4. A CRISE DO DIREITO E AS NOVAS TENDÊNCIAS
Conforme salientado anteriormente, o paradigma, como consistindo em modelos de problema e soluções para uma comunidade de operadores, até a Primeira Guerra Mundial era a lei. E essa lei deveria ter claras hipóteses de incidência, ser abstrata e universal, ao passo que os magistrados deveriam ser passivos e limitar-se a simples silogismos. Contudo, com o passar dos tempos surgiram questões que não podiam ser resolvidas por mera subsunção do caso concreto à lei. Por exemplo, situações envolvendo lacunas legais ou costumes. Com isto, a lei, que, anteriormente, apresentou-se como garantidora de estabilidade e segurança jurídica passou a ser vista como obstáculo, dada a sua inflexibilidade. Consequentemente, os juízes tomaram posição de destaque, desenvolvendo suas próprias soluções para preencher lacunas e antinomias. Conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais e noções vagas pulverizaram-se nos textos legais e foram fundamentais para o desenvolvimento deste novo papel dos juízes, que deixaram de ser meros declaradores da lei e tornaram-se verdadeiros órgãos criadores de direito. O direito, portanto, atravessou, na verdade, um processo de modificação de paradigma da lei para o juiz.
Entretanto, esse processo não restou estático e, como era de se esperar, teve a sua continuidade histórica. Afinal, o direito é um sistema de segunda ordem, ou seja, tem a finalidade de atender a um sistema de primeira ordem, isto é, a sociedade. E, na medida em que o direito passa a não atender mais os escopos para os quais foi criado, é obrigado a acompanhar a evolução social e adotar novos paradigmas.
Atualmente, como já ressaltado, é possível verificar a proliferação de grupos sociais que tendem a buscar a solução de seus conflitos com base em seus próprios códigos deontológicos. Cada grupo acaba por criar, inclusive, seus próprios órgãos deliberativos, a exemplo de conselhos de ética profissional e instituições como a Justiça Desportiva e a Bolsa de Valores. A consequência disto é que a lei e o juiz passam a entrar em cena somente nas hipóteses em que, realmente, faz-se necessária a presença do Estado na qualidade de julgador.
Portanto, com uma análise mais apurada, é possível verificar que a chamada “crise do direito” na pós-modernidade pode não passar de uma mudança de paradigma. Esse paradigma jurídico, que foi da lei ao juiz, nos dias de hoje, vai do juiz para o caso concreto. Isto é, o Poder Judiciário apenas deve atuar em casos específicos, o que não diminuiu a sua relevância. Todavia, na atualidade, há um repúdio às formulas vazias dos conceitos abertos e cláusulas gerais, uma vez que se busca, novamente, a segurança jurídica, debilitada pela arbitrariedade das autoridades judicantes em preenchê-las de acordo com suas próprias convicções. A consequência disto é a multiplicidade de decisões judiciais díspares e desuniformes, que geram uma ampla sensação de instabilidade, enfraquecem o Poder Judiciário e acabam por levar os indivíduos, cada vez mais, a desejarem enquadrar-se em determinadas categorias com a finalidade de, efetivamente, alcançarem uma fuga dos provimentos jurisdicionais.
Nesse sentido, é certo que a solução de conflitos dentro de grupos é uma tendência inevitável, fruto de uma evolução social. O Poder Judiciário passa a ocupar uma posição que, apesar de ainda relevante, é residual. Entretanto, a falta de segurança jurídica gerada por um sistema já desatualizado e incompatível com a realidade faz com que haja uma verdadeira fuga e repúdio em relação às decisões judiciais e, isto sim, é indesejável para a instituição, uma vez que pode, no futuro, levá-la a obsolescência20.
5. A CODIFICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
O código civil brasileiro de 1916 foi, inegavelmente, influenciado pelo código civil alemão. Já em 1845, havia aclamações, na Ordem dos Advogados Brasileiros, no sentido de remodelação do código civil nacional, que era formado por leis esparsas e numerosas. Em 1855, Teixeira de Freitas foi encarregado de consolidar a legislação civil e, então, redigir um código de normas sobre a matéria. Contudo, foi substituído por outros ilustres juristas (inclusive, Antonio Coelho Rodrigues dos Santos, que redigiu parte do projeto em Genebra, determinando a influência alemã em seu trabalho), até que foi finalizado por Clóvis Beviláqua e aprovado em 1915, entrando em vigor em primeiro de janeiro de 1916. Caracterizou-se por um forte liberalismo, de interesse das classes dominantes, garantindo o direito de propriedade e assegurando a ampla liberdade contratual. De acordo com o doutrinador Francisco Amaral, traduziu o sistema normativo de um regime capitalista colonial21.
