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Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade

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10/12/2013 às 12:25
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CAPÍTUO II -LEGÍTIMA DEFESA

01 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS

No direito grego, não se admitia, em qualquer modo, o filho ou o escravo reagirem contra os pais ou patrão, respectivamente, nem mesmo defendendo-se. Em tais casos, o direito sacrale e o direito da polis puniam o perverso uso da autoridade. Na Grécia, havia pluralidade de ordenamentos jurídicos, mas não reconheciam ao ofendido o direito de afastar, com meios próprios e imediatos, a injusta violência. (Cf. PAOLI, Enrico. Nuovo Digesto Italiano. Torino: U.T.E.T., 1938, XVl, v. 4, p.826).

No direito romano, a legítima defesa tinha uma aplicação muito ampla do que no direito moderno e tanto era admitida a legítima defesa preventiva (a admitida atualmente) que visa à conservação do status quo, quanto a reativa, visando ao restabelecimento do status quo.

A defesa privada preventiva (somente essa é adotada pelo direito moderno) era admitida de modo muito geral no direito romano primitivo e clássico, sendo conservada no direito justiniano. Essa encontrava sua formulação no adágio até hoje citado pela doutrina vim vi repellere licet (é permitido repelir a força pela força), regra essa de caráter geral que encontrava sua aplicação mais rígida no tocante à defesa da pessoa. Tinha como pressupostos a injustiça da agressão, atualidade dessa necessidade de reação violenta e moderação do contra-ataque.

No período da jurisprudência clássica, doutrina autorizada, seguida por ULPIANO, deduzia que a Lei das XXll Tábuas não fosse mais aplicada e que não fosse também lícito o homicídio pelo fur nocturnus, quando não tivesse sido possível a captura. (Cf. ARU, Luigi. Nuovo Digesto Italiano. Torino:  U.T.E.T., 1938, XVll, v. 4, p. 827).

Nas pegadas do direito romano, seguia o direito canônico, pondo relevo à moderação da repulsa. No direito secular intermédio, foi ampliada à proteção dos bens patrimoniais, cabendo a repulsa não só em defesa da vida e do corpo, mas também em defesa do que é seu (non solum pro defensione vitae, et corporis sui, sed etiam pro defensione rerum suarum). (Cf. HUNGRIA, Nelson; Fragoso, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. R. Janeiro: Forense, 1978, v. l, t. Il, p. 281, 283).

02 – CONCEITO

O Código Civil brasileiro não conceitua o instituto da legítima defesa, fato que nos remete à norma penal e à doutrina. Para KÖHLER, ela “Não é, em rigor, um direito distinto, e, sim, uma faculdade, que emana, diretamente, da personalidade, e é da mesma categoria das faculdades de exercer o direito e dele gozar”. (APUD BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos estados unidos do Brasil. R. Janeiro: Ed. Francisco Alves, 4ª. ed., v. l, 1931, p. 420).

A indagação sobre a sua natureza jurídica, ou seja, se existe direito subjetivo à legítima defesa é formulado por PONTES DE MIRANDA e conclui negativamente, adotando a teoria da extrajuridicidade, pois a regra jurídica é norma pré-excludente, quer dizer, ela diz que “Havendo X, esse X não permite que o ato seja contrário a direito”, não entrando no mundo jurídico como ato ilícito. E mais: se, havendo X e pré-excluindo-se a contrariedade a direito, o ato não entra no mundo jurídico como ato lícito. Aduz que a legítima defesa se passa no mundo fático, não consistindo um direito subjetivo; ela “Opera fora do mundo jurídico, onde se compõem suportes fáticos, e exatamente um deles, o do ato ilícito, por ela ter ocorrido, não se compôs”. Exemplifica: “De um lado, há o ato, contrário a direito, de A, ato que pode não entrar no mundo jurídico (e.g., se é do louco); do outro, o ato presente de B, que seria contrário a direito, se o ato de A não ocorresse, ou se fosse  indispensável para afastar todo ou parte do ato de A”. Aquele que defende legitimamente, algum direito, absoluto ou relativo, da personalidade ou não, age de onde está o agente, no mundo fático. (Op. Cit. P p. p. 279-281).

 Estabelecendo um paralelo entre a legítima defesa e o exercício do direito, pontifica o autor que, quando defendo um direito contra o atacante, exerço um direito (de personalidade) à liberdade, e “O valor do interesse do atacado, frente aos meus, é contemplado por mim, como titular de outro direito que aquele que foi atacado, e em relação com aquele que pode ser ferido pela defesa”. Existe, no caso, coordenação e não subordinação às regras do exercício dos direitos atacados. “A defesa do direito é assim não subordinada, mas coordenada, ao conceito de exercício do direito. Na legítima defesa, não: é ela coordenada ao conceito de exercício do direito, não subordinada a ele. Não há direito de legítima defesa, porque defender-se, na ordem fática, é como correr, comer, etc.” (Op. Cit., p. 289).

Ocorre que a doutrina, à exceção de renomados juristas, confrontados por PONTES, como FISCHER, VON TUHR, OERTMANN, BIERMANN, etc, não se debruça sobre essa indagação, dando como certa a natureza jurídica de direito subjetivo. Podemos percebê-la em DELIYANNIS:

“Un autre moyen exceptionel, par lequel l’ordre juridique réagit contre une conduite déterminée, est la  reconnaissance expresse d’un droit de légitime défense  contre cette conduite”. (DELIYANNIS, J. Op. Cit., p. 86).

A legítima defesa é corolário do direito à segurança de todos e reconhecido pelas legislações. Toda pessoa almeja sua segurança e a de seus bens e, quando os tem atacados por outrem, é-lhe assegurada uma reparação. Porém, aquele interesse à segurança não se justifica somente após o ato consumado, mediante indenização do dano e é, então, que a ordem jurídica intervém, visto que o indivíduo não deseja ver seus bens lesados, aspecto mais importante do que o caráter satisfatório, compensatório ou punitivo, encerrado na indenização.

É assente que a defesa privada no estado civilizado sofre proibição, todavia, por mais aperfeiçoado seja o aparelhamento protetor do direito, ainda assim não é ele onipresente para socorrer todas as ameaças de violação. Razão pela qual a ordem jurídica legitima a atuação do indivíduo, facultando-lhe defender a si ou a terceiro e seus bens jurídicos, em situações de iminente perigo. Dá-se contra ataques injustos e deve ser exercida dentro de certos limites, para a conservação dos direitos. Está aí, portanto o fundamento da legítima defesa. E, se não há ato ilícito, consequência alguma dele resulta, ou seja, a responsabilidade por dano ocasionado, e, só quando atinge terceiro ou se dá fora dos limites da defesa, admite-se o nascimento da obrigação, conforme será visto posteriormente.

