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A laicidade do Estado e a retirada de símbolos religiosos de repartições públicas

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26/09/2013 às 10:59
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4 A (IN) CONSTITUCIONALIDADE NA INCLUSÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM REPARTIÇÕES PÚBLICAS

Sendo as normas constitucionais de hierarquia absoluta em nosso ordenamento jurídico, quando qualquer ato obedecer à supremacia da CRFB/88 e estiver de acordo com seus dispositivos, estaremos na presença de uma ideia de constitucionalidade. Caso um ato, seja ele de cunho público ou privado, for de encontro ao caráter súpero das normas constitucionais, será dotado de inconstitucionalidade (BULOS, 2010).

Alguns juristas afirmam que os direitos da liberdade, entre estes se enquadra o direito à liberdade de crença, possuem superioridade em relação aos direitos sociais. A justificativa vem do direito natural, mostrando que quando se procura a liberdade em primeiro plano, os direitos sociais seriam um mero resultado. Esta não é a posição mais aceita. A corrente majoritária iguala as duas garantias constitucionais (BONAVIDES, 2010).

O tema retirada de símbolos religiosos em repartições públicas já vem sendo discutido, tanto nos tribunais quanto na doutrina, mas ainda não se chegou a um consenso majoritário. Alguns doutrinadores acreditam que o tema é de pouca relevância, pois a simples presença de um símbolo não feriria a laicidade do Estado. A doutrina majoritária é favorável à discussão:

A questão posta em debate não é fútil, já que não versa sobre a melhor forma de se decorar certos ambientes formais do Poder Judiciário, mas sim sobre o modelo de relação entre o Estado e religião mais compatível com o ideário republicano, democrático e inclusivo, adotado pela Constituição de 88. Trata-se, em suma, de uma questão de princípios, e não de uma discussão sobre meras preferências estéticas (SARMENTO, 2008, p. 196).

O principal argumento dos que defendem a permanência de símbolos religiosos em repartições públicas é a tradição católica presente em nosso país desde sua fundação com a invasão dos portugueses, que forçaram a aculturação dos índios, que foram doutrinados em seguir a religião monoteísta por influência da Igreja Católica, que possuía o pensamento predominante(BARROS, 2000). Estatísticas do IBGE (2012) mostram que houve uma considerável redução no número de católicos no Brasil e aumento na quantidade de protestantes e daqueles sem religião.

Estes que utilizam a tradição católica como argumento vão ao extremo de acusar os que são contra a permanência de símbolos religiosos em repartições públicas de perseguição religiosa, chegando ao cumulo de pensar que o próximo passo será o pedido de retirada do Cristo Redentor no Rio de Janeiro.

Dizem os doutrinadores favoráveis à permanência que não é possível impedir a demonstração pública de fé em Deus mesmo em uma repartição pública. Pelo fato de o Estado não ser ateu, é possível a convivência pacifica de símbolos que remetem à história cultural do país e são bens cultuados pela parcela majoritária da população (BRANCO; MENDES, 2012).

Já os que são contra a permanência de símbolos religiosos em repartições públicas defendem que a tradição não é argumento suficiente, pois quando a escravatura foi abolida em 1888, esta era um costume no Brasil. A tradição cristã não pode ser usada como fundamento jurídico para justificar um ato, caso isso fosse aplicado estritamente, as mulheres ainda seriam obrigadas a casar virgem, o divórcio não seria regulamentado e o adultério ainda estaria disposto em nosso Código Penal (VIANNA, 2010).

O argumento de que a maioria da população professa uma religião também não é válido, pois de acordo com a teoria constitucional vigente, deve haver a imposição dos textos normativos a população em geral. A maioria precisa seguir os preceitos constitucionais como qualquer outra pessoa, não é possível usar a desculpa de que por ter uma característica em comum, ela possa ser colocada hierarquicamente acima de nossa Carta Maior, que regula as ações de todos (VECCHIATTI, 2008).

Outro argumento de quem defende a permanência dos símbolos religiosos em repartições e prédios públicos é a evocação à divindade exposta no preâmbulo de nossa Magna Carta (BRANCO; MENDES, 2012).

Diz o preâmbulo da CRFB/88:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

De todas as constituições já promulgadas no Brasil, somente duas deixaram de pedir a proteção divina em seus preâmbulos, a constituição de 1891 e a constituição de 1937. O Deus referido no preâmbulo da CRFB/88 é ecumênico, não pertencendo a uma religião especifica, diferente do preâmbulo da Carta argentina, em que o Deus referido é o católico. Nas constituições estaduais vigentes nos estados-membros brasileiros, a única que não faz menção a Deus é a constituição acreana (BULOS, 2010).

O professor Túlio Vianna (2010) é contra esse argumento, ele afirma que aqueles que defendem a permanência de símbolos religiosos em prédios públicos usando como raciocínio o preâmbulo da CRFB/88 estão usando um falso fundamento jurídico, pois o preâmbulo, pela própria denominação, é o texto que antecede a norma, ou seja, não tem valor normativo algum, sendo assim, se usado como argumento, estariam excluídos da constituição aqueles que não professam fé alguma.

