O sentimento que o homem tem por seus pares, após sua morte, é observado nos rituais fúnebres, no luto, na despedida derradeira, naquele último momento frente a um ente estimado, assim como no cultivo de sua memória, integridade, imagem e história. Esse valor de respeito, que transcende a história da pessoa enquanto ser vivo, conserva uma valoração com sua morte. E estes valores estão aquém do cadáver, considerando a comiseração daqueles que ficam em vida. Assim, impôs o legislador um dever de resguardar o morto, ou, em outras palavras, criminalizar as condutas contrárias à preservação do de cujos e do sentimento daqueles que lhe foram próximos.
Assim, o Título V do Código Penal traz em seu conteúdo os crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. Neste último, o Código Penal brasileiro traz em seu artigo 212 a seguinte redação: “vilipendiar cadáver ou suas cinzas”, e comina pena de detenção de um a três anos, além de multa. A proteção deste bem jurídico era desconhecida das ordenações do Reino e o Código Criminal de 1830, que não disciplinaram o crime de vilipêndio ao cadáver, sendo que a criminalização das condutas de destruir, subtrair ou ocultar cadáver somente veio a ocorrer com o surgimento do Código Penal de 1940.
Conforme se desprende, o bem jurídico tutelado é o sentimento de respeito aos mortos, “tutela-se, em outros termos, o sentimento dos parentes e amigos do morto e não o próprio de cujos, que não é titular de direito"[1].
Nelson Hungria destacava que esta é a derradeira modalidade de crime contra o respeito aos mortos.[2] Ainda, para alguns doutrinadores, é necessário que se verifique, nos casos pontuais e principalmente de cadáveres em estado avançado de decomposição (esqueleto), se ainda suscitam o sentimento de respeito dos vivos para com esses, pois deve ser atentado que “o fim colimado por este dispositivo não é proteger o cadáver, o esqueleto em si[3]”.
Neste contexto, o vilipendio poderá ocorrer somente após o óbito, ainda que este seja relacionado com uma conduta antecedente do mesmo agente (por exemplo, homicídio); ou tenha sobrevindo naturalmente a causa da morte; ou, ainda, provocada por um terceiro. O que importa é a ação que ocorre após a morte, isto, pois, o vilipendio é fruto de uma ação nova e de independente motivação do agente (animus) frente aquele que já não tem mais vida. Por isso, em casos como o homicídio, se após a morte da vítima houver um ato de ultraje contra o cadáver, haverá crime de vilipêndio, não se tratando somente o ante factum como crime punível.
Logo, se para causar a morte o agente necessita desfigurar o cadáver, ou buscando humilhar aquele que ainda tem vida o envolve em dejetos fétidos, mesmo que sobrevenha a morte da vítima e esta permaneça em estado lastimoso, não há que se falar do crime em comento, pois o ato vilipendioso é anterior, e não sobre um cadáver.
Merece ser evidenciada uma confusão corriqueira em nossos tribunais com o crime de destruir cadáver, previsto no artigo 211, o qual tem previsão mais ofensiva por prever reclusão, enquanto o vilipêndio prevê a detenção. Por este a ideia motriz não é ultrajar, mas normalmente por fim a evidencias, evitar qualquer elo que possa comunicar o agente com o crime cometido, tanto assim que se encontra no mesmo artigo que trata dos crimes de ocultação e subtração de cadáver.