Dentre as várias teorias jurídicas que fundamentam a legítima defesa (legitimidade absoluta- ela é um direito e um dever - IHERING; teoria do direito subjetivo público, de BINDING - é direito subjetivo público outorgado a todo indivíduo e que se harmoniza com a função do Estado; teoria da ausência da injuridicidade da ação defensiva - a defesa coincide com o fim do direito que é a incolumidade dos bens ou interesses, que coloca sob sua tutela), segundo HUNGRIA essa última é a mais aceitável e é a consagrada pelo nosso Código Penal. (Cf.HUNGRIA, Nelson; Fragoso, Heleno. Op. Cit., p. 281-283).

Por ser a noção de legítima defesa unitária, vale recorrer das disposições em codificações diversas. Nosso Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848, de 1940, com a redação dada pela Lei n. 7.209, de 1984, modificadora da Parte Geral) traça suas linhas conceituais, in verbis:

“Art. 25- Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

A expressão direito seu ou de outrem demonstra a amplitude do bem protegido, que pode recair tanto na própria pessoa, em outrem e nos seus bens, sendo esses tanto materiais quanto extrapatrimoniais, direitos hoje reconhecidos pela Carta Magna (honra, imagem, intimidade), artigo 5º., X, e Código Civil, arts. 11-21).

O próprio Código Civil, além dessa proteção genérica, prevê outra específica, precisamente o desforço in continenti na tutela da posse, desde que o possuidor o pratique logo:

“Art. 1210, parágrafo 1º - O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se, ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo;  Os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”.

Vale observar que PONTES DE MIRANDA só admite a legítima defesa no caso de turbação; na situação do esbulhado, é espécie de justiça privada (julgamento de mão-própria). (Cf. Op. Cit., p. 333).

No direito francês, a construção jurisprudência do século XX admitia concepção ampla de legítima defesa, incluindo a reputação:

“...Une menace aux biens suffit pour légitimer la défense, à condition bien entendu que cette défense n’excède pas l’attaque; une simple menace à la réputation peut être écartée en causant un dommage à celui qui cherche à tenir cette réputation...” (MAZEAUD, Henri et MAZEAU, Léon. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. Paris: Sirey, 1934, t. l, p. 464).  (Sobre legitima defesa da honra, confira nossa obra  Responsabilidade Civil por Dano à Honra, 2010 in : www.jus.com.br)

Para SAVATIER, a defesa pode ser dirigida contra agressão da integridade corporal de alguém, seja contra seus interesses morais, seja contra seus bens. (Traité de la responsabilité civile. Paris: LGDJ, 1939, t. l, p. 74).

A regra de ULPIANO vim vi repellere licet encerra a aplicação da auctoritas monastica. Os limites e extensão do direito de defesa são variáveis no tempo, entendendo-se, hodiernamente, aplicabilidade a todos os direitos, nem sendo mesmo necessária agressão ao direito, bastando uma ofensa que contrarie o direito.

O direito italiano (Código Civil, art. 2044) não se reporta às expressões consignadas no Código Penal Rocco, mas àquela do sistema ab-rogado, dizendo explicitamente da legítima defesa de si ou de outrem. Também aí surgiu a indagação se se estendia a bens e a outros direitos que não se ligassem à pessoa; conheceu-se a sua aplicação ampla, pela razão, entre outras, de que não parecia admissível que se quisesse dar no Código Civil de 1942 uma noção ultrapassada de legítima defesa. (Cf. D’AMELIO, M.; LA LUMIA, I.; BERNARDINIS, A. ; BRASIELO, T. Codice civile-libro delle oblligazioni. Firenze: Ed. G. Barbèra, 1943, v. lll, p. 240).

A justificação para a previsão jurídica da legítima defesa reside no fato, anteriormente mencionado, de que nem sempre é possível ao Estado evitar a violação de um direito, que poderá ser mesmo irreparável, fazendo-se necessário o indivíduo auto defender-se a evitar atentados contra sua pessoa, seus bens e contra outrem ou seus bens. A força é repelida pela força, desde que não sejam ultrapassados os limites da justa defesa. Nas mesmas condições em que é admitida a defesa própria, é admitida a alheia. Face à importância em prevenir todos os atos ilícitos, o Estado não deve retirar ao particular a faculdade, usando-se da força, e em prejuízo do agressor, repelir o dano que o ameaça em certo momento. Aceitando a legítima defesa de terceiro, a lei transforma cada cidadão em defensor do direito frente a quem, por meio de ato ilícito, coloca-se fora de sua proteção.

O ameaçado pode afastar de si o perigo com ofensa das pessoas ou das coisas das quais provém o perigo.

Para sintetizar a justificação de legítima defesa, lançamos mão da lição de CARVALHO SANTOS:

“O indivíduo exerce um direito ao defender sua pessoa ou seus bens, direito que emana diretamente da personalidade, no consenso geral dos escritores, e que lhe é outorgado ainda, implicitamente, pela sociedade, que, embora organizada satisfatoriamente, não pode, pelos seus órgãos protetores, evitar todas as violações do direito”. (CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil brasileiro interpretado. Rio Janeiro: Ed. Calvino Filho, parte geral, 1934, v. lll, p. 333).

Portanto, a ofensa de reação é lícita, não havendo nela direito lesionado; o que ocorre é a ação exercitada jure por parte de quem lesa, unicamente a fim de evitar dano/injúria iminente.

03 - LEGÍTIMA DEFESA E AUTOTUTELA OU JUSTIÇA DE MÃO-PRÓPRIA

Ambas não se confundem, por possuírem fundamentos diversos. Observa  PONTES DE MIRANDA que a autodefesa é a manutenção do estado presente, contra ataque contrário a direito (legítima defesa) ou por força física (estado de necessidade). A legítima defesa seria espécie do gênero autodefesa. A autotutela é a justiça de mão própria.  Na “Legítima defesa há, do outro lado, o ato presente, a contrariedade a direito, por parte desse ato; do lado do que se defende, a defesa (ato) indispensável ao afastamento do ataque, ou de parte dele - indispensabilidade que se há de apreciar objetivamente...”. Na autotutela ou justiça de mão própria “Há realização do direito objetivo e estabelecimento do estado de fato, que corresponda à incidência de regra jurídica, é a aplicação da lei pelo próprio interessado”. Na legítima defesa “Há ataque contra ataque”; ela “É sempre permitida (princípio da permissão da defesa própria); a justiça de mão própria, não: em princípio, é proibida, por existir o princípio do monopólio estatal”. Adverte sobre a confusão de muitos autores, em referência ao artigo 502 (atual 1210, parágrafo 1º), do Código Civil brasileiro, sobre a defesa da turbação da posse, que se caracteriza como legítima defesa e não justiça de mão-própria. (Cf. Op. Cit., p. 274, 275 e 321).

Igual distinção entre os dois institutos é feita por CLÓVIS BEVILÁQUA:

“A autodefesa destina-se a evitar o mal da violação do direito. A autossatisfação ou justiça particular propõe-se a restaurar o direito, que a agressão injusta fez sucumbir”.  Entende ser o desforço in continenti, no caso de esbulho da posse (anterior art. 502 C.Civil brasileiro), caso de justiça privada ou autossatisfação, pois a ofensa já está consumada. (Op. cit., V. I, 1931, p. 421).                     

