tribunal de Justiça, no curtíssimo prazo de 90 (noventa), dias, segundo o previsto pelo referido artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta Estadual, deverá encaminhar, à Assembleia Legislativa, projeto dispondo sobre a nova Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado. Este projeto deverá incluir na Estrutura do Judiciário os dois novos Tribunais de Alçada, podendo resultar, daí, situação de difícil e oneroso desfazimento, se declarada a inconstitucionalidade da norma que os criou.'
De outro lado, busca-se com a medida excepcional manter íntegro o auto-governo da Magistratura, erigido, como tem sido tradicional em nosso constitucionalismo republicano, à condição de garantia institucional do próprio Poder Judiciário.
[...]
A situação engendrada na EC 73/2013 se encaixa como uma luva no caso concreto decidido pelo STF (inclusive no que toca à imposição de um prazo - de uma exiguidade chocante, consideradas, sobretudo, as exigências de ordem financeira - para a implantação efetiva dos novos Tribunais), frisando-se que o Pretório Excelso não admitiu a invasão da esfera de competência do Poder Judiciário, pelo Legislativo. O Estado Legislador não pode criar, por sua iniciativa, Tribunais. Essa criação deve se dar, por norma constitucional expressa, a partir do Judiciário.
Em nome da completude, diga-se que, em 08.06.2005, o STF assim concluiu o julgamento da ADI 161:
DECISÃO: O Procurador-Geral da República, atendendo à solicitação do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, propõe ação direta de inconstitucionalidade do artigo 102 da nova Carta estadual, bem assim dos artigos 44, caput, e parágrafo único, e 60, estes do ADCT respectivo. As normas impugnadas têm o seguinte teor: [...] A medida cautelar foi deferida nestes termos (DJ. 23.2.90): 'PARANÁ - CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - ADCT - CRIAÇÃO DE NOVOS TRIBUNAIS DE ALÇADA - EXTENSÃO DO Poder Constituinte DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA LOCAL - SUSPENSÃO CAUTELAR. O relevo jurídico do tema suscitado evidencia-se pela singular circunstância de que o poder constituinte do Estado-membro traduz função jurídica necessariamente sujeita aos condicionamentos normativos postos pela Constituição Federal que se localiza a fonte jurídica do Poder Constituinte do Estado-membro (RAUL MACHADO HORTA). Esta Corte tem concedido a suspensão liminar de atos normativos impugnados em ações diretas - como a presente - onde se discute o tema do autogoverno da Magistratura e o exercício do poder de criar, alterar ou extinguir tribunais locais sem o necessário concurso do Tribunal de Justiça (Rp n. 1.102-RS; ADIn n. 157-AM).' As informações foram prestadas. Manifestaram-se o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República. Decido. Os Tribunais de Alçada foram extintos pela EC 45/04. No Estado do Paraná, a Resolução 2/05 - em anexo - obtida via correio eletrônico com a Presidência do TJPR - deu efetividade a alteração constitucional superveniente, que resulta na perda do objeto desta ação. Julgo prejudicada a ação direta (art. 21, IX, RISTF); prejudicada, também, a medida cautelar deferida. Brasília, 8 de junho de 2005.
(ADI 161, Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgado em 08/06/2005, publicado em DJ 15/06/2005)
Mais: na EC 73/2013, lateja outra inconstitucionalidade gritante.
A fixação do prazo de 6 meses para a instalação desses 4 novos tribunais olvida a vedação constitucional à criação de despesa sem receita, de desembolso sem prévia fonte de custeio, com ferimento ao art. 169 da CF/88 (com a redação da EC nº 19/98), que estabelece os condicionantes à preservação do equilíbrio orçamentário, verbis:
Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
§ 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas:
I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes;
II - se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista.
§ 2º Decorrido o prazo estabelecido na lei complementar referida neste artigo para a adaptação aos parâmetros ali previstos, serão imediatamente suspensos todos os repasses de verbas federais ou estaduais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que não observarem os referidos limites.
§ 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:
I - redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;
II - exoneração dos servidores não estáveis.