De volta ao vilipêndio. Nestes crimes o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, não requerendo nenhuma condição particular, tratando-se de crime comum. Assim, inclusive os parentes do morto, o ministro religioso e o coveiro[4] poderão ser sujeitos ativos deste crime. No entanto, maior debate existe sobre o sujeito passivo, pois o entendimento de alguns autores é que seria a coletividade[5]. Advogamos em conjunto a tese de que o sujeito passivo deste crime “deve estar intimamente vinculado ao bem jurídico tutelado”, sendo assim, só podem ser os parentes e amigos, pois nenhuma coletividade, “por mais harmônica, integrada e coesa que seja, sentirá mais a perda de um de seus membros que os próprios familiares, não sendo, portanto, justo nem sensato que aquela e não estes sejam sujeito passivo do crime."[6] Porém, merece ressalva a contextualização de Hungria, para o qual:
O crime não é excluído ainda quando tenha sido autorizado pelo de cujos, em disposição de última vontade, pois está em jogo interesse de ordem pública, qual a preservação do sentimento de respeito aos mortos.[7]
A ação tipificada pela lei é a do vilipêndio, ou seja, aviltar, ultrajar, ofender, menoscabar, desprezar, enfim, depreciar, neste caso, o cadáver[8] e suas cinzas[9], assim como incluindo as partes do corpo e o esqueleto.[10] E pode ser praticada de diversas formas, como palavras, atos e escritos. No entanto, “trata-se de ato que se pratica junto ao cadáver ou a suas cinzas, e não mediante declarações em público, publicações em jornais, etc."[11] O mestre Hungria trazia como exemplos tirar as vestes do cadáver, escarrar sobre o mesmo, amputar algum membro, derramar líquidos imundos sobre as cinzas, entre outros.[12]
Objeto material é o cadáver, que é o corpo inanimado, inclusive do natimorto [...] o vilipêndio ao cadáver não destaca que as partes deste também serão protegidas pela norma penal. Tutela-se o cadáver e suas cinzas, isto é, os menores fragmentos possíveis de um cadáver; assim sendo, quer-nos parecer que a omissão quis significar a desnecessidade de sua repetição, além de que cinzas constituem, teoricamente, as menores porções em que se pode fragmentar alguma coisa material, como é o caso de um cadáver.[13]
O elemento subjetivo geral é o dolo, representado pela vontade consciente de menosprezar cadáver ou suas cinzas. Por isso, o elemento subjetivo especial do tipo é constituído pelo fim especial de aviltar, vilipendiar, sendo necessário para configuração do crime a presença do elemento moral, do fim específico, consistente no desejo consciente de desprezar o corpo sem vida da vítima, com a intenção clara de ultrajá-lo[14]. Destaque para Greco, o qual defende não se fazer necessário o elemento subjetivo específico[15]. Ora, o certo é que “nem mesmo o cadáver que serve a fim de estudo no anfiteatro de anatomia pode ser impunemente vilipendiado."[16]
O crime será consumado no momento do ato ultrajante, quando material, ou simplesmente com o vilipêndio verbal junto ou sobre o cadáver ou suas cinzas. Em tese, a depender da forma de execução, é possível a tentativa, salvo quando é praticado oralmente.[17] O ato daquele que amputa uma parte do corpo do de cujos com a finalidade de lhe causar humilhação ou deformidade, não caracteriza o crime de destruição, mas sim de vilipêndio em nosso entender, pois o animus do agente pode ser tido como uma assinatura, um marca, um ato de desvaler aquele ente frente aos que lhe queriam bem.