04 - LEGÍTIMA DEFESA E ESTADO DE NECESSIDADE – PARALELISMO

Antiga doutrina por muito tempo confundiu os dois institutos. A legítima defesa e o estado de necessidade assentam-se em princípio comum: o direito de prejudicar, diferenciando-se quanto ao momento da consubstanciação do ato. No estado de necessidade, ocorre uma ação, ao passo que na legítima defesa há uma reação. Identificam-se quanto às circunstâncias de inevitabilidade e proporcionalidade do ato às suas finalidades. Enquanto na legítima defesa, a situação de perigo nasce da injusta agressão, no estado de necessidade ele resulta seja de caso fortuito, natural ou acidental, criado pelo próprio prejudicado ou também por terceiro. No estado de necessidade, o indivíduo erige-se como árbitro de uma situação e, diante de tal perigo, e não apenas possível, da ocorrência de um dano grave à sua pessoa, aos seus bens econômicos ou não econômicos ou a terceiro, dano esse não possível de ser evitado, ao qual não tenha dado voluntariamente causa, sacrifica o direito de alguém não culpado.

Na legítima defesa, outrora confundida com o estado de necessidade, há também o perigo em iguais circunstâncias, qual seja, iminente, acidental, inevitável, cabendo ao autor a escolha de sofrer o mal ou causá-lo; o agredido é o provocador e o perigo resulta da atividade humana. Já no estado de necessidade, o conflito entre os interesses próprios e alheios geralmente surge de caso fortuito ou acidente natural ou pela atividade do homem.

 Ao contrário da legítima defesa, onde não existe legítima defesa contra ato de legítima defesa, admite-se o estado de necessidade contra ato em estado de necessidade. A distinção de tratamento reside no fato de que, enquanto na legítima defesa a ação defensiva (reação) é motivada por agressão injusta, no estado de necessidade a ação defensiva pode ser dirigida contra um inocente. Destarte, na situação de dois náufragos e havendo uma só tábua de salvação, nenhum deles pode invocar a legítima defesa contra o outro, mas sim o estado de necessidade. (Cf. TOLEDO, Francisco A. Op. cit., p. 183).

O renomado CHIRONI sintetiza as diferenças já apontadas, embora registre isenção de imputabilidade ao agente do ato necessário:

“El estado de necesidad que la fuerza mayor supone despoja al acto del agente de la libertad de elegir y de querer que aquel debió de tener para realizarlo, quita la imputabilidad y elimina la responsabilidad;  en la legítima defesa... el acto se ejecuta con pleno derecho, al  cumplirlo rechaza la amenaza de una ofensa justamente tenida reobrando contra ella.” (CHIRONI, G.P. La culpa en el derecho civil moderno.Trad. 2ª. ed. por C. Bernaldo de Quirós. Madrid: Editorial Reus. T.ll, 1928, p.434).

Distinções entre os dois institutos deste tópico estão contidas no Nuovo Digesto Italiano (ALTAVILLA, Enrico. Torino: U.T.E.T., 1939, v. XVll, p. 966).

Traçando as dissimilações, consigna SERPA LOPES:

“...Enquanto a legítima defesa  é um ato cuja licitude está na proporção da ilicitude do ataque, o estado de necessidade pressupõe um perigo decorrente de uma causa não culposa, por parte do prejudicado. Na legítima defesa, repele-se um ataque injusto; no estado de necessidade, prejudica-se para evitar mal maior”. (SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. 6ª ed. R. Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1988., v. l, p. 486).

Diferem-se, outrossim, porquanto a legítima defesa, ato lícito, é, como tal, excludente da responsabilidade civil, o estado de necessidade, embora lícito, importa em indenização de prejuízos, expressamente prevista (artigos 929 e 930 do Código Civil brasileiro), se o dono da coisa não for culpado do perigo, quando o prejuízo ocorrer por culpa de terceiro, embora assista o direito de regresso ao agente em estado de necessidade.

Quando o ato atinge terceiro inocente, tanto na legítima defesa quanto no estado de necessidade, haverá a obrigação de indenizar. 

Em ambos, há autodefesa de interesses próprios ou de outrem. Na legítima defesa há, contra esses interesses, ato contrário ao direito; no estado de necessidade não há outro interesse contra os interesses ou outro direito contra direito. No estado de necessidade o dano é causado ao lesado sem a sua participação (provocação ou facilitação); na legítima defesa, o dano causado ao lesado resulta sempre de ato provocado por ele.

Examinados os pressupostos dos institutos sub cogitationis, podemos resumir: na legítima defesa há perigo iminente, inevitável e acidental, resultante de ato humano, donde o autor da lesão se vê na situação de causar um mal ou sofrê-lo. O ato é praticado pelo lesado, ou seja, o agredido provocou a situação repelida; no estado de necessidade, a situação perigosa é causada tanto pela atividade do homem, quanto por caso fortuito.

Enquanto na legítima defesa ocorre ataque a um bem tutelado, no estado de necessidade não existe agressão, pois cada um dos envolvidos defende seu direito. Neste, a ação é dirigida contra outrem sem relação com o fato; na legítima defesa, ocorre reação contra o agressor.

MAGALHÃES NORONHA exemplifica: “Se um ciclista vê que um automóvel está para ir de encontro a ele e lança mão de qualquer meio contra o chofer, para que se detenha na marcha, age em legítima defesa; se, entretanto, precipita sua bicicleta para o passeio ferindo um transeunte, atua em estado de necessidade em relação a este”. (NORONHA, E. Magalhães Direito penal. Saraiva, 1981, v. l, p. 209 e Ed. Rideel, 2009, p. 200).

Na lição do mestre AGUIAR DIAS, a noção dos dois institutos é posta dentro de uma mesma visão, embora reconheça que eles se diferem. “Cumpre notar que, entretanto, o estado de necessidade não se confunde com a legítima defesa. Esta é espécie, aquele é gênero. A legítima defesa é um estado de necessidade qualificado”. (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. R. Janeiro: Forense, 5ª. ed., 1973, v. ll, p. 292).

05 - ESTADO DE COAÇÃO

Ao contrário da legítima defesa, aqui o autor causa mal ao prejudicado (coagido), não com o fim de evitar mal para si ou a terceiro, tampouco age mediante pressão de perigo grave, iminente, inevitável e acidental. Age por interesse ilegítimo, pressionando o coagido, mediante ameaça. Fica o coagido com a opção de procedimento, colaborando para sua própria lesão, ao não resistir, diversamente da legítima defesa, cuja alternativa de reação ou não cabe ao autor da lesão.

06 - LEGÍTIMA DEFESA CONTRA ATO EM ESTADO DE NECESSIDADE

Na vivência jurídica, deparamo-nos com muitas situações que a doutrina poucas vezes esclarece. De rigor observar-se que, sendo ato de necessidade, não existe legítima defesa contra o mesmo, apenas contra o excesso ou contra o ato de necessidade putativo.

