O estudo da hermenêutica jurídica e da interpretação lamentavelmente não têm recebido o merecido prestígio nos últimos tempos. Há uma preferência geral pela criação de novas leis a qualquer custo. Parece mais fácil e prático. Mas este cenário traz consigo uma problemática muito séria: há um risco de antinomia grave, sem contar o substancial crescimento da montanha infinita de normas jurídicas que existem no país. Uma leitura básica e fundamental sobre o tema em discussão é "Hermenêutica e Aplicação do Direito" do grande mestre Carlos Maximiliano Pereira dos Santos – uma obra clássica do direito brasileiro. (Interessante conhecer também "A pretensão da universalidade hermenêutica" de Jüergen Habermas. Christiano José de Andrade possui um artigo muito interessante sobre o tema: "A contribuição de Habermas para a Hermenêutica Jurídica").
Nos estudo de novas áreas jurídicas é indispensável o aprofundamento em hermenêutica e interpretação de leis. Há uma inópia científica, entrando em cena o empirismo, a fundamentação exclusiva em conteúdos jornalísticos, o "ouvir falar" e para piorar mais ainda: a dominação cultural e o excessivo culto ao direito processual. É necessário joeirar com rigor científico o conteúdo jurídico disponível na Internet e também nos escritos sobre a Internet, tecnologia e o direito.
Saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder. Seu sentido e seu alcance.
Há muito já se dizia: "nem as leis nem os senatus-consultos podem ser escritos de tal maneira que em seu contexto fiquem compreendidos todos os casos em qualquer tempo ocorrentes – neque leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus qui quandoque inciderint comprehendantur". Não é novidade para ninguém que o ordenamento jurídico positivo não têm capacidade para prever todos os casos e inovações que podem surgir ao longo dos anos. Por isso é que sempre se recomendou que ante a impossibilidade de prever todos os casos particulares, o legislador deve pairar nas alturas, fixar princípios e preceitos gerais, de amplo alcance, embora precisos e claros. A norma jurídica do direito evoluído caracteriza-se justamente pela generalidade. Não tendo por objeto situações concretas, tem como estabelecer um padrão de conduta social, um tipo de relação jurídica que poderá ocorrer, não endereçado a ninguém em particular. A conseqüência desta generalidade é a flexibilidade da norma, assim a ordem jurídica poderá se transformar pela interpretação sem a constante interferência do legislador. "A letra da lei permanece, apenas o sentido se adapta às mudanças que a evolução opera na vida social – surgem novas idéias, aplicam-se os mesmos princípios a condições sociais diferentes. O intérprete melhora o texto legal sem lhe alterar a forma; a fim de adaptar aos fatos a regra antiga, ele a subordina às imprevistas necessidades presentes, embora chegue a postergar o pensamento do elaborador prestigioso; deduz corretamente e aplica inovadores conceitos que o legislador não quis, não poderia ter querido exprimir". Eis a razão do scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem – saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder, isto é, o sentido e o alcance respectivos.
A interpretação.
A interpretação como se sabe, visa determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. É sem dúvida uma das mais importantes ferramentas disponíveis na ciência jurídica. Deveria ser atualmente mais prestigiada. Como dizia Wach, Thoel e outros importantes juristas citados por Maximiliano – Pode a lei ser mais sábia do que o legislador; porquanto abrange hipóteses que este não previu. Conclui o mestre: "(...) ao invés de abandonar um vocábulo clássico e preciso, é preferível esclarecer-lhe a significação, variável com a marcha evolutiva do Direito. Termos técnicos suportam as acepções decorrentes do progresso da ciência a que se acham ligados. (...) De fato, não é possível que algumas séries de normas, embora bem elaboradas, sintéticas, espelhem todas as faces da realidade. Por mais hábeis que sejam os elaboradores de um Código, logo depois de promulgado surgem dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos bem redigidos. Uma centena de homens cultos e experimentados seria incapaz de abranger em sua visão lúcida a infinita variedade dos conflitos de interesses entre os homens. Não perdura o acordo estabelecido, entre o texto expresso e as realidades objetivas. Fixou-se o Direito Positivo; porém a vida continua, envolve, desdobra-se em atividades diversas, manifesta-se sob aspectos múltiplos: morais, sociais, econômicos. Transformam-se as situações, interesses e negócios. Surgem fenômenos imprevistos, espalham-se novas idéias, a técnica revela coisas cuja existência ninguém poderia presumir quando o texto foi elaborado. Nem por isso se deve censurar o legislador, nem reformar a sua obra. A ação do tempo é irresistível, não respeita a imobilidade aparente dos Códigos. Aplica-se a letra intata a figuras jurídicas diversas, resolve modernos conflitos de interesses, que o legislador não poderia prever. Se de outra forma se agisse e se ativesse ao pensamento rígido, limitado, primordial, a uma vontade morta e, talvez, sem objeto hoje, porquanto visara a um caso concreto que se não repete na atualidade; então o Direito positivo seria uma remora, obstáculo ao progresso, monólito inútil, firme, duro, imóvel, a atravancar o caminho da civilização, ao invés de o cercar apenas de garantias"[1]. Nesse sentido, a interpretação e a aplicação do direito devem levar em consideração a realidade sócio-cultural atual, para lograr aceitabilidade ou razoabilidade.
