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Serviços notariais e de registro e a vinculação com o regime jurídico administrativo

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06/09/2013 às 14:51
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4. DELEGAÇÃO E O EXERCÍCIO PRIVADO

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 236, como foi acima dito, decidiu por transferir aos particulares a execução dos serviços notariais e de registro. Optou pela tradição histórica de tais serviços no direito pátrio.

Isso denota a condição de que o Estado é o titular dos serviços notariais e de registro. A ele compete, por meio do Poder Público, a delegação do exercício da atividade.

A opção constitucional da delegação foi orientada pela noção de descentralização administrativa por colaboração.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina:

“Descentralização por colaboração é a que se verifica quando, por meio de contrato ou ato administrativo unilateral, se transfere a execução de determinado serviço público a pessoa jurídica de direito privado, previamente existente, conservando o Poder Público a titularidade do serviço” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. – 24ª ed. – São Paulo: Atlas, 2011, pág. 424).

Em verdade, a descentralização por colaboração pode originar a transferência da execução de serviços públicos a pessoas físicas. É o que ocorre nos serviços notariais e de registro. Pela natureza da atividade, não há como transferi-la (a execução) a pessoas jurídicas. A fé pública é própria dos seres humanos. O poder de decisão, peculiar dos registros públicos e do notariado, depende do conhecimento e da prudência humana.

Ricardo Dip confirma:

“Embora o serviço público seja suscetível de atribuir-se a pessoas físicas e jurídicas, não se pode perder de vista que o objeto do “serviço” registral é, propriamente, uma atividade jurídica, atividade que, no mais, entranha, por essência, caráter jurisprudencial, é dizer, de julgamento jurídico de casos, além de rematar-se dação de fé pública. Os jurisprudentes constituem-se, por definição, titulares de um saber prático, prudencial, dotado de independência jurídica. Por esse aspecto, já não se desvelaria possível uma simples “delegação” da atividade registral a pessoa jurídica – que é coisa diversa de um colegiado de jurisprudentes -, sem que, em acréscimo, se radicasse, de modo expresso, a titularidade do exercício da prudência jurídico-registral (ainda que, de toda a sorte, enquanto decisão de casos, possa emanar de um órgão colegiado. O que, agora sim de modo absoluto, inibe a gestão registral por pessoa jurídica é a impossibilidade de atribuir-lhe a dação da fé pública, que é atributo próprio da potestade individual. É fácil ver que a fé pública, uma vez afirmada em dado caso não comporta dissidência do poder de sua dação; um eventual conflito interno, nessa área, implica a pronta desaparição da fé pública, que ou é firma em si própria e confere confiança sócia, ou não tem valor. Daí que, sendo comum aos juízos colegiados a existência de dissídios, não se vislumbra possível sejam eles titulares da qualidade de assinar fé pública. De fato, “fé pública” majoritária, “fé pública” divergente, não é fé pública” (DIP, Ricardo Henry Marques. Direito administrativo registral. – São Paulo : Saraiva, 2010, p. 82 a 83).

E Luís Paulo Aliende Ribeiro define o regime de descentralização dos serviços notariais e de registro:

“A função pública notarial e de registro é, por imperativo constitucional, exercida por meio de descentralização administrativa por colaboração: o Poder Público conserva a titularidade do serviço e transfere sua execução a particulares (pessoas físicas com qualificação específica e que foram aprovados em concurso público de provas e títulos) em unidades (ou feixes de competências) definidas, pela Administração, em função das necessidades dos usuários e da adequação do serviço, mediante critérios relativos ao número de atos praticados, receita, aspectos populacionais e conformidade com a organização judiciária de cada Estado da Federação. Não há mais que se falar em cartórios como unidades da estrutura administrativa do Estado, nem cargos a serem providos, tampouco quadros, classes ou carreiras” (RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. – São Paulo : Saraiva, 2009, p. 56 e 57).

A gestão privada, ou exercício privado de funções públicas tem por consequência a liberdade da definição das diretrizes do funcionamento administrativo e financeiro da unidade cartorial.

Essa liberdade merece ser considerada como legalmente restrita. Os oficiais de registro e os tabeliães são orientados por normas positivadas. As condutas, os limites da liberdade estão previstos em lei, especialmente na Lei nº 8.935/94.

Pode-se dizer, então, que a liberdade é relativa. O profissional tem a permissão legal de gerenciar a unidade como melhor lhe convier, desde que atenda os preceitos legalmente estabelecidos, que atenda o fim público da atividade, orientado pelos princípios administrativos aplicáveis ao serviço público em geral.

É o que reza o art. 21 da citada Lei:

“Art. 21. O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços”. (grifo nosso).