Havendo oposição do dono da coisa, há atuação contra direito e, nesse caso, o que vai remover o perigo poderá exercer a força, que não é, então, proibida, ou argui, posteriormente, a resistência do dono da coisa como ilícito, (Cf. PONTES DE MIRANDA. Op. Cit., p. 303).

07 - TUTELA PREVENTIVA E LEGÍTIMA DEFESA

Conforme veementemente enfocado por PONTES DE MIRANDA, fundado na teoria da extrajuridicidade, a regra jurídica sobre legítima defesa é pré-excludente de ilicitude; consequentemente, sua incidência localiza-se no mundo fático, fora do mundo jurídico, antes da juridicização dos fatos. Já a tutela preventiva cautelar encontra-se no direito e se faz presente, através de certos meios, como o arresto, o sequestro, o depósito, a penhora pelo credor de mão-própria (quando não há tempo de invocar-se a prestação jurisdicional). Aqui não se trata de legítima defesa, já que a justificação desta é a falta de rápida intervenção ou inadequada intervenção policial, para evitar o dano e não a ausência de proteção judicial. (Cf. Op. Cit., p. 281).

08 - LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA

Também denominada de descriminante putativa, imaginária ou irreal, caracteriza-se pelo erro de fato sobre a existência de estado de legítima defesa. Equivocadamente, o indivíduo supõe haver os elementos pré-excludentes do suporte fático do ato ilícito. Está fora do campo da verdadeira legítima defesa e não se faz necessária qualquer defesa.

Em verdade, não é legítima defesa, se houve negligência na apreciação errada dos fatos. No caso de legítima defesa putativa, em matéria penal, dependendo das circunstâncias, ocorre a figura do erro escusável, excludente do dolo, ou um erro decorrente de culpa, caracterizador do crime culposo. (Cf. ASSIS TOLEDO. Op. Cit., p. 260). Segundo o conteúdo do Código, não haverá isenção de pena se o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo ( art. 20, § 1º., C. Penal).

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“Não existe dolo no pseudo defendente e trata-se, portanto, de dirimente”. O sujeito fica isento de pena, por agir imaginando que sua ação está de acordo com o direito, logo, sem consciência da antijuridicidade ou sem dolo. Nos termos do art. 20, & 1º. C.P., o erro deve ser plenamente justificado pelas circunstâncias: é necessário que seja invencível ou escusável, pois, não se caracterizando como tal, haverá culpa, praticando o agente o delito culposo. A legítima defesa putativa é incompatível com o dolo, porém poderá ocorrer excesso doloso. (Cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. R. Janeiro: Saraiva, 1990, V. I, p. 202 e ed. de 2009).

Na lição de AURELIO CANDIAN (direito italiano), “É aplicabile la giustificante della difesa legitima : e ciò perchè un testo di quel Codice dispone che, se l’agente crede per errore alla esistenza di circostanze excludenti della pena, queste sono sempre valutate a favore di lui (59 c. 3 p.)”.

Sobre essa aplicação em matéria cível, sempre com base nos princípios de aplicacão e interpretação da lei, entende que essa disposição é aplicável; não existindo aqui um princípio diverso que seja mais próximo à espécie. (CANDIAN, Aurelio. Nozioni istituzionali di diritti privato. Milano: Ed. Dtt. A . Giuffré, 1946, p. 138). Não se trata mais de excludente de ilicitude, mas de responsabilidade, salvo se o erro decorre de culpa do agente.

A legítima defesa putativa não se confunde com a legítima defesa excessiva (excesso de defesa); ambos não se incluem na configuração da verdadeira legítima defesa, mas, enquanto no  excesso ocorre inicialmente uma situação de legítima defesa, na legítima defesa  putativa  a agressão é imaginária, havendo suposição errônea, e não há defesa contra um perigo; há um suposto agredido que é o próprio ofensor, e este supõe legítimo seu ataque.

09 – OMISSÃO

Diz-se que a agressão deve consistir em atividade positiva, capaz de pôr em perigo a pessoa ou seus bens e que o ataque por omissão consistiria inadimplemento de obrigação. A PONTES DE MIRANDA o assunto merece maior atenção e cita um exemplo de atividade negativa que permite a legítima defesa. A contratou com B fechar a comporta, no seu terreno, em certa hora, diariamente, para que pudesse desligar a energia elétrica, e em certo dia B não pratica o ato ajustado, colocando em risco a vida dos operários ou bens de A. Sua atitude é negativa, é omissão por inadimplemento de obrigação. Seria injusto recusar a A  a legítima defesa, o qual poderá ingressar no terreno alheio e fechar a comporta. (Cf. Op. Cit., p. 286).

Lembra ORLANDO GOMES, com apoio em VON THUR, que o nexo causal, em se tratando de conduta omissiva, não deve ser tomado nas mesmas condições do fato comissivo. “O nexo causal pode estabelecer-se entre uma abstenção e um dano, no pressuposto de que aquele que não evita um fato danoso deve ser equiparado, para os efeitos jurídicos, a quem o pratica. Mas não se deve levar essa regra às últimas consequências, só se justificando sua aplicação quando aquele que se abstém, além de poder impedir o dano, estiver na obrigação de evitá-lo”. (Obrigações. 7ª. ed., R. Janeiro, Forense, 1984, p. 333).

LUDWIG ENNECCERUS não admite o ataque por omissão, como no caso de descumprimento de uma obrigação. (Cf. ENNECCERUS, Ludwig. Derecho Civil. Parte general. Barcelona: Bosch, 1944, v. II, 1ª. ed., p.535).

10 - PRESSUPOSTOS DA LEGÍTIMA DEFESA

Os Códigos Civis estrangeiros e o nosso, ao tratarem da legítima defesa, colocaram a figura, sem entrar nos detalhes. Do conceito extraído do direito penal, podemos destacar os seguintes requisitos ou pressupostos, sem os quais não haverá a legítima defesa, ou seja, o ato passaria a antijurídico. A doutrina é unânime quanto aos apontados pressupostos.

- A agressão deve ser atual ou iminente; prestes a ser levada a cabo. Deve haver uma situação de perigo de um dano potencial, não bastando apenas existir certa apreensão ou ameaça de ataque futuro. Pode até ser preparada contra ataque futuro, mas a reação deve aguardar a ameaça; dela exclui-se o ato consumado e, excepcionalmente, pode ocorrer por omissão. Não é exigida a necessidade inevitável da defesa, mas a atualidade ou iminência do ato agressivo.

Por agressão entende-se qualquer atividade, violenta ou não, que provoque uma ofensa, mas que não seja uma simples ameaça desacompanhada de perigo concreto e imediato, nem sendo mesmo necessário que a agressão seja dolosa; basta a culpa.

Exigindo o Código Penal (o que também prevalece para o direito civil), apenas a atualidade ou iminência da agressão, não requer que o reagente possa evitá-la, por outros meios, ou a tenha prevenido, para só então poder agir em legítima defesa.