Nosso estilo não é misoneísta, ao contrário, defendemos a modernização. Não há que existir receio ou temor diante de novas leis para regular matérias relacionadas com as novas áreas do direito, quando se verificar tecnicamente a sua indispensabilidade. O Ministro do Ruy Rosado de Aguiar Junior, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando participou da audiência pública da Comissão Especial da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei 1.483/99 em 22.03.2001, nesse sentido se manifestou: "(...) Se fôssemos muito rigorosos nesse ponto de vista, sequer o Código de Defesa do Consumidor teria sido elaborado. Naquele tempo também se poderia alegar que tal ponto estava, por exemplo, no Código Civil, e outro, no Código Comercial. Algumas leis novas dispõem sobre o franchising, sobre incorporação, sobre loteamento. Então, a proteção do consumidor, que se consolidou no Código, poderia também não ter surgido, sob a alegação de que não precisamos de lei nova. Há uma realidade nova. A Internet é nova realidade, bem assim o comércio eletrônico, que apresenta aspectos específicos, os quais também necessitam de norma específica de proteção ao consumidor, sob pena de ele, nesse que será o comércio do futuro, ficar com uma lei antiga."
E mais: existem determinados campos do direito onde não há saída. O direito penal é um exemplo clássico, assim como o direito tributário – onde a lei é indispensável para descrever os tipos. Sem lei não há crime, sem lei não há tributo. Além disso, grandes temas jurídicos relacionados com a Internet devem ser resolvidos com urgência: a questão probatória nos meios eletrônicos (no âmbito da validade jurídica dos documentos eletrônicos), a assinatura digital e a certificação, o fenômeno da desmaterialização dos títulos de crédito versus cartularidade (por exemplo).
A Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico – "CÂMARA-E"
(Importante iniciativa para auxiliar a regulamentação do setor)
Estivemos no I Fórum Nacional de Entidades promovido pela Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (www.camara-e.net) na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP em São Paulo no dia 18 de junho de 2001. Foram discutidos os projetos de lei sobre o comércio eletrônico, com destaque para o projeto cujo relator é o Deputado Federal Julio Semeghini que esteve presente no evento, do Senador Lúcio Alcântara também presente, que além de seu projeto teceu comentários sobre o anteprojeto elaborado pelo Conselho Seccional Paulista da OAB. Na oportunidade foi também possível ouvir Jack London (Presidente da Câmara-e), a prestigiosa advogada Esther Donio Bellegarde Nunes (Presidente da ABDI – Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações) e outras importantes autoridades no tema. O consenso é que a ausência de padrões e regulamentação do setor têm impedido a expansão do comércio eletrônico de forma perigosa. De fato, há necessidade de urgente regulamentação: leis quando realmente necessário (e elaboradas de acordo com técnicas legislativas modernas – permitindo flexibilidade, evitando tecnicismo exagerado e antinomias), heterointegração (preenchimento de lacunas com atos normativos inferiores à lei) – regulamentos, resoluções, decretos, etc. A auto-regulamentação também foi objeto de discussões. O costume, ao lado das leis, é fonte direta do nosso sistema jurídico. O direito comercial, por exemplo, têm muito de costume. É lógico que o desenvolvimento natural das coisas auxilia muito nas direções a serem tomadas.
A elaboração de uma lei é tarefa de extrema responsabilidade e seriedade.
É muito comum as leis possuírem por fundamento um abuso recente. Diversos autores consagrados lembram que em regra, os "elaboradores das normas são sugestionados por fatos isolados, nitidamente determinados, que impressionam a opinião pública, embora a linguagem mantenha o tom de idéias gerais, preceito amplo". A elaboração de uma lei é tarefa de extrema responsabilidade e seriedade.
O relatório final do Projeto de Lei nº 1.483/99 – Rel. Dep. Julio Semeghini, já foi apreciado na Câmara dos Deputados. À proposição foi apensado o Projeto de Lei nº 1.589, de 1999, de autoria do Deputado Luciano Pizzato e outros (com base no anteprojeto elaborado pela Seccional Paulista da OAB – que possui entre seus membros, o advogado Luiz Fernando Martins Castro, um dos pioneiros no estudo do Direito da Informática no país e que representou o Brasil no ECOMDER – 1º Congresso Internacional sobre o Comércio Eletrônico, realizado no ano passado em Buenos Aires). A lei modelo da UNCITRAL – United Nations Comission on International Trade Law, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas serviu como paradigma, assim como as diretivas da Comunidade Européia e as leis internas de outros países como a Argentina.
A verdade é que o dever de decidir os litígios sejam quais forem as deficiências do ordenamento jurídico, como bem lembra o mestre Carlos Maximiliano, citando Edmond Picard, força a magistratura a reivindicar a sua velha competência e assim tornar-se, de fato, uma dilatadora e aperfeiçoadora das normas rígidas. Devemos acreditar nos juízes, na competência da magistratura brasileira na solução das tormentosas questões relacionadas com o tema.
Notas
1.MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 16ª. edição. * [Carlos Maximiliano Pereira dos Santos foi Advogado, Deputado Federal, Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Consultor-Geral da República, Deputado à Assembléia Constituinte de 1933-1934, Procurador-Geral da República (1934-1936) e Ministro da Corte Suprema (nomeado em 1936, aposentado em 1941].