A exclusividade no gerenciamento administrativo e financeiro da unidade lhes confere também, de outro lado, a exclusiva responsabilidade pelas condutas danosas praticadas. O Estado não pode ser compelido a responder por danos que o particular, inserido no regime jurídico da delegação do exercício, cometer. E essa é uma das vantagens que a delegação dos serviços notariais e de registro confere ao poder delegante: isenção de responsabilidade, exceta hipótese de atos cometidos por pessoas indicadas pelo Estado, transitória e interinamente, sem concurso público.


5. INDEPENDÊNCIA E FISCALIZAÇÃO

Como foi acima dito, o exercício privado de funções públicas acarreta a transferência ao particular de responsabilidades que antes eram, ou poderiam ser, cometidas ao poder delegante.

Ao Estado, por meio do Poder Público, compete garantir que as atividades sejam exercidas de modo a garantir a consecução das finalidades públicas da atividade, especialmente a segurança jurídica, pacificação social, prevenção de litígios, eficácia dos atos, validade, publicidade, e etc.

Assim, a própria Constituição Federal de 1988, resguardou, no parágrafo 1º do art. 236, que a fiscalização da atividade compete ao Poder Judiciário.

A natureza das atividades notariais e de registro é essencialmente jurídica. O trato com direitos e interesses privados demanda conhecimento do arcabouço legal existente em determinada localidade. O Tabelião não é se restringe a reproduzir o dito, mas vai além. Capta as vontades das partes, realiza um processo de triagem daquilo que foi dito, enquadra nas situações tipicamente previstas em lei, ou define como atípicas, e posteriormente as transpõe, se lícitas ou conformes ao direito, ao papel. Como poderia um desconhecedor do Direito declinar a legalidade de um ato ou de um negócio jurídico? Há quem possa fazê-lo, mas não me parece que isso seja recorrente.

A gestão privado dos serviços notariais e de registro não afasta a obrigatoriedade de sua fiscalização. Pelo contrário, esta existe em função daquela. O titular da atividade – Estado – tem o dever de zelar pelo seu adequado exercício, especialmente quando o concedo a terceiros. A forma pela qual o Estado orienta a fiscalização é denominada de regulação.

Quanto a isso, Hely Lopes Meirelles disserta:

“O Estado deve ter sempre em vista que o serviço público e de utilidade pública são serviços para opúblico e que os concessionários ou quaisquer outros prestadores de tais serviços são, na feliz expressão de Brandeis, publicservants, isto é, criados, servidores do público. O fim precípuo do serviço público ou de utilidade pública, como o próprio nome está a indicar, é servir ao público e, secundariamente, produzir renda a quem o explora. Daí decorre o dever indeclinável de o concedente regulamentar, fiscalizar e intervir no serviço concedido sempre que não estiver sendo prestado a contento do público a que é destinado”  (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. – 37ª ed. São Paulo : Malheiros, 2011, pág. 370).

Em verdade, o ente fiscalizador não deverá intervir apenas quando o serviço não estiver a contento do público. Corresponder às expectativas dos usuários pode ser algo muito fugaz. Deve-se, no entanto, buscar atender ao interesse da coletividade. Isso porque a atividade notarial e registral é caracterizada, muitas vezes, pela negativa da instrumentalização da vontade ou das vontades das partes. A expectativa dos usuários, nestes casos, é frustrada. A legalidade que orienta tais serviços impede a realização da vontade das partes. Condutas ilícitas, ou em desconformidade ao direito merecem ser repudiadas. Portanto, a fiscalização não deve apenas se atendar ao grau de satisfação do usuário do serviço, que muitas vezes pode não ser um bom termômetro para medir o grau de eficiência, segurança, adequação, moralidade, impessoalidade e etc, de tais serviços. Pelo contrário, deve servir como um indicador da atividade fiscalizadora, mas não o único instrumento de avaliação.

E quando se fala em fiscalização das atividades notariais e de registro, deve-se ter em mente que esta não pode ser confundida com ingerência. Ao Poder Judiciário é conferido o poder de fiscalização, o que inclui o de regulação.

Da mesma forma que aos Tabeliães e aos Registradores é aplicada uma série de restrições a atuação, ao Estado também foram definidos os limites da fiscalização.

O já citado art. 21 da Lei nº 8.935/94 é um dos limites aplicáveis ao Poder Judiciário, no exercício da atividade fiscalizadora.

A independência é uma garantia aos titulares das delegações públicas em comento. E essa independência pode ser dividia em administrativa e jurídica.

A primeira define a forma de gestão da atividade concedida. Ao profissional compete a gestão administrativa e financeira da unidade. Assim, as regras internas, o número de empregados, o número de substitutos, a quantidade de equipamentos de informática, o local de instalação da sede do serviço (em alguns Estados, a própria lei estadual de criação determinação o local), a cor do ambiente, o papel utilizado, o uniforme, enfim, praticamente toda a parte administrativa da unidade compete ao Oficial delegado.

Como já exposto acima, isso configura uma garantia para o próprio Estado, que se isenta de qualquer relação de gestão frente à unidade. Obviamente que o titular da delegação deve respeitar as leis aplicáveis aos empregados, aos consumidores, normas municipais de posturas e etc. E isso está diretamente ligado à gestão privada. A independência sempre vem acompanhada de responsabilidades.

