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As transmutações do controle difuso no Brasil: a abstrativização e os impactos no ordenamento jurídico

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24/07/2013 às 09:01
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4. A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO

É imperioso frisar, que o sistema de controle de constitucionalidade vem perpassando por consideradas transformações, mormente, com o advento da EC nº 45/2004, denominada de Reforma do Judiciário.

Diante desse quadro, o fenômeno da abstrativização do controle difuso tem apresentado resquícios na legislação brasileira, e, sobretudo na jurisprudência do STF, resvalando na doutrina, que vem travando uma relevante discussão à luz do sistema de controle difuso e concentrado de constitucionalidade.

A tendência da abstrativização do controle difuso tem como principal mentor o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, notável nos processos que atua como relator estampando em seus votos a tese de abstrativização.

A título de ilustração, destaca-se o precedente histórico do Recurso Extraordinário nº 197.917-SP, julgado pelo Tribunal Pleno e relatado pelo Min. Maurício Corrêa, que declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal de Mira Estrala, pautada na interpretação de critério aritmético do art. 29, V, da Constituição Federal, no entanto, primando pela segurança jurídica, excepcionalmente, os efeitos fossem produzidos apenas nas legislaturas futuras.[24] Nessa decisão, demonstra-se cristalina a tese da abstrativização em sede de controle difuso, na declaração de inconstitucionalidade da lei prolatada em recurso extraordinário, conferindo força vinculante e efeito erga omnes.

Posteriormente, a Excelsa Corte adota novamente a tese de abstrativização no julgamento do HC nº 82.959/2006, o Min. Gilmar Mendes, em voto-vista, não obstante tenha declarou a inconstitucionalidade do § 1, do art. 2º, da Lei 8.072/1990, concedeu eficácia ex nunc, salientou, ainda, a incidência do disposto no art. 27 da Lei 9.868/1999, também no controle incidental.[25] O referido habeas corpus relatado pelo Min. Marco Aurélio, o Pleno declarou "incidenter tantum", a inconstitucionalidade da vedação de progressão de pena nos crimes hediondos, nos termos:

O Tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão.[26]

Constata-se, contudo, que a eficácia ex nunc e efeito erga omnes típicos do controle concentrado foi transplantada para o controle difuso de constitucionalidade, em tese, não vincularia terceiros e teria efeito retroativo.

Em sede doutrinária, sempre se defendeu, segundo Alfredo Buzaid e Ada Pellegrini Grinover apud Pedro Lenza,[27] que “se a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidentalmente, pela acolhida da questão prejudicial que é fundamento do pedido ou da defesa, a decisão não tem autoridade de coisa julgada, nem se projeta, mesmo inter partes – fora do processo no qual foi proferida”.

Não obstante, percebe-se que parte da doutrina e o STF vêm se inclinando para uma nova interpretação concernente aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso, que dentre fundamentos argumentados revela-se a mutação constitucional, consoante Gilmar Ferreira Mendes pontua:

É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.[28]  

Carlos Alberto Lúcio Bittencourt[29] aduz que a finalidade da decisão do Senado era, desde sempre, “apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos”, ademais, Luís Roberto Barroso[30] afirma que “com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com o contorno dado a ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo.”

Registre-se, o julgamento ainda pendente, a Reclamação 4.335/AC, de autoria da Defensoria Pública da União, alegando o descumprimento à autoridade da decisão da Suprema Corte no HC 82959/SP, pelo juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC, que indeferiu pedido de progressão de regime a condenados pela prática de crimes hediondos, sobre argumento de que a eficácia erga omnes da decisão proferida no Habeas Corpus dependeria da expedição da resolução do Senado suspendendo a execução da lei (CF, art. 52, X).[31]

Destaca-se, o voto do relator, Min. Gilmar Mendes ao esposar que a:

(...) multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista o Min. Eros Grau.[32]

Nessa linha de intelecção, o Min. Eros Grau, em voto-vista, também julgou procedente a reclamação, seguindo o voto do relator, pautado em uma verdadeira mutação constitucional, no sentido de que, pelo art. 52, X, da CF, ao Senado Federal, confere competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional proferida pelo STF, haja vista que essa decisão contém força normativa bastante para suspender a execução da lei. [33]