Contudo, no decorrer do tempo, também o Brasil foi alvo das transformações sociais que levaram à proliferação de leis especiais em torno das principais instituições de direito privado. Além disso, houve deslocamento de matérias para o âmbito constitucional, o que determinou a redução do código civil a complexo normativo supletivo e residual. É aprovado, assim, o Código Civil de 2002, como tentativa de restaurar o código civil como fonte principal de normas e princípios reguladores das relações de âmbito privado. Para isso foram adotadas algumas medidas, entre elas, a atualização de institutos e a redistribuição da matéria conforme sistemática mais moderna, a manutenção do código civil como lei básica, mas não exclusiva, o aproveitamento de projetos e trabalhos anteriores, a revisão de matérias previstas em leis especiais após 1916, a adoção de contribuições da jurisprudência e, por fim, a exclusão de matérias de ordem processual22.
Apesar dessa tentativa, não se pode negar que o Código Civil de 2002 é um exemplo de paradigma ultrapassado. Sua elaboração verificou-se, essencialmente, entre 1969 e 1972, época em que o Estado era forte, e, por isso, exige, inutilmente, que determinados tipos de conflitos, que poderiam, tranquilamente, ser resolvidos fora do âmbito do Poder Judiciário, sejam decididos por juízes togados ou, ao menos, que haja sua intervenção. Além disso, o Código Civil de 2002 prestigia diversos tipos de cláusulas gerais e conceitos vagos, sem que aja qualquer tipo de diretriz material para identificação ou esclarecimento desses conceitos, que acabam sendo preenchidos de acordo com concepções pessoais de cada julgador. Adicionalmente, buscou-se, com o Código Civil de 2002, de todas as formas, garantir a unidade da disciplina civil em um mesmo diploma legal, o que já se demonstrou ser inviável. Por fim, todo esse esforço pela unidade resultou em uma ausência de qualquer tipo de participação popular na elaboração da lei que regularia, substancialmente, a vida dos cidadãos em seu âmbito privado. Com mais de 2.000 artigos sobre temas variados e complexos, é de se imaginar que pouquíssimos cidadãos leram inteiramente o projeto. Aliás, muito provavelmente, nem mesmo os senadores o fizeram, uma vez que, no Senado, o projeto foi aprovado por voto de liderança.
Portanto, para que, na atualidade, seja possível conceber algum tipo de codificação, é necessária a observância de, pelo menos, algumas diretrizes. Primeiramente, não se pode mais visar uma unificação radical de toda a matéria civil, tendo em vista a hipercomplexibilidade. Nesse sentido, não deve haver um único código, mas vários, regulando cada qual uma matéria específica. Haveria, dessa maneira, um fracionamento que permitiria a participação popular na elaboração da lei, o que promoveria uma “inter-atividade” na produção da norma. Isto é, em havendo um código específico para determinada matéria, torna-se mais viável o conhecimento da opinião dos interessados sobre o assunto, o que possibilita uma codificação de modo “inter-ativo”, participativo e democrático. Por fim, é preciso aceitar a desconstrução da razão como fator positivo. Afinal, o abandono de dogmas jurídicos pautados na lógica, supostamente racionais, não significa uma consagração da irracionalidade, mas, sim, prestigiar, ao lado da razão, a intuição de justiça, uma vez que o objetivo do julgamento é justamente resolver questões existenciais da pessoa humana e contendas que envolvem suas relações recíprocas23.
CONCLUSÃO
As transformações sociais ocorridas após a Primeira Grande Guerra tiveram forte impacto sobre a clássica forma de codificação do direito civil, adotada na Idade Moderna com a finalidade de evitar ingerências indevidas do Estado na vida privada dos indivíduos. Novos fatores, como a desconstrução da razão, a hipercomplexidade e a inter-ação, evidenciaram, de maneira contundente, que este modelo de sistematização tornou-se obsoleto e inadequado para atender interesses e necessidades da sociedade. Mais que isso, tornou-se antidemocrática e atentatória à própria dignidade da pessoa humana, valor máximo, atualmente, consagrado em praticamente todos os ordenamentos jurídicos do hemisfério ocidental.