A classificação doutrinária caracteriza-o como:
Crime comum com relação ao sujeito ativo, bem como ao sujeito passivo, pois se cuida de crime vago, no qual não somente a família do morto figurará como sujeito passivo, mas também a coletividade como um todo; doloso, material, comissivo (podendo, entretanto, ser praticado via omissão imprópria, na hipótese de o agente gozar do status de garantidor); de forma livre; instantâneo; material; monossubjetivo; plurissubsistente; transeunte ou não transeunte (dependendo da hipótese concreta).[18]
A título de ilustração, um julgado do Rio Grande do Sul:
VIOLAÇÃO DE SEPULTURA. VILIPÊNDIO DE CADÁVER. PROVA CONSISTENTE. TRANSE MEDIÚNICO. 1. Os acusados, com intuito de realizar "um trabalho", ingressaram, por volta da meia-noite, no cemitério de Passo Fundo. Uma das co-rés, com a mãe doente, havia buscado auxílio numa "casa de umbanda". Esta, foi apanhada em sua residência, em automóvel dos co-réus, e conduzida ao cemitério. Lá chegando, enquanto a beneficiada pelo trabalho segurava uma lanterna e era amparada pela co-ré, os dois acusados removeram as lajes de uma sepultura, onde havia sido, há poucos dias, enterrado um homem de 87 anos de idade. Após, abriram o caixão, fizeram uma incisão no abdome do cadáver, sacrificaram uma cachorro e uma galinha sobre o corpo do enterrado, nele introduzindo vários papéis. Em seguida, despejaram álcool sobre o cadáver, atearam fogo e fecharam a sepultura. Tudo foi acompanhado pelo acendimento de velas, ao lado da sepultura e iluminação de lanterna, à meia-noite. 2. O alegado "transe mediúnico", eventualmente existente e ainda que presente, em face da dimensão existencial em que se labora nos processos, não é excludente de tipicidade, ilicitude e nem de culpabilidade. 3. Prova consistente nos autos, inclusive pericial e fotográfica, onde se podem ver, querendo, o ataúde avermelhado, a galinha vermelha e preta, os restos das velas queimadas, as flores que adornam o túmulo, a face do morto, enegrecida pelo fogo, bem como os restos, aos pedaços, dilacerados, do cadáver. No interior do caixão, também se pode ver um cachorro e uma galinha, ambos mortos e queimados, junto com o cadáver. Ainda, a completar a cena dantesca e tétrica, foram encontradas uma garrafa de vodka e outra de plástico, parcialmente derretida. Condenações mantidas. APELOS DEFENSIVOS DESPROVIDOS. (Apelação Crime Nº 70014529440, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 22/06/2006).
Importa, por último, destacar duas observações compiladas por Prado[19]. A primeira referente ao princípio da consumação, quando não há crime de violação de sepultura quando o dolo (intuito) é de ultrajar o cadáver, sendo aquela ação necessária para alcançar este fim último. E a segunda observação é a possibilidade de concurso formal, quando as palavras vilipendiosas possuem conteúdo calunioso contra o morto (art. 212 combinado com art. 138, §2º, ambos do C.P.). A ação penal é pública incondicionada. Sendo crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1998, art. 89).
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2012. 5 v.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. v.3. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. 4 v.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 197 a 249, v. 8. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte especial. v. 2. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. 3 v.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial, art. 121 a 234-B do CP. v. 2. São Paulo: Atlas, 2012. 3 v.
PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência; conexões lógicas com vários ramos do direito. 8ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista Tribunais,2013.
Notas
[1] BITENCOURT, 2012, p. 470.
[2] HUNGRIA, 1981, p. 74.
[3] PRADO, 2013, p. 672.
[4] PRADO, 2013, p. 672.
[5] Neste sentido Mirabete “Sujeito passivo da infração é a coletividade destituída de personalidade jurídica e formada pelas pessoas da família do falecido” (2012, p. 383), assim como Masson: “o sujeito passivo principal e imediato é a coletividade (crime vago), pois a moralidade média reclama o respeito aos mortos.” (2012, p. 795).
[6] BITENCOURT, 2012, p. 471.
[7] HUNGRIA, 1981, p. 75.
[8] Para o conceito de cadáver a doutrina tem entendido como o corpo “que ainda conserva a aparência humana, e não os restos em completa decomposição.” (MIRABETE, 2012, p. 381).
[9] “São os resíduos da cremação ou combustão (autorizadas, casuais ou criminosas) a que foi ele submetido, ou mesmo frutos do decurso do tempo.” (MASSON, 2012, p. 794).
[10] MIRABETE, 2012, p. 383.
[11] BITENCOURT, 2012, p. 471.
[12] HUNGRIA, 1981, p. 74.
[13] BITENCOURT, 2012, p. 471
[14] BITENCOURT, 2012, p. 471.
[15] GRECO, 2012, p. 450.
[16] HUNGRIA, 1981, p. 75.
[17] BITENCOURT, 2012, p. 472.
[18] GRECO, 2012, p. 450.
[19] PRADO, 2013, p. 672/673.