§ 4º Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal.
§ 5º O servidor que perder o cargo na forma do parágrafo anterior fará jus a indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço.
§ 6º O cargo objeto da redução prevista nos parágrafos anteriores será considerado extinto, vedada a criação de cargo, emprego ou função com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos.
§ 7º Lei federal disporá sobre as normas gerais a serem obedecidas na efetivação do disposto no § 4º.
A EC 73/2013 passa ao largo da complexidade das estruturas que, "simplesmente", manda criar e implantar - sequer se previu uma implantação paulatina. A simplicidade aparentada na redação da EC não se reflete na realidade dos fatos. Realmente, os procedimentos nela embutidos são complicados e dispendiosos. Ela imporá, caso prevaleça, dentre outras providências, a construção/aquisição de sedes com o guarnecimento de mobília, equipamentos (especialmente os de informática) e material, a compra de veículos, a criação em larga escala de cargos públicos, para as áreas fim e meio, e a realização de concursos públicos para provimento, medidas que já enunciam a possibilidade de gastos expressivos, de muitos milhões de reais. E isso somente para sua implantação, do que se deduz, sem grande esforço, que o impacto financeiro da criação e implantação em 6 meses dos novos TRF não se coaduna com o art. 169 da CF/88 e resultará em desrespeito aos limites de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ao se acrescer a tais despesas de implantação as decorrentes do funcionamento de 4 novos tribunais, como pagamento de pessoal, encargos sociais, benefícios assistenciais, contratos de serviços terceirizáveis, custos de manutenção, dentre outros, é factível concluir pela repercussão econômica na casa do bilhão de reais. Na aferição do impacto econômico da EC devem, portanto, ser consideradas não somente as despesas de implantação (que são muitas e vultosas), mas, especialmente, a absurda elevação do custo fixo de manutenção da Justiça Federal de Segundo Grau, com o novo dimensionamento.
A par de tudo que se disse, cabe uma questão de particular relevo: será que esses gastos adicionais devem ser uma prioridade, diante de tantas carências de que se ressente nosso país, nas áreas de educação, saúde e habitação? Será que, no atual momento, os recursos em discussão não deveriam ser dirigidos a outros interesses públicos, mais urgentes, deixando para depois medidas drásticas e vultosas, como a criação de tribunais? Não se está querendo, com isso, dizer que o Judiciário não deva ser aprimorado, nem que o serviço jurisdicional não seja essencial, mas que, hodiernamente, é possível, sobretudo pela adoção de alternativas menos custosas, adiar a criação de novos tribunais, em favor do direcionamento dos recursos para outras essencialidades.
Ao lado dessas dificuldades (que evidenciam vícios gravíssimos), não se pode deixar de apontar para a diluição que sofrerá a jurisprudência brasileira.
Pode-se dizer que será liquefeita, na mesma proporção da fragmentação dos órgãos julgadores, em desfavor da coerência sistêmica que se tem enaltecido nos últimos anos, como forma mesmo de se reduzir o tempo de tramitação dos processos (o efeito da EC, então, será reverso). Isso porque a criação de novos Tribunais veiculará a possibilidade concreta de formação de novos entendimentos jurisprudenciais (já é difícil, hoje, chegar a um certa harmonia decisória), pela pluralização dos sujeitos enunciativos. A consequência direta corresponderá, ao que tudo indica, à multiplicação de precedentes jurisprudenciais a exigir uma uniformização, exercitável nas Cortes Superiores (especialmente no STJ), que, portanto, serão atingidas, no afunilamento, ao menos até que as mesmas cabeças que conceberam o desdobramento dos TRF concebam a criação de novos STJ.
Isso tudo, sem falar na competição agressiva que se estabelecerá no processo de indicação dos componentes dos novos tribunais, em desfavor da união institucional da Justiça Federal.