A ineficácia dos Preâmbulos é tão gritante que juristas viam nele o "lugar onde cabiam todasas normas não acionáveis da Constituição" (BONAVIDES, 2010, p. 227). As palavras do preâmbulo somente terão força normativa estando efetivamente reproduzidas em artigos constitucionais, o que não ocorre com a expressão “sob a proteção de Deus”.

A própria Corte Constitucional decidiu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.076 que o Preâmbulo não possui valor jurídico-normativo, pois é matéria de ordem política e não de Direito, refletindo apenas a ideologia dos constituintes da época, sem relevância jurídica alguma. O Preâmbulo da CRFB/88 não é norma jurídica, não é norma constitucional, é apenas uma lista de posições políticas, sem força constitucional para obrigar, coibir ou permitir uma conduta ou seu descumprimento (OLIVEIRA, 2008).

Apesar de tudo que foi dito anteriormente sobre o preâmbulo da CRFB/88, isso na prática não é respeitado. A Juiza Federal Maria Lucia Lencastre Ursaia utilizou o preâmbulo da CRFB para justificar a permanência de símbolos religiosos em repartições públicas federais em São Paulo na Ação Civil Pública n° 2009.61.00.017604-0. Disse a magistrada que:

Desta forma, o legislador constituinte, invocando a proteção de Deus ao promulgar nossa Constituição Federal, demonstrou profundo respeito ao Justo para conceber a sociedade justa e solidária que se propôs.

Já existem algumas decisões em relação ao tema em nossos tribunais. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2007 já se pronunciou a respeito. O site do CNJ (2007) informa que “todos os presentes, exceto o relator, entenderam que os objetos seriam símbolos da cultura brasileira e que não interferiam na imparcialidade e universalidade do Poder Judiciário”

Apesar da negativa em relação ao tema, o voto do relator Ministro Paulo Lôbo foi de grande valia.

(...) apresentou o voto a favor da retirada dos símbolos das dependências do Judiciário. Segundo o relator, o Estado laico deve separar privado de público. O relator defendeu que no âmbito privado cabem as demonstrações pessoais como o uso de símbolos religiosos. O que não deve ocorrer no âmbito público. A maioria do plenário manteve a decisão contrária a retirada dos símbolos religiosos, concluindo o julgamento dos procedimentos.

Em março de 2012, o Conselho da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul, determinou a retirada de quaisquer símbolos religiosos que estivessem presentes em espaços do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul abertos ao público, de acordo com o processo nº 0139-11/000348-0: 

PROC. Nº 0139-11/000348-0 - PORTO ALEGRE. RETIRADA DE CRUCIFIXOS E SÍMBOLOS DAS DEPENDÊNCIAS DO TJRS. REDE FEMINISTA DE SAÚDE, SOMOS -COMUNICAÇÃO, SAÚDE E SEXUALIDADE, NUANCES -GRUPO PELA LIVRE ORIENTAÇÃO SEXUAL, LIGA BRASILEIRA DE LÉSBICAS (ADV(S) BERNARDO DALLOLMO DE AMORIM), MARCHA MUNDIAL DE MULHERES, THEMIS - ASSESSORIA JURÍDICA E ESTUDOS DE GÊNERO, INTERESSADOS. DECISÃO: ACOLHERAM O PLEITO DE RETIRADA DE CRUCIFIXOS E OUTROS SÍMBOLOS RELIGIOSOS EVENTUALMENTE EXISTENTES NOS ESPAÇOS DESTINADOS AO PÚBLICO NOS PRÉDIOS DO PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO SUL. UNÂNIME.

O desembargador relator Cláudio Baldino Maciel afirmou sobre o tema que: "o julgamento feito em uma sala de tribunal sob expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não parece a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz equidistante dos valores em conflito. Resguardar o espaço público do Judiciário para o uso de símbolos oficiais é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de um Estado laico, devendo ser vedada a manutenção dos crucifixos e outros símbolos religiosos em ambientes públicos” (TJRS, 2012).

A decisão reverberou por todo o Brasil, com comentários a favor e contra. O ministro do STF, Celso de Mello (2012) concordou com a decisão: "Parece-me justificável, desse modo, a resolução tomada pelo Conselho Superior da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul. Nem hostilidade oficial a qualquer religião nem ostentação, nos edifícios do Fórum (que são espaços de atuação do Poder Público), de quaisquer símbolos religiosos, como o crucifixo, a estrela de David ou o crescente islâmico". O Presidente da OAB/RJ concordou com a decisão do TJRS e ainda adicionou que a presença de um crucifixo no pleno do Supremo Tribunal Federal é inconstitucional e fere o princípio do Estado laico.