Em voto divergente, o Min. Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação, no entanto, concedeu habeas corpus de ofício, proferiu que:

na via do controle incidente, asseverou que não se poderia, a partir daí, reduzir-se o papel do Senado, que quase todos os textos constitucionais subsequentes a 1934 mantiveram. Ressaltou ser evidente que a convivência paralela, desde a EC 16/65, dos dois sistemas de controle tem levado a uma prevalência do controle concentrado, e que o mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da lei tem se tornado cada vez mais obsoleto, mas afirmou que combatê-lo, por meio do que chamou de “projeto de decreto de mutação constitucional”, já não seria mais necessário. Aduziu, no ponto, que a EC 45/2004 dotou o Supremo de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de publicidade de suas decisões, dispensaria essa intervenção, qual seja, o instituto da súmula vinculante (CF, art. 103-A).[34]

 Por sua vez, o Min. Joaquim Barbosa não conheceu da reclamação, mas conheceu do pedido como habeas corpus e também o concedeu de ofício. Considerou que, apesar das razões expostas pelo relator, a suspensão de executoriedade da lei pelo Senado Federal não apresenta entrave à ampla efetividade das decisões da Corte, mas complemento. Afirmou, também, a possibilidade de edição de súmula vinculante e afastou a incidência da tese de mutação constitucional, pela via interpretativa, posto que faz-se mister dois fatores não presente, o lapso temporal maior para verificação da mutação e o consequente e definitivo desuso do dispositivo. Ressaltou, por fim, que essa proposta, além de estar impedida pela literalidade do art. 52, X, da CF, percorria na contramão das conhecidas regras de auto-restrição.[35] Em voto-vista o Min. Ricardo Lewandowski não conhecia da reclamação, mas concedia habeas corpus de ofício, pediu vista dos autos o Ministro Teori Zavascki, em 16 de maio de 2013.[36]

Segundo Uadi Lammêgo Bulos, a mutação constitucional consiste em um processo informal de mudança das constituições, tendo como peculiaridades espontaneidade e a imprevisibilidade de quando ocorrerá, não sendo um fenômeno provocado pela ação humana. Destarte, a tese defendida por Gilmar Mendes e Eros Grau, na Reclamação nº 4.335/AC, não revela hipótese de mutação constitucional, mas sim, de “manipulação inconstitucional”.[37]

Pedro Lenza ao abordar a tese de abstrativização do controle difuso, pondera que:

(...) embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processual (art. 5º, LXXVIII – Reforma do judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), afigura-se falta, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam constitucionais, para a sua aplicação.[38]

Avulte-se, portanto, críticas mais contundentes lançadas por Lenio Luiz Strack[39], ao pontuar que “qualquer decisão do Supremo Tribunal em controle difuso gera os mesmos efeitos que uma proferida em controle concentrado (abstrato) é, além de tudo, tomar uma decisão que contraria a própria Constituição.” E continua "se o Supremo Tribunal Federal pretende – agora ou em futuros julgamentos - dar efeito vinculante em controle difuso, deve editar uma súmula (ou seguir os passos do sistema, remetendo a decisão ao Senado).” Vislumbra-se, ainda, que “ou isso, ou as súmulas perderam sua razão de ser, porque valerão tanto ou menos que uma decisão por seis votos a cinco (sempre com o alerta de que não se pode confundir súmulas com declarações de inconstitucionalidades).”

Corroborando entendimento, relata Pedro Lenza[40] que “a possibilidade de se conseguir o pretendido mediante a edição de súmula vinculante, o que, em nosso entender, seria muito legítimo e eficaz, além de respeitar a segurança jurídica, evitando o casuísmo.”

