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Da supremacia do interesse público sobre o particular à proporcionalidade de interesses

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IV. POSTULADOS NORMATIVOS: O DEVER DE PROPORCIONALIDADE

Como já referido, na moderna classificação de espécies normativas adiciona-se um terceiro tipo que se diferencia das espécies analisadas anteriormente, qual seja, o postulado normativo. Essa espécie normativa estabelece o procedimento de aplicação de outras normas, ensejaria num comando de estruturação do discurso aplicativo das demais espécies normativas.

Conseqüentemente, os postulados diferenciam-se das demais normas jurídicas sejam elas regras, sejam elas princípios. “Como os postulados situam-se em um nível diverso do das normas objeto de aplicação, defini-los como princípios ou como regras contribuiria mais para confundir do que para esclarecer” [22].

Assim, verifica-se que os postulados normativos se diferenciam das regras jurídicas. Como já mencionado as regras jurídicas importam a consagração de imperativos deônticos aplicados integralmente ou não de acordo com a incidência que prevejam, por outro lado, os postulados não estruturam comportamentos a serem realizados, eles importam na “ordenação e a relação entre vários elementos (meio e fim, critério e medida, regra geral e caso individual), e não um mero exame de correspondência entre a hipótese normativa e os elementos” [23].

No mesmo sentido, os postulados diferenciam-se dos princípios, pois esses acarretam em prescrições indiretas do agir para a consecução de promover de um fim ideal, todavia, os postulados consagram a estruturação aplicativa dos meios de promoção dos princípios.

Os postulados, enfim, são “condições de possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico. Eles, também por isso, não oferecem argumentos substanciais para fundamentar uma decisão” [24]. Eles elucidam como deve ser feito a aplicação das normas.

Diante dessas observações, é notório que o chamado ‘princípio da proporcionalidade’ é estruturalmente denominado, sob a classificação tricotômica de normas jurídicas, como postulado normativo, pois acarreta numa diretriz estrutural de para aplicação de interesses normativos colidentes submetidos a uma relação de causalidade.

O princípio da proporcionalidade não cria diretamente situações jurídicas concretas, contudo, funcionam como uma espécie de ‘cânone’ operacional de “aplicação de conteúdos concentrados noutros princípios (materiais)” [25]. Há sedimento o entendimento que a aplicação do postulado da proporcionalidade tem de proceder a uma tripla e sucessiva análise fundamental que consiste nos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação diz respeito ao critério de verificação da medida a ser tomada e o fim buscado, em outras palavras, se o meio empregado promove o fim objetivado. Nesse primeiro plano, averigua-se se “as medidas interventivas adotadas aptas a atingir os objetivos pretendidos” [26].

A necessidade corresponde à constatação da inexistência de outros meios disponíveis e adequados para a consecução do fim almejado, isto é, a utilização de uma medida se faz precisa pela ausência de outro meio menos restritivo.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito relaciona-se com a avaliação das benesses emergidas pela promoção do objetivo com as desvantagens das restrições impostas, assim, cominando legitimidade à medida executada. Novamente com Gilmar Mendes e seus pares:

“O juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há que resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislado” [27].

Destarte, o postulado da proporcionalidade constitui um parâmetro normativo para a resolução de interesses contrapostos, consubstancia-se num critério racional para otimização de proteção de interesses jurídicos divergentes, evitando que haja exagerado sacrifício de um deles em face do outro.

No que tange ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, derradeira é a lição de Daniel Sarmento:

“Só que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, ao afirmar a superioridade a priori de um dos bens em jogo sobre o outro, elimina qualquer possibilidade de sopesamento, premiando de antemão, com a vitória completa e cabal, o interesse público envolvido, independentemente nas nuances do caso concreto, e impondo o conseqüente sacrifício do interesse privado contraposto” [28].

Assim, não se deve ter em mente que, no eventual conflito de interesses, haja uma sobreposição do interesse público em face do particular, pois a noção, que se extrai do Estado Democrático de Direito e o postulado da proporcionalidade, é que existe uma imbricação entre o público e privado e a resolução da divergência que surja entre interesses de naturezas respectivas não é encerrado pelo sistema como se fosse um dogma, que se deve respeito incondicional.