Ainda, a independência pode ser configurada sob o aspecto jurídico. O art. 28 da Lei nº 8.935/94 positiva tal característica:

“Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei”.

Daí é extraída a noção de que para o exercício da atividade notarial e de registro é assegurada a independência em relação às atribuições que lhes são peculiares. Significa que não pode haver interferências no exercício da função. É uma garantia para o livre exercício de tais funções, sem que se submeta a sucumbir às pressões de quem quer que seja.

Novamente, Ricardo Dip brilhantemente leciona:

“O modelo de independência jurídica do registrador e do notário, como foi antecipado, ajusta-se, entre nós, ao direito posto: notário e oficial de registro são ‘profissionais do direito’, ‘dotados de fé pública’ (art. 3º, Lei 8.935, de 18.11.1994), gozando ‘de independência no exercício de suas atribuições’ (art. 28, Lei cit.). Daí que, submetidos à legalidade, têm o dever de observar ‘as normas técnicas estabelecidas’ pelo Poder que o fiscaliza (inc. XIV, art. 30, Lei cit.). Esse modelo, fundado em uma sólida teoria dos saberes jurídicos, corroborado pela tradição e compaginado, pois, com o direito posto – incluso o constitucional -, não se compatibiliza, é verdade, com o fato da poietização da profissão jurídica dos notários e registradores, nem com o fato da administravização do objeto jurídico primeiro de sua tarefa: a autonomia de vontades contratantes, no caso dos notários, e a propriedade privada, no dos registradores. Tampouco o paradigma da independência jurídica de oficiais de registro e tabeliães e acomodável ao fato de comumente entender-se que a mais rigorosa das punições administrativas a eles cominadas, a perda de delegação, esteja ligada a um simplíssimo elemento normativo de tipo – a falta grave -, sem menção da conduta que o carregue” (DIP, Ricardo Henry Marques. O paradigma da independência jurídica dos registradores e dos notários. Revista de Direito Imobiliário n. 42, set/dez de 1997. – São Paulo : Revista dos Tribunais, página 5).

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E a independência jurídica também diz respeito à qualificação dos atos judiciais. O Tabelião e Registrador devem decidir sempre pela legalidade, mesmo que estejam realizando determinado ato sob autorização, solicitação, requisição ou determinação judicial. A negativa da prática do ato é ínsita à atividade jurídica. A qualificação notarial e registral é o meio pelo qual o profissional analisará a legalidade do ato. Se legal, praticasse o ato desejado pela parte. Se ilegal, rejeitasse a pratica, expondo os motivos da negativa. Sem consequências maiores do que a revisão judicial-administrativa de seus atos. Essa é a verdadeira independência jurídica dos notários e dos registradores: a consequência de seus atos deve estar restrita aos limites dos procedimentos legalmente previstos para a insurgência dos usuários. Não há que se falar em responsabilidade disciplinar do oficial que pratica atos em conformidade com o direito.

Sobre isso, Luiz Egon Richter disserta:

“Para que o exercício da função qualificadora possa ser cumprida é imprescindível que o Notário e o Registrador tenham liberdade decisória, sem nenhum tipo de condicionamento, seja de ordem política, econômica, burocrática e corporativa. O condicionamento ao qual os Notários e Registradores estão sujeitos é o da ordem jurídica” (RICHTER, Luiz Egon. Da qualificação notarial e registral e seus dilemas. In Introdução ao direito notarial e registral; coordenação Ricardo Dip. – Porto Alegre : IRIB : Fabris, 2004, página 193).

Pode-se dizer que a independência jurídica do notário e do registrador constituiu o maior instrumento de consecução do segurança jurídica peculiar a tais serviços. As intempéries próprias dos gostos e desgostos dos seres humanos podem gerar manifestações de diversas formas. O descontentamento com determinadas condutas ou práticas pode incitar situações constrangedoras. E isso é inerente a qualquer atividade qualificadora. O Poder de decisão acompanha uma carga natural de pressão. A forma pela qual os notários e os registradores garantem o livre exercício das atividades notarial e registral é a independência jurídica. Devem seguir, primeiramente, a lei, e em segundo plano, as suas próprias convicções.

Ainda, pode-se dizer que quando o Oficial público age com respaldo na lei, no caso, na Lei nº 8.935/94 e as demais aplicáveis a cada ato específico, não pode ser forçado, ou pressionado a executado. Assim, não pode ser condenado por crime de desobediência quando age com respaldo na lei ou em orientações normativas.

 

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Sobre o autor
José Eduardo de Moraes

Tabelião e Registrador do 1º Ofício de Porto Franco - Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, José Eduardo. Serviços notariais e de registro e a vinculação com o regime jurídico administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3719, 6 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25232. Acesso em: 23 abr. 2024.

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