De tal atitude do legislador decorre, em citação de caso concreto, que se o indivíduo fica ciente de que seu inimigo o espreita, em certo local, não necessita abster-se de sair à rua ou mudar seu itinerário, se não puder obter socorro da autoridade pública. (Cf. HUNGRIA, Nelson; Fragoso, Heleno. Op. cit., t. II, p. 288). Idêntica posição pode ser adotada pela doutrina e jurisprudência civis.

- A iniciativa da agressão deve partir do lesado, ou seja, não pode partir do agente a provocação, pois em assim agindo, colocaria este, em si, a causa do dano cometido ao lesado. Divergente, sustenta PONTES que se o agredido teve culpa na agressão, ainda assim pode defender-se legitimamente. O que é necessário é ser o ato do agressor contrário a direito, podendo ser sem culpa. (Cf. Op. Cit., p. 279). Esclarece ENNECCERUS que se o agredido provocou com intenção de determinar o ataque para, então, lesar o atacante, sob a aparência de legítima defesa, não haverá defesa, mas um ataque iniciado por provocação e continuado no ato de aparente legítima defesa. (Op. Cit., p. 535).

- A agressão deve ser injusta, ou seja, contrária ao direito. Com supedâneo no caráter injusto da agressão, que se caracteriza como dado objetivo, para SERPA LOPES é indiferente que o atacante seja ou não capaz, o que quer dizer que o ato ofensivo pode provir tanto do incapaz, louco, homem são, menor. (Op. Cit., p. 482). Para ENNECCERUS, é exigido apenas o lado objetivo da lesão ao direito, e não a antijuridicidade subjetiva( o dolo ou a culpa do atacante). (Cf. op. Cit., v. II, 1944, p. 535).

Segundo alguns, o agressor deve ser capaz de agir voluntariamente contra o direito; quando o perigo promana de um amental, ou animal, a situação enquadra-se sob o estado de necessidade e não de legítima defesa. 

Contrariamente, diz o professor ANTÔNIO CHAVES que a irresponsabilidade é indiferente; justifica-se o direito de prejudicar, independentemente de um ato doloso ou culposo do agente. (Cf. CHAVES, Antônio. Tratado de direito civil. 3ª. ed. S. Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982, v.l, t.II, p. 1565). Se o ato provém do inimputável, esse ato não é culpável, mas é antijurídico. É o quanto basta.

Igual opinião tem PONTES DE MIRANDA: ela pode ser contra ato do absolutamente incapaz, não dando razão a Köhler. (Op. Cit., p. 276).

-Os meios empregados devem ser adequados para a defesa. Se o indivíduo repele o ataque pela força, em situação que possa recorrer à força pública, comete excesso.

A doutrina italiana, com base nas disposições do Código Penal de Rocco, lembra que, para haver estado de defesa, é mister que essa seja proporcional à ofensa. Evidentemente que, quando essa proporcionalidade não existe, por se achar fora dos limites de defesa, o fato deverá ser, então, considerado civilmente ilícito. Tem-se entendido que, para determinação da proporcionalidade, deve ter-se presente não apenas a importância da ofensa, mas igualmente a importância do direito que se quer defender. Cf. D’AMELIO, Mariano et FINZI, Enrico. Codice civile. Firenze: Ed. G. Barbèra, 1943, v. lll, p. 239).

No exercício da defesa, o estado de ânimo do agente é fator considerável, todavia, segundo a doutrina, a sua avaliação somente é feita em caso de excesso, donde se conclui: Quem excede voluntariamente, encontra-se fora dos limites de defesa. Quem excede involuntariamente, por erro determinado do caso, ou por erro de outra maneira inculpável (e é aqui que podem ser tomadas em exame as condições especiais subjetivas), entender-se-á considerado como em estado de defesa.

Pode ocorrer, ao contrário, que os limites são excedidos por imprudência, negligência e outros comportamentos análogos;  nesse caso, deve considerar-se como acontecido um fato culposo, penalmente incriminado, se o fato é previsto pela lei penal como delito culposo, e se considera, portanto, para todos os efeitos, fora dos limites da defesa. (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 239).

Se o ato de legítima defesa for excessivo, quanto ao excesso o ato é contrário ao direito. O ato excessivo não se confunde com a desproporcionalidade do dano causado por ele com o dano que causaria ou causou o ofensor. Ainda tem o agente a seu favor o estado psicológico em que se encontrava (terror, medo, distúrbio ocasional), justificativo da não incidência da lei penal.  Na esfera cível, é suficiente haver, no excesso, negligência ou imprudência. (PONTES. Op. Cit., p.277). Nesse caso, haverá ilicitude, tanto assim é que poderá haver legítima defesa contra o excesso, mas legítima defesa contra legítima defesa não existe.

Pode ocorrer, entretanto, legítima defesa real contra legítima defesa putativa. Se Tito, achando, justificadamente, que será agredido por Paulo e o fere e Paulo, mesmo ferido, agride violentamente Tito, o comportamento deste enquadra-se na legítima defesa putativa, excludente de culpa, e  a reação de Paulo caracteriza-se legítima defesa real, excludente de ilicitude.

A doutrina penal tem destacado a situação de deficiência de prova, a saber, precisamente, quem foi o agressor e o reagente. Diante da dificuldade em distingui-los, ocorre, nos casos concretos, a absolvição dos envolvidos, o que não quer significar o reconhecimento da reciprocidade de legítima defesa.

11 - MEIOS DE DEFESA – EXCESSO

Afirma-se que a legítima defesa deve ser analisada objetivamente, não tendo relevância se os meios utilizados pelo atacado lhe pareceram necessários, se não eram necessários, se não tinha ciência dos meios de que o atacante dispusesse a mais. Levam-se em conta os meios que o agredido dispunha para reagir e o meio de que se utilizou.

Na utilização dos meios de defesa, considerando-se a regra excludente de ilicitude, o atacado não pode ir além dos atos necessários para repelir a agressão. A dedução é lógica, pois se aí não se pudessem ser usados todos e somente os meios necessários, não haveria a situação de antijuridicidade.

“A intensidade e a extensão da agressão, mais as circunstâncias do caso, é que delimitam a intensidade e a extensão (mais as circunstâncias de defesa) dos atos com que o agredido há de procurar excluir, no mundo fático, a agressão”. (PONTES. Op. Cit., p. 282)

Consoante se vê, diante da circunstância, do caso concreto, é uma avaliação difícil ao lesado, em face de seu estado de ânimo, sendo muitos casos apreciados com pontos de vista discordantes, nos graus de jurisdição aos quais são submetidos.

O atacado deve utilizar o meio que cause menos dano ao atacante, quando essa possibilidade de escolha existir. Como se trata de reação inopinada, a escolha escrupulosa dos meios, bem como a dosimetria de cálculos, não constituem um dever de quem se defende. O que se exige é moderação ao revidar-se a provocação. Os autores que se apoiam no direito penal entendem como posto acima.

