Capa da publicação STJ consolida primazia da socioafetividade na filiação
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Socioafetividade em família e a orientação do STJ.

Considerações em torno do REsp 709.608

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17/10/2013 às 14:14

Resumo:


  • A socioafetividade migrou para o direito de família no Brasil a partir da segunda metade da década de 1990.

  • A afetividade é considerada um princípio e dever jurídico nas relações familiares, com base na estabilidade das relações socioafetivas.

  • No STJ, houve uma evolução na jurisprudência em favor da primazia da paternidade e filiação socioafetivas, destacando a importância da convivência e dos laços afetivos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6. O REsp 709608: CONSOLIDANDO A SOCIOAFETIVIDADE

O REsp 709608 (DJe de 23.11.2009), sendo relator o Min. João Otávio Noronha, prossegue e consolida a orientação, que já se pode dizer dominante no STJ, da socioafetividade como fundamento da filiação e da paternidade. Há perfeita harmonia com os precedentes acima citados e com a teoria desenvolvida pela doutrina brasileira.

Nesse caso, com o falecimento do pai registral, que convivera com a mãe do recorrente e o reconhecera com seu filho junto ao registro do nascimento, e diante da habilitação do recorrente, na qualidade de herdeiro, no processo de inventário, a inventariante e filha biológica do de cujus, ingressou com ação de negativa de paternidade, objetivando anular o registro de nascimento, sob a alegação de falsidade ideológica. O juiz deferiu o pedido e determinou a retificação do registro de nascimento, para que se efetivasse a exclusão dos termos de filiação paterna e de avós paternos. O Tribunal estadual confirmou a decisão, por estar caracterizada a falsidade ideológica, pois o registro foi feito “por quem não é verdadeiramente o pai”. A decisão recorrida foi inteiramente reformada pela Quarta Turma do STJ, por unanimidade de seus membros, que acompanharam os fundamentos do Ministro relator.

Em sua essência, os principais fundamentos da decisão do STJ são as seguintes: a) o erro, referido no art. 1.604. do Código Civil, apenas ocorreria se o declarante tivesse sido “induzido a engano ao proceder o registro da criança”, o que não foi o caso, pois este foi espontâneo e desejado: o pai sabia que o menor não era seu filho biológico; b) não houve falsidade, pois a vontade se materializou, em condições normais de discernimento, movida pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza; c) o termo de nascimento é fundado em autêntica posse de estado de filho; d) o termo caracteriza reconhecimento voluntário de filiação, que não pode sequer ser revogado, por força dos arts. 1.609. e 1.610 do Código Civil.

Ressaltam nessa decisão duas linhas de argumentação, que reforçam a orientação dos precedentes: de um lado, argumenta com a inviolabilidade do registro de nascimento, que só abre exceção ao erro ou à falsidade. Afirma, então, que a vontade espontânea e a inexistência de indução ao engano afastariam o erro; e que não se pode cogitar de falsidade quando se reconhece a paternidade socioafetiva, mediante o termo de registro de nascimento. De outro lado, a declaração ao registro é modalidade de reconhecimento voluntário da paternidade, que é inalterável.

Essas duas linhas de argumentação desenvolve interpretação sistemática, ao invés de se ater exclusivamente à literalidade das ressalvas do art. 1.604, quanto ao erro e a falsidade. Em primeiro lugar, a regra não é a da invalidade do registro, mas a presunção legal de sua validade. Em segundo lugar, o registro só pode ser invalidado se não configurar reconhecimento voluntário de paternidade. Gostaríamos de sublinhar este ponto.

O voto do relator, ao relacionar o estado de filiação com o reconhecimento da paternidade, evoca o REsp 878.941, de 2007, da relatoria da Min. Nancy Andrighi, no qual se decidiu que o reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos, e que a ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento.

A decisão e o precedente referido remetem ao reconhecimento voluntário da paternidade, em razão do registro de nascimento. Com efeito, o art. 1.609, I, estabelece que o reconhecimento dos filhos pode ser feito “no registro do nascimento” e é irrevogável. Faz-se mediante declaração perante o oficial do registro do nascimento, cabendo este recolhê-la e dar-lhe pública forma. O reconhecimento tanto pode ser feito quando já tenha havido registro do nascimento, constando apenas o nome da mãe, quanto simultaneamente com o registro. Quando ainda não há registro do nascimento, a declaração tem dois conteúdos: a comunicação de que nasceu uma criança, em determinada data e determinado lugar, de determinada mãe, e o reconhecimento da paternidade do declarante.

Essa interpretação do art. 1.609, I, que emerge da decisão do STJ, aponta para mais um caminho de consolidação da socioafetividade. No caso, quando o de cujus foi ao cartório e disse que o recorrente era seu filho, ainda que soubesse não ter com ele vínculo biológico, reconheceu expressamente a paternidade e a filiação socioafetivas. Não se confunde, portanto, com a declaração para fins de registro do nascimento, pois só contra este poderiam ser lançadas as acusações de erro e falsidade. A decisão atribui à declaração espontânea, o efeito específico de reconhecimento voluntário da filiação. Lança mais luz ao que estava delineado nas decisões anteriores do STJ, prosseguindo nessa trajetória virtuosa. Daí a importância que ela reveste para o desenvolvimento da doutrina jurídica da socioafetividade nas relações familiares.


Notas

2 LÔBO, Paulo. O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese, n. 1, p. 67-78, abr./jun. 1999.

3 LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Trad. Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 40.

4 OLIVEIRA, Guilherme de. Critério jurídico da paternidade. Coimbra: Almedina, 2003 (reimpressão).

5 GOMES, Orlando. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1984, p. 26.

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6 https://www.psiqweb.med.br/cursos/afet.html, acesso em 13.12.2006.

7 LÔBO, Paulo. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da súmula 301 do STJ. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, n. 339, p. 45-56, jan. 2006.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Socioafetividade em família e a orientação do STJ.: Considerações em torno do REsp 709.608. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3760, 17 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25365. Acesso em: 6 dez. 2025.

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