Pelo princípio da dignidade da pessoa humana, cada ser humano é único, possui suas próprias particularidades e tem valor em si mesmo. Essa perspectiva distancia-se da igualdade clássica, em que todos os indivíduos são considerados iguais perante lei, sem distinção. Essa nova concepção levou os cidadãos a inserirem-se em determinadas categorias com interesses próprios, visando estatutos jurídicos específicos para resguardá-los. Consequentemente, houve o surgimento de diversas leis especiais, paralelas ao diploma civil, para proteger e regular determinados assuntos e grupos. Leis estas com princípios e características próprias.
Além disso, os cidadãos, repelindo a insegurança e a instabilidade de decisões judiciais baseadas em conceitos vagos, cláusulas abertas e princípios gerais, passaram a buscar soluções fora do Poder Judiciário, criando seus próprios órgãos deliberativos. Agravou esse repúdio, ainda, a falta de participação popular e democrática na elaboração das leis, que se torna impossível diante de códigos civis que abordam um incontável número de matérias de alta complexidade.
Adicionalmente, a revolução da tecnologia, da medicina, da biologia e dos meios de comunicação ampliou, de forma estrondosa, o âmbito temático do direito civil. Este fenômeno fez com que a unificação das leis civis em um diploma fundamental, norteador de toda a matéria, fosse cada vez mais inviável. Afinal, diante da rapidez das transformações sociais, é impossível a atualização de todo um código de leis na mesma velocidade, o que faz com que esteja sempre um passo atrás das demandas da população.
Por fim, a desconstrução da razão afasta os pilares, em tese, lógicos, sobre os quais foram construídas as codificações clássicas. As normas, assim como as decisões dos magistrados, deviam ser observadas em virtude de uma suposta lógica do sistema, que garantia segurança e estabilidade. Contudo, a constatação de que tais premissas constituem pilares frágeis faz emergir não uma irracionalidade, mas, a necessidade de colocar-se ao lado da razão, a intuição pelo justo.
Sendo assim, é preciso que o direito, mais uma vez, readapte-se para dar um próximo passo rumo a sua continuidade e evolução histórica. Para isso, os códigos extensos e complexos deveriam ser substituídos por códigos específicos quanto à matéria e quanto ao sujeito. Dessa forma, seria possível uma efetiva participação popular na elaboração de normas de seu interesse, havendo, nesse sentido, uma redemocratização do direito através da inter-atividade. Assim, haveria, ainda, uma acomodação em relação à hipercomplexidade, uma vez que seria mais simples e eficaz regulamentar a amplíssima esfera temática civil. O código civil seria, dessa maneira, reduzido a uma legislação supletiva e secundária em face da Constituição da República e de códigos específicos. Além disso, apenas aqueles casos em que se faz indispensável a presença do Estado-juiz seriam encaminhados ao Poder Judiciário. Tal mudança não retira do Poder Judiciário a sua hierarquia ou o seu valor. Trata-se, apenas, de uma alteração de paradigma, que vem migrando da lei e do juiz para o caso concreto.
Enfim, mudanças podem causar estranheza, perplexidade e até mesmo resistência. Contudo, todo processo de evolução exige adaptações e, consequentemente, mudanças. Evitá-las ou postergá-las significa atravancar o desenvolvimento natural da sociedade e, ao lado desta, do próprio direito. Por isso, é preciso abandonar posturas arraigadas à tradição clássica para permitir o desabrochar de uma sistemática mais útil, eficaz, moderna e justa.
Notas
1 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 133-137.
2 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 55.
3 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 139- 157.
4 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 20. ed. Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos Brito (atualizadores). Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 47.
5 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 158-159.
6 Op. cit. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 49.
7 Op. cit. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado, p. 59.
8 Op. cit. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 50.
9 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 188.
10 Op. cit. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 53.
11 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 186.
12 Op. cit. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado, p. 55-56.
13 Op. cit. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 53.
14 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 191-193.
15 Op. cit. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 54.
16 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 191-193.
17 Op. cit. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado, p. 56.
18 Op. cit. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado, p. 57.
19 Op. cit. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, p. 54.
20 Op. cit. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado, p. 60-61.
21 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 166-167.
22 Op. cit. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução, p. 169-175.
23Op. cit. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado, p. 62-63.