PONTES cita, a propósito dos meios necessários à defesa, algumas situações: se o ofendido deve fugir (havendo norma legal nesse sentido) e não o faz e prefere defender-se, não há legítima defesa ; se não há dever de fugir, porém a fuga seria meio menos danoso e não ofenderia outro direito do agredido ou de terceiro, a fuga seria meio de escapar, em vez de repelir; elide pela exclusão do alvo. Entende-se por dever de fugir, se a fuga é possível, quando o atacante é louco ou se encontra fora de si. Observa, quanto aos que estão fora de si, incluindo-se os embriagados, que as circunstâncias podem excluir o dever de fuga, se outro direito entra em causa, não podendo tratar no mesmo nível o louco e o embriagado. Observa, outrossim, que a legítima defesa há de ser julgada de acordo com o que ocorre objetivamente, e não de acordo com que o agredido pensou que existisse ou não existisse. Dessa forma, aquele que pode fugir da agressão do louco, mas se defende, mesmo não sabendo que o agredido era louco, não praticou legítima defesa, sendo o ato contrário ao direito. Igualmente, se o defensor pensou que o agressor tinha à mão uma arma e se defende, quando ele portava um lenço, usou meio de defesa excessivo e responderá pelo dano (Cf. Op. Cit., p. 283).

Dentro da linha do pensamento acima, podemos citar a doutrina italiana, reconhecendo que, em qualquer caso no qual pudesse ser evitado o dano, não ocorrerá estado de necessidade. Exemplifica com a situação de um louco armado e o agente, em vez de fugir, mata-o. “Si immagini che alcuno inseguito da un folle armato, e conoscendo le sue condizione mentali, invece di cercare rifugio in casa, preferisse ucciderlo, egli non agirebbe in stato di necessità.”(ALTAVILLA, Enrico. Nuovo Digesto Italiano. Torino: U.T.E.T., 1939, XVll, p. 967).

O autor insere-se na corrente que classifica o ato do amental  como estado de necessidade e não como legítima defesa. Ponderamos, entretanto, que a agressão do louco é ato antijurídico, comportando a reação de legítima defesa, ainda mais quando se desconhece seu estado de insanidade; conhecendo-se esse, sendo possível a fuga, esta seria meio menos danoso.

Seria estado de necessidade se, ao fugir do louco, o atacado arromba casa de outrem, para aí refugiar-se.

Aos meios necessários refere-se o Código Penal (art. 25) “usando moderadamente dos meios necessários” e, por aí se vê que não há conflito com o direito civil.

No direito francês, PLANIOL e RIPERT enfocam o critério da proporcionalidade, divergindo da posição de outros autores:

“La defensa puede hacerse por cuantos medios sean propios, variando según el bien que se halle en peligro y el modo de ataque (3). Lo único que se exige es que sea proporcional al ataque”. (PLANIOL, MARCEL et RIPERT, George. Tratado practico de derecho civil francês. Trad. Dr. Mario Dias Cruz. Habana: Ed. Cultural S/A . 1946, t. Vl, p. 777).

Entre nós, WILSON BUSSADA, com referência ao artigo 502 (atual 1210, parágrafo 1º) do Código Civil e, referindo-se à defesa privada, em caso concreto chegado aos nossos tribunais, cita decisão que concluiu ter havido uso imoderado dos meios necessários para repelir a agressão.

Versava o caso sobre animal, abatido na lavoura do réu, e que provocava estragos em suas plantações. Entendeu o tribunal que os meios não foram adequados; caberia indenização ao dono da plantação e não o sacrifício do animal. (Cf. BUSSADA, Wilson. Código Civil brasileiro interpretado pelos tribunais. Ed. Liber Juris LTDA. V. 1, t. III, p. 57).

Ainda quanto aos meios de defesa uma observação deve ser feita quanto às denominadas ofendículas.  Considera-se como tal a defesa por meio de aparelhos, cães ferozes, certos engenhos, etc. Reina divergência quanto a localizá-las como legítima defesa ou exercício regular do direito. ASSIS TOLEDO prefere situá-las no capítulo da legítima defesa, pois sua potencialidade agressiva “Encontra melhor solução dentro das exigências da legítima defesa, sendo tolerados quando colhem o agressor, sendo censurados quando acertam inocentes” (Op. Cit., p. 194).

A doutrina penal diverge a respeito da colocação e a jurisprudência civil tem-nas situado, em grande maioria, como exercício do direito.

Com acerto, ANÍBAL BRUNO enquadra-as como exercício de direito, ao fundamento de que os aparelhos defensivos da propriedade destinam-se a funcionar no momento do ataque; são colocados antes desse fato, ou seja, a ação do sujeito é anterior, enquanto na legítima defesa o ato deve ocorrer necessariamente durante ou na iminência do ataque. Ainda: a atuação do aparelho é automática e uniforme, não podendo ser graduada em consonância com o ataque, e o critério da proporcionalidade, requisito da legítima defesa, não se verifica. Arremata, dizendo que “Salvo em casos excepcionais, a predisposição de aparelhos que matam indiscriminadamente o atacante não constitui exercício, mas abuso do direito...” (BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 5ª. ed. Rio Janeiro: Forense, 2005, t. II, p. 5).

A defesa dentro dos justos confins de sua natureza é registrada por CHIRONI, aduzindo que os pressupostos têm de ser examinados em relação à pessoa que se defende; porque, segundo suas condições pessoais, examinadas ao tempo e lugar onde a ameaça se realiza, é como deve determinar-se a gravidade da preocupação e a faculdade ou poder do agente, para adequar e medir a defesa, para que não exceda do perigo que com ela cuida-se evitar. (CHIRONI, G. P. La culpa en el derecho civil moderno. Trad. C. Bernaldo de Quirós. Madri: Reus, 1928, T. II,  p. 385, 386).

O excesso de defesa caracteriza-se como agressão injusta. Entende-se no tocante a ele, que a razão da responsabilidade reside mesmo na culpa. Na interpretação da lei civil, para a doutrina italiana, faz-se mister afastar-se um pouco da interpretação da lei penal. Nesta, a incriminação dos fatos culposos é excepcional, restringindo-se às hipóteses previstas expressamente. Pode ocorrer que, na defesa, exceda-se culposamente, porém o fato não seja previsto pela lei penal como delito culposo. Essa imprevisão legal não afasta o reconhecimento da culpa e consequente ressarcimento do dano, em esfera cível. Destarte, se alguém excede na sua defesa e provoca dano à propriedade de outrem, estará isento em instância penal, porque a norma atinente não admite o dano culposo, mas será responsável no juízo cível. (Cf. D’AMELIO, M. et LA LUNIA, I. et BERNARDINID, A .  Op. Cit., p. 240).

 Para medir a adequação ou excessividade da defesa não se deve instituir o confronto entre o mal sofrido ou ameaçado e o mal infligido por reação, podendo ser este último de extensão superior ao primeiro, sem que por isso ocorra menos a justificante. O confronto, ao contrário, faz-se através dos meios reativos que o agredido tinha à própria disposição, e os meios utilizados. Para avaliar se ali ocorre proporção ou excesso deve-se considerar, além disso, as condições pessoais do agredido em relação àquelas do agressor. (Cf. CANDIAN, Aurelio. Nozioni istituzionali di diritto privato. Milano. Ed. Dott. A .Giuffrè, 1946, p. 138).