Além disso, objeta-se o entendimento que se debruça sobre a idéia de supremacia do interesse público pelo fato de não ensejar a idéia de otimização de tutela dos interesses jurídicos em confronto, buscando uma justa e adequada proporção de aplicação frente à concretude fática do caso.

Visualiza-se quem propõe a estipulação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular sobre uma perspectiva ‘fraca’. Nessa perspectiva, não há uma absoluta prevalência do interesse público, mas de uma regra prima-facie de prevalência e o ônus argumentativo é maior para quem defende o interesse particular, pois haveria para quem defende razões muito fortes para sobrepor o interesse público na ponderação realizada. Deve-se rechaçar essa concepção, novamente com Daniel Sarmento:

“Portanto, parece-nos de meridiana clareza que concepções que atribuem a merecida preeminência a estes direitos – como as subjacentes ao princípio da supremacia do interesse público, seja na sua versão ‘forte’, seja na sua alternativa mais ‘débil’ -, devem ser descartadas, não só porque moralmente perigosas, como também pela franca inadequação à ordem constitucional brasileira” [29].

Desse modo, a observância do princípio da supremacia do interesse se faz necessário, pois, atua como vetor orientador da atividade administrativa. Contudo, deve-se analisar a referida espécie normativa não como um valor normatizado de natureza absoluta, como um dogma ou axioma[30], mas como uma norma que enseja balizamentos como qualquer outra, e, especificamente, não deve encerrar a discussão de conflitos de interesses aprioristicamente, todavia, a facticidade do caso e o procedimento estabelecido pelo postulado da proporcionalidade indicarão a medida adotada para a colisão entre interesses públicos e interesses privados.


V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, pode-se verificar que a distinção das searas pública e privada, ao longo do tempo, sofreu diversas modificações, em que incidia uma preponderância de um âmbito para a avaliação do outro.

A noção que se tem do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular reside numa breve idéia axiomática de resolução de conflitos aprioristicamente, ensejando uma absoluta supressão dos interesses coletivos. Essa postura é um tanto perigosa, porque se coaduna com a possibilidade de razões de Estado solaparem direitos, além de desrespeito aos direitos fundamentais.

A tricotômica distinção das normas jurídicas acende para a espécie normativa denominada postulado que, diferentemente, das regras e princípios, situam-se como medidas operacionais para balizar as demais normas jurídicas.

O dever de proporcionalidade emerge como parâmetro normativo que, conforme os critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, realiza a otimização de interesses jurídicos contrapostos evitando restrições exorbitantes aos direitos sacrificados.

A releitura do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular à luz do postulado da proporcionalidade propõe um uso do citado princípio em consonância aos valores consagrados pela ordem jurídica pátria, além de se coadunar a uma racional critério de solução de conflitos normativos que acena para um vetor de decisões anti-discricionárias e em favor de uma justa e adequada proporção de aplicação diante da realidade fática.


BIBLIOGRAFIA

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SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da teoria e da Filosofia Constitucional (In Interesses Públicos vs. Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Lumen Juris.2007.

SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação dos valores. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/12518/coerencia-e-adequacao-uma-critica-a-metodologia-da-ponderacao-de-valores. Acesso em: 20 de Setembro de 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Forense, São Paulo, 2004.

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Notas

[1] Vale, a título de exemplo, expor o seguinte trecho do livro de direito administrativo de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo: “A noção central desse princípio é: havendo conflito entre o interesse público e os interesses particulares, aquele deve prevalecer”. ALEXANDRINO, Marcelo & PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. Forense, 2010, p.11.

[2] Vale pontuar que alguns autores se referem aos postulados como uma terceira espécie de normas, por outro lado, outros autores o denominam como subespécie de princípios, chamando-os de princípios sobre-direito. De qualquer forma, neste trabalha se abordará a tricotômica definição das normas jurídicas: regras, princípios e postulados.

[3] SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da teoria e da Filosofia Constitucional (In Interesses Públicos vs. Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Lumen Júris, 2007, p.30.

[4] Op. cit., p.37.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Forense, 2004, p.164.