Qualquer decisão sobre a criação de novos TRF não poderia ser tomada sem ponderação sob a ótica dos princípios da eficiência e da economicidade (de base constitucional, explícita e implicitamente insertos no caput do art. 37 da CF/88) ou, em outros termos, é imprescindível ponderar se essa seria, de fato, a melhor (mas proveitosa e com menores custos) solução para os problemas que foram apresentados como justificantes da aludida implantação de novos órgãos de segundo grau. Um análise desse tipo comporta os seguintes questionamentos:
a) as necessidades atuais (veja-se que a EC telada decorreu de PEC que tem mais de 10 anos de discussão, embora outras similares tenham sido apresentadas mais recentemente) justificam a criação desses novos órgãos jurisdicionais, mormente quando considerados os últimos anos de aperfeiçoamento da Justiça Federal brasileira?
Ponderados tais fatos, evidencia-se a desnecessidade de criação de 4 novos TRF (o máximo que se poderia admitir, nessa linha, seria a criação de apenas um TRF, abrangendo Estados em situação mais delicada, no que tange a níveis de litigiosidade, como Bahia e Minas Gerais, desafogando-se o TRF1 que, de todos os TRF, se mostra o mais congestionado).
b) as despesas a serem realizadas com os novos Tribunais (não computado o que puder ser aproveitado pelo desdobramento dos Tribunais atualmente existentes, mas considerado o custo fixo criado para o pleno funcionamento das novas estruturas) compensam, considerados os atuais gastos envolvidos com as atividades dos cinco TRF existentes, acrescidos de eventuais gastos menos portentosos que possam ser realizados para a melhoria de sua eficiência? Há soluções mais econômicas, em termos estruturais, que possam produzir os mesmos resultados benfazejos pretendidos com a criação dos novos TRF, isto é, os fins colimados podem ser atingidos a custos menores?
Embora a criação de novos TRF tenha sido tratada como a única opção para o fim dos gargalos em segundo grau e, por consequência, para a agilização dos processos em segunda instância, tal premissa não é verdadeira. A criação dos novos tribunais não se lastreou em qualquer estudo comparativo acerca da eficiência (a custos menores) de outras alternativas. As opções que se passa a enumerar são as que, a toda evidência, geram custos infinitamente menores que os envolvidos na implantação de novos TRF, mas tendo condições de gerar maior dinamismo e redução de estoque processual: a) ampliação dos Tribunais já existentes (ou, ao menos, dos mais sobrecarregados, como o TRF1), com aumento do número de juízes neles em atuação (ampliação dos Gabinetes) e com a criação de turmas especializadas, para o que se aproveitaria a estrutura administrativa, adaptando-se a das secretarias judiciárias para comportar esse alargamento. Nesse ponto, diga-se que, há muito, se vem buscando esse alargamento no quantitativo de Juízes dos TRF (cf. PA nº 2004161265 CJF). Os custos seriam menores, porquanto a estrutura administrativa já está instalada; b) redistribuição de Estados para regiões menos congestionadas com alargamento do seu quadro de Julgadores. Considerando-se que os Estados com situação mais crítica, em relação à geração de processos ao segundo grau, são Bahia e Minas Gerais, do TRF1, e São Paulo, do TRF3, sugere-se a seguinte opção: reposiciona-se a Bahia no TRF5, que vem tendo melhora expressiva na administração do seu acervo, com a ampliação do número de juízes no TRF5, com custo bem reduzido, já que a atual estrutura física comporta, sem maiores gastos esse alargamento; e agrega-se Minas Gerais ao TRF2, também com ampliação do seu quadro de Juízes, ao passo que, no caso do TRF3, a solução mais plausível seria um aumento no número de Magistrados daquela Corte. Calcula-se que com apenas um décimo dos recursos envolvidos na criação dos novos 4 TRF se resolveria o problema do congestionamento na Justiça Federal. No máximo, poder-se-ia admitir a criação apenas de mais um TRF (o de nº 6), abarcando Bahia e Minas Gerais, e assim já seria uma redução do gargalo que tem sido apresentado como o grande incômodo norteador dos escopos de criação de novos Tribunais. Quanto aos demais Estados do Brasil e sua posição no âmbito da Justiça Federal, as estatísticas mostram que se pode ter posturas mais otimistas de reação ante o acervo em tramitação.