O Código Penal brasileiro pune o excesso, a título de dolo ou culpa, em todas as situações de exclusão de ilicitude (art. 23, parágrafo único). Na legítima defesa, configura-se o excesso quando, após a reação justa (emprego de meio moderado e dentro do necessário), o agente excede-se, intensificando, sem necessidade, aquela reação no início justificada. Será doloso, se ele age conscientemente além do necessário; será culposo, quando por imprevisão à gravidade do ataque ou modo de repulsa ultrapasse o necessário. Responderá pelo ato excessivo. O excesso doloso não exclui a própria legítima defesa, mas apenas a defesa a partir do ato excessivo, quando, então, haverá responsabilização como ato ilícito. (Cf. Noronha,  E. M. Op. Cit., 1990, v. I, p. 202 e ed. 2009, p. 2006).

Em sede civil, haverá o ilícito naquilo que for além da defesa, pois é quando ocorrerá o abuso de defesa. Se revido um tapa na face com outro e derrubo o agressor, que não se encontrava armado, defendi-me legitimamente. Se, após tê-lo levado ao chão, continuo desferindo-lhe fortes golpes, excedo os limites da própria defesa, seja por dolo ou culpa.

Em relação à proporcionalidade entre o ato de legítima defesa e o perigo  o Código Civil (art. 188 § único) a ele se refere na situação de necessidade e nada dispõe quanto a isso na legítima defesa. PONTES leciona que a analogia quanto a esta última deve ser afastada. A legítima defesa não tem de ser proporcional; ela não deve ser desproporcionadamente excessiva e as circunstâncias em que o atacado podia defender-se têm de ser levadas em conta. Não se recorre à analogia com o estado de necessidade, e o princípio da limitação da defesa deve ser extraído do próprio art. 160 – atual 188, I). O artigo 25 do Código Penal serve melhor para interpretação do que o conteúdo do parágrafo único do art. 160 (atual 188,I). Seria exigir demais que o atacado só se defenda, se o meio utilizado não puder causar mal maior ao atacante do que o mal que  seria causado pelo perigo, mas seria absurdo deixar toda medida à ética. (Op. cit., p.289).

12 – SUJEITOS

Dentre os pressupostos de existência da legítima defesa, a lei penal (art. 25) refere-se à injusta agressão, ou seja, contrária ao direito, sem causa legal. Em face dessa contrariedade, poder-se-ia concluir que a agressão provenha de qualquer indivíduo ou seria o caso de se exigir capacidade de entender o caráter da ação injusta? Poderia ser o ataque fato de coisa?

Sustentou-se, na doutrina francesa, que não era necessário fosse o ataque fato do indivíduo, podendo consistir em atividade de uma coisa e que nem mesmo o agressor fosse capaz de discernir a injustiça de seu ato.

DELIYANNIS indaga qual o interesse superior que justifica o reconhecimento do direito de defesa nesses casos. Entende que ele não existe aqui. Para que a balança da justiça penda do lado da vítima da agressão, é necessário que a ordem pública fosse perturbada por parte de outrem, em seu detrimento, de uma maneira injusta. Portanto, a injustiça da agressão supõe necessariamente o fato de um homem capaz de discernir o caráter injusto de seu fato.

Havendo defesa contra fato de coisa ou de pessoa irresponsável, ela perde seu caráter de justiça, ocorrendo um ato ilícito. Na maior parte dos casos haverá exoneração de toda responsabilidade, entretanto, em virtude de outro princípio, porque, se o ato não é mais um ato de justiça, na maioria das vezes ele não se torna um ato necessário. (Cf. Op. Cit., p. 201). Seu ponto de vista é contrário ao de festejados autores que citamos.

Por seu turno, SAVATIER não diz se essas situações caracterizam-se como estado de necessidade, admitindo que a defesa pode ser contra atividade de um coisa e que parece ser indispensável ter o autor da agressão capacidade de entender a injustiça do ato. Contudo, a tradição admite que a legítima defesa pode ser exercida contra um amental. (Cf. Op. Cit., p. 75). No direito português, encontramos antiga doutrina, segundo a qual a ilegalidade da agressão referida no artigo 46, l, do Código Penal, só era considerada em relação à materialidade do fato, o que independia de dolo ou culpa do agressor, portanto,  admitida a legítima defesa contra o privado do uso de suas faculdades mentais. (Cf. MOREIRA, Guilherme Alves. Instituições do direito civil português. Coimbra: Ed. Imprensa da Universidade. 1907, v. l, p. 641).

Para HUNGRIA, a inimputabilidade do agente não apaga a ilicitude objetiva da ação e “sua inclusão na órbita da legítima defesa importaria uma quebra dos princípios que a esta inspiram e regem”. A situação seria estado de necessidade. (Cf. Op. Cit., p. 296 e edição de 1978, p. 296).

Na doutrina italiana, a posição não é divergente da exposta. Quando o perigo parte de um furioso ou de um animal, poder-se-á dizer estado de necessidade, mas não de legítima defesa, o que tem importância prática, quando se pondera que, na primeira hipótese, pode ser reconhecida a obrigação de indenizar. (Cf. CANDIAN, Aurelio. Nozioni istituzionali di diritto privato. Milano: Ed. Giuffrè, 1946, p. 137).

Sem adentrar no estudo, CHIRONI admite o fato de coisa : “...Provenga de otra persona o de cosas ajenas” (Op. cit., p. 385).

Na doutrina civil brasileira, acertadamente anota PONTES DE MIRANDA que a legítima defesa pode ir contra ato do absolutamente incapaz, ou daquele que se encontra em estado de choque ou fora de si, “Porque aquele ato, embora não seja ilícito, e esse ato, ainda quando não o seja, são contrários a direito; e pode ser por parte do absolutamente incapaz”. Discorda de FISCHER que exigia, ao menos, capacidade relativa. Nem mesmo entende ser necessário que o são mental tenha conhecimento do direito que defende ou das suas circunstâncias. (Op. Cit., p. 282). A agressão pode vir de uma multidão, em tumulto, mesmo que nem todos queiram, cada um, a agressão.

12.1-PESSOA JURÍDICA

Justamente por recair a defesa legítima sobre qualquer direito e bens (patrimoniais ou extrapatrimoniais) e não apenas sobre a vida ou integridade física, igualmente os entes morais também têm o direito de defender-se sem incorrer em ilicitude. O artigo 25 do Código Penal consigna as expressões: “quem, usando moderadamente... direito seu ou de outrem”. Quem tanto significa pessoa física ou jurídica.

SAVATIER cuida especificamente do direito de defesa dos grupos. Todos os grupos de pessoas, que exercem atividade legítima ou aderem a certa opinião, têm direito de defesa contra ameaças (de suas atividades ou opinião) vindas do exterior. Cita as coletividades religiosas que podem expulsar de um templo alguém que perturbe a ordem ou impeça a realização de uma cerimônia religiosa. Mas são por motivos de ordem moral que os grupos religiosos se defendem. Sem incorrer em responsabilidade civil, eles podem prevenir seus membros contra publicações ou zombarias, contrárias ao seu respeito e decoro.