De outro modo, segundo Lenio Luiz Strack a atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, nem tão pouco constituinte, ao afirmar que:

De uma perspectiva interna ao direito, e que visa a reforçar a normatividade da constituição, o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando. [41]

Nessa perspectiva, a aplicação da tese de abstrativização do controle difuso, reduz a competência do Senado Federal, a uma mera secretaria de divulgação das decisões prolatadas pelo STF, as quais nascem rotuladas de efeito erga omnes e força vinculante. Em fim, significa usurpar do procedimento de controle difuso de constitucionalidade qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Ordem Constitucional.[42]

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Em síntese conclusiva, preleciona o doutrinador Pedro Lenza:

Assim, na medida em que a análise da constitucionalidade da lei no controle concreto difuso pelo STF não produz efeito vinculante, parece que somente mediante necessária reforma constitucional (modificando o art. 52, X, e a regra do art. 97) é que seria possível assegurar a constitucionalidade dessa nova tendência – repita-se, bastante "atraente" – da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso, com caráter vinculante.[43]

Em suma, a tese de abstrativização do controle difuso de constitucionalidade na forma apresentada pelo STF, não encontra parâmetros legais, permitindo a própria violação da Constituição, de maneira que abala a sua força normativa, além de conceder ao Supremo um poder constituinte ilegítimo. Destarte, faz-se premente um procedimento legal que tenha o condão de compatibilizar os efeitos dos dois institutos de controle constitucional, a possibilidade de edição de súmula vinculante ou a reformar da Constituição, somente assim, seria possível assegurar a constitucionalidade da tese de abstrativização do controle difuso.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como síntese das considerações delineadas na presente pesquisa, depreende-se que o fenômeno da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade tem se apresentado na legislação brasileira e na jurisprudência do STF, mormente, com o advento da EC nº 45/2004, que trouxe transformações no Recurso Extraordinário e instituiu a Súmula Vinculante.

Em sede jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal tem se inclinado para abstrativização do controle difuso, por meio de Recurso Extraordinário e outras ações, proferindo decisões com eficácia erga omnes e efeitos vinculante, peculiar do controle concentrado, independentemente da atuação do Senado Federal, sobre o manto da mutação constitucional do art. 52, X, da Carta Magna.

Nesse cenário, tolher a participação política do Senado Federal no âmbito do controle difuso, outorgada pelo próprio poder constituinte originário, a uma mera secretaria de divulgação das decisões prolatadas pelo STF, implicaria por afrontar o princípio constitucional da separação dos poderes.

Outrossim, a súmula vinculante tem o condão de fortalecer o papel do STF na abstrativização do controle difuso, haja vista constitui em um mecanismo legal que alberga a eficácia erga omnes e efeito vinculante, proporcionando avanços ao ordenamento jurídico em termos de celeridade processual e efetividade do processo, e promovendo a segurança jurídica.

Por derradeiro, cumpre assinalar, que a tese de abstrativização do controle difuso nos moldes apresentados pelo STF, não encontra respaldo no ordenamento jurídico, permite abrir precedente de descumprimento de norma constitucional, resvalando na supremacia da Constituição e na força normativa, bem como atribuir a Suprema Corte um poder constituinte ilegítimo.

Vislumbre-se, ainda, que compete ao legislador, e não ao judiciário, a reformular o sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo ordenamento jurídico, por meio de Emenda Constitucional, tanto para revogar o art. 52, X, quanto para inclusão de dispositivo que regularize o tema, no entanto, a inércia do legislativo constitui o óbice ao exercício da defesa da Ordem Constitucional. Outrossim, compete ao judiciário à edição de súmula vinculante como mecanismo importante na abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, somente assim, seria possível sua aplicação, dessa maneira pode-se asseverar que o STF não extrapolaria os limites da jurisdição constitucional.

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Sobre a autora
Ana Lúcia Barros da Costa

Bacharela em Direito e Pós-graduada em Direito Público: Constitucional, Administrativo, Tributário e Previdenciário pela Associação Caruaruense de Ensino Superior / Faculdade ASCES. Advogada e Consultora Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Ana Lúcia Barros. As transmutações do controle difuso no Brasil: a abstrativização e os impactos no ordenamento jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3675, 24 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24999. Acesso em: 25 nov. 2024.

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