Entre os contrários à decisão, é possível citar o  arcebispo de Porto Alegre, o ex-Ministro do STF Paulo Brossard, que exageradamente comparou a decisão com os "tempos apocalípticos" e um dos desembargadores do TJRS que "considerou que o Conselho da Magistratura não é a instância adequada para tratar do assunto e que a separação entre Igreja e Estado não é absoluta no país, pois a maioria tem sentimento religioso, o hino nacional tem referência à divindade. Cristo, no âmbito do Judiciário, representa justiça" (ZYLBERSZTAJN, 2012, p. 111).

Na Alemanha, a Corte Constitucional decidiu no julgamento do BVERFGE 93,1 (KRUZIFIX – 1BvR 1087/91), de 16/05/1995, que é inconstitucional a lei que determina que cruzes fossem afixadas em escolas públicas, por entender que isso feriria a liberdade de crença(SCHWABE, 2005).

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Nos Estados Unidos da América, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou alguns casos relacionados à laicidade do Estado, como por exemplo Lynch vs. Donnelly 465 U.S. 668 (1984), que tratou sobre a decoração natalina nos prédios que pertenciam a cidade de Pawtuckey em Rhode Island e County of Allegheny vs. ACLU 492 U.S. 573 (1989), que versou sobre a constitucionalidade da presença de um símbolo judaico nos prédios públicos da cidade de Pittsburgh.


5A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA RETIRADA DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS DE REPARTIÇÕES PÚBLICAS

Diz a CRFB/88 em seu artigo 127 que: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". Disso podemos entender que é dever do Parquet buscar que os princípios supremos do Estado sejam devidamente respeitados e efetivados (BULOS, 2010).

Entre esses princípios que o Ministério Público protege, existe o princípio da laicidade. As instituições públicas ainda precisam sofrer um processo de amadurecimento democrático para realização plena desse princípio, mas o Ministério Público já possui legitimidade na defesa da laicidade estatal (ZYLBERSZTAJN, 2012). O Ministério Público defende esse princípio por meio da ação civil pública, presente no artigo 129, III da CRFB/88.

Apesar da legitimidade que o Ministério Público possui na defesa da laicidade estatal, a atuação já sofreu críticas, a mais contundente foi feita pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes (2009), que disse "'Eu tenho a impressão de que há mais o que fazer', ironizando ainda que a próxima tentativa seria derrubar a estátua do cristo redentor".

Em contrapartida, é possível argumentar que "a humanidade não tem uma lista de espera de problemas hierarquizados de acordo com a urgência para a sua solução. Problemas menores muitas vezes possuem soluções simples e rápidas, e não haveria qualquer sentido em se esperar a solução de problemas complexos para se resolver questões facilmente superáveis" (VIANNA, 2012, p. 1).

Depois de atuar contra a prefeitura de Maceió, que tentou reprimir religiões de origem africana a realizarem oferendas à Iemanjá na orla de Maceió, o Ministério Público de Alagoas pretende atuar mais ativamente no combate à intolerância religiosa. O Promotor de Justiça Flávio Gomes da Costa afirmou isso em reunião com líderes de religiões afro "queremos descontruir barreiras, resgatando a imagem das religiões afro conforme os preceitos da Constituição brasileira, que estabelece a liberdade de cultos" (GAZETAWEB, 2013).

A atuação do Ministério Público vem tentar reprimir erros que o Estado cometeu em sua história, quando não respeitou o princípio da liberdade de crença, como aconteceu em 1912, com a Quebra de Xangô, onde houveram invasões em terreiros por toda a capital alagoana.Essa barbárie ainda deixa marcas na cultura dos afrodescendentes maceioenses (PALMARES FUNDAÇÃO CULTURAL, 2012).

A Quebra de Xangô aconteceu na noite do dia 1º de fevereiro de 1912, onde ocorreram as invasões, lideradas pela Liga dos Republicanos Combatentes, grupo político que era a oposição ao governador de Alagoas da época, Euclides Malta. O resultado foi o fechamento de diversos terreiros e o banimento de ialorixás e babalorixás do Estado(CORREIO DE ALAGOAS, 2012).

O Ministério Público Federal de São Paulo, por meio da Ação Civil Pública n° 2009.61.00.017604-0, pleiteou perante a Justiça Federal da 3ª Região, Seção Judiciária de São Paulo, que todos os símbolos religiosos nas repartições públicas federais no Estado de São Paulo fossem retirados. A juíza federal Maria Luci Lencastre Ursaia indeferiu liminarmente o pedido citando os mesmos argumentos que o CNJ argumentou em 2007, na ação já tratada neste artigo científico. O Procurador da República Jefferson Aparecido Dias, responsável pela ação disse que: "Quando o Estado ostenta um símbolo religioso de uma determinada religião em uma repartição pública,está discriminado todas as demais, ou mesmo quem não tem religião afrontando o que diz a Constituição" (ESTADÃO, 2009). 

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Pedro Victor Souza. A laicidade do Estado e a retirada de símbolos religiosos de repartições públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3739, 26 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25405. Acesso em: 26 abr. 2024.

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