[6] ÁVILA, Humberto. Repensado o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n°11, setembro/outubro/novembro, 2007. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp. Acesso em 18 de Março de 2011, p.13.

[7] Ob.cit. p.50.

[8] BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneao. Os conceitos fundamentais e a Construção do novo modelo. Ed. Saraiva, 2009, p.251.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocência Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília Jurídica, 2000, p.244.

[10] Ob.cit. p.115.

[11] A título metodológico, far-se-á uma abordagem das espécies de normas sob a perspectiva dicotômica (regras e princípios), noutro momento abordaremos a outra espécie normativa (postulados).

[12] Nesse ponto, cabe a leitura de ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo, 2005, p.26-31.

[13] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo, 2005, p.27.

[14] Idem, p.27-28.

[15] Sinteticamente, a regra de reconhecimento de Hart funciona como um cânone de testabilidade de regras no âmbito interno e externo.

[16] Vale anotar que Dworkin distingue princípios em argumentos de princípios e argumentos de política. Sinteticamente, argumentos de política se ligam diretamente aos objetivos buscados pela comunidade, ou seja, objetivos gerais que atendem ao anseio coletivo. Por outro lado, argumentos de princípios estão ligados à noção de direitos conferidos aos destinatários das normas jurídicas.

[17] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Martins Fontes, 2002, p.39.

[18] Ob.cit.p.42-43.

[19]GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. Malheiros Meditores, 2003, p.173.

[20] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de.  O Conceito de Princípio entre a Otimização e a Resposta Correta: Aproximações sobre o Problema da Fundamentação e da Discricionariedade das Decisões Judiciais a partir da Fenomenologia Hermenêutica. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp042844.pdf. Acesso em 02 de Julho de 2011, p.159.

[21] Nesse sentido, veementes são as habermasianas críticas de Marcus Seixas Souza à idéia de ponderação de Alexy quando aquele estabelece a distinção entre sopesamento e ponderação: “Reside importante diferença entre aplicação do princípio adequado e a aplicação ponderada de princípios. A primeira respeita o mandamento da Separação de Poderes, se limitando a interpretar os fatos e o Direito válido para encontrar uma norma adequada, entre as possíveis e aplicáveis prima-facie; a segunda, proposta por Alexy, autoriza o magistrado a mitigar princípios que concorrem (prima-facie) para o caso concreto, isto é, corrigir o legislador, diminuindo ou aumentando a intensidade de efetivação de determinado princípio, como se este fosse um valor e pudesse ser manipulado desta forma. O pensamento de Alexy ultrapassa a um bem-aventurado ativismo judicial; parece sequer respeitar as limitações constitucionais fundamentais à mera existência da Democracia, e termina por esvaziar a juridicidade de sua metodologia, já que eticiza o discurso de aplicação de normas”. SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação dos valores. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/12518/coerencia-e-adequacao-uma-critica-a-metodologia-da-ponderacao-de-valores. Acesso em: 20 de Setembro de 2010, p.2.

[22] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo, 2005, p.89.

[23] Idem, p.90.

[24] ÁVILA, Humberto. Repensado o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n°11, setembro/outubro/novembro, 2007. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp. Acesso em 18 de Março de 2011, p.5.

[25] GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos do Direito. Direitos não nascem em árvores. Editora Lumen Juris, 2005, p.42.

[26] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocência Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília Jurídica, 2000, p.244

[27] Ob.cit.p.251.

[28] Ob.cit.p.100.

[29] Ob.cit.p.103.

[30] “Axioma (usado, originariamente, como sinônimo de postulado) denota uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-lo”. ÁVILA, Humberto. Repensado o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n°11, setembro/outubro/novembro, 2007. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp. Acesso em 18 de Março de 2011, p.4.

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Sobre os autores
Iolanda Pinto de Faria

Advogada. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito e em Direito Administrativo pela Faculdade Integrada da Grande Fortaleza.

Diego Pablo Candeias de Albuquerque

Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIA, Iolanda Pinto ; ALBUQUERQUE, Diego Pablo Candeias. Da supremacia do interesse público sobre o particular à proporcionalidade de interesses . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3668, 17 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24952. Acesso em: 18 abr. 2024.

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