Os mesmos direitos existem também em relação aos demais grupos legitimamente constituídos. Uma associação é livre, em princípio, para recusar o ingresso de novo membro ou excluir os que não se ajustam com seus fins sociais ou aos seus estatutos.

Uma associação sindical, de trabalhadores ou patronal, pode usar de meios legítimos de defesa contra um grupo antagônico, embora a gama desses meios parece ter sido reduzida pela legislação social. Existem procedimentos obrigatórios de conciliação antes de toda greve ou do “lock-out”. Finalizando, diz aquele autor:

“Les droits de légitime défense d’un groupe sont plus largement construits que ceux des individus, en ce que leur exercice n’engendre aucune dette d’indemnité même si ceux contre lesquels ils s’exercent n’encouraient pas personnellement de responsabilité civile.”(SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: L.G.D.J., 1939, t. l ,p. 79-81).

13 - CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

No direito penal, vige o princípio segundo o qual, devido à importância dos bens protegidos por aquela Lei, o consentimento do ofendido não é causa de justificação ou excludente para o ato delituoso. Porém, tal princípio não possui aplicabilidade rigorosa, pois há direitos que são indisponíveis, como no caso do homicídio.

A doutrina exige os seguintes requisitos para o consentimento justificante:

- disponibilidade do bem jurídico. Se for indisponível, há ilícito;

- manifestação de vontade do ofendido, livre, sem coação ou qualquer vício de vontade;

- no momento do consentimento, o ofendido deve estar em condições de compreender o significado e consequências de  seu ato (capacidade);

- o consentimento deve ser anterior ao ato do ofensor;

- o fato do ofensor não pode ferir os bons costumes, a moral e a dignidade da pessoa humana;

- o fato típico penal ocorrido deve identificar-se com aquele que foi previsto e constituir em objeto de consentimento. (Cf. TEIXEIRA, Antônio Leopoldo. Da legítima defesa.  B. Hte.: Del Rey, 1996, p. 40).

Subsidiado em DELIYANNIS, expressa SERPA LOPES ser impossível o consentimento, quando se tem por objetivo um ato tipificado como delito penal ou quando o consentimento do lesado for insuficiente para suprimir a culpabilidade penal, como homicídio voluntário ou por imprudência, incêndio voluntário ou imprudente (Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. R. Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, v. V, p. 236).

O consentimento reveste-se das modalidades: direto e indireto. No primeiro, impõe-se à vítima manifestação direta que torna inequívoca a sua decisão de sacrificar um bem seu na expectativa da obtenção de outro. Dessa forma, se alguém não manifestar expressamente concordar com determinada intervenção cirúrgica, para amputação de um braço, responderá civilmente o cirurgião que a fizer sem o consentimento necessário.

No consentimento indireto ou aceitação dos riscos, o efeito traduz-se pelo adágio VOLENTI NON FIT INJURIA (não há injúria para quem quer), porém não chega ao extremo de acolher a máxima SCIENTI NON FIT INJURIA (não há injúria para quem sabe). Quem aceita participar de uma corrida esportiva está ciente dos riscos normalmente derivados da mesma, mas tal consentimento não se estende aos riscos anormais, como o caso de um jogador de futebol sofrer lesões, derivadas de comportamentos contrários às regras do esporte (Cf. Id. Ibid., p. 236).

PONTES DE MIRANDA situa o consentimento na ofensa como excludente de ilicitude. (Op. cit., p. 271). Tanto o Código Penal quanto o Estatuto Civil não o incluem expressamente entre as causas excludentes, todavia há doutrina penal reputando-o como causa supra legal de justificação “Quando se imponha de fora do tipo para a exclusão da ilicitude (o Einwilligung do direito alemão) de fatos lesivos a bens plenamente disponíveis por parte de seus respectivos titulares”. (TOLEDO, Assis. Op. Cit., p. 202).

Nota ASSIS TOLEDO que o consentimento do titular desempenha mais de uma função. Ora é elemento essencial do tipo, ora é irrelevante (homicídio), ora anula a própria tipicidade por excluir o dissenso da vítima que constitui elemento essencial do tipo (introdução de animais em propriedade alheia, apropriação indébita), ora atua como verdadeira causa de justificação (crime de dano, cárcere privado). Observa que não se inclui, nessa causa de justificação, as intervenções cirúrgicas, realizadas dentro das normas da arte médica. “Nesta hipótese exclui-se não só a ilicitude, mas também a tipicidade do fato, realizado não a dano, mas em benefício de quem suporta”. (Op. Cit., p. 202,203).

ASSIS TOLEDO, divergindo de HUNGRIA, defende a existência do consentimento enquadrado nessa causa supralegal, no direito brasileiro. (Cf. Op. Cit., p. 160).     

14 - BENS TUTELADOS 

O Estatuto Penal brasileiro (artigo 25) expressa: “... injusta agressão.. a  direito seu ou de outrem”. A acepção do bem tutelado deve ser tomada em sentido amplo: tanto se relaciona à própria pessoa, quanto aos seus bens jurídicos. O Estatuto Civil cuida, além da proteção genérica, de uma especial, a da posse, contida no artigo 1210, parágrafo 1º, desde que não haja excesso.

Não importa a natureza e relevância do direito agredido, pois que não se põe a questão subjetivamente e sim de forma objetiva. Não tem relevância se a ameaça consiste em agressão corporal, de leve gravidade, ou mediante arma, se é contra a propriedade, contra a honra, contra a vida; a legítima defesa é consentida em qualquer caso. Tem relevância, porém, o emprego dos meios necessários para repelir a agressão.

São defendidos legitimamente quaisquer direitos do indivíduo, inclusive a prova de direitos, as pretensões, ações, exceções. Pode ser a própria pessoa, os direitos da personalidade, o patrimônio, os direitos públicos ou privados, a posse, os direitos obrigacionais. (Cf. Pontes. Op. Cit., p. 275-276).

Quanto aos direitos da personalidade estes se classificam em: a) integridade física: vida, corpo, partes do corpo; b) integridade intelectual: liberdade de pensamento, direito pessoal de autor científico, artístico, inventor; c) integridade moral: liberdade civil, política e religiosa, honra, recato, intimidade, imagem, identidade pessoal, familiar e social.  Este elenco não é exaustivo.

Com a vigência do atual Código Civil italiano (1942), ao tratar dos fatos ilícitos, esse diploma fala explicitamente na legítima defesa de “Si ou de outrem”.

“Art. 2044- (legítima defesa). Non è responsabile chi cagiona il danno per legittima difesa di sé o di altri ”.

Surgiu, então, o questionamento em saber se estaria contemplada a defesa dos bens ou de outro direito não concernente à pessoa. Concluiu-se, posteriormente que, se também o direito não fosse atinente à pessoa, o ato de defesa não geraria responsabilidade civil. Mesmo porque não faria sentido dar no Código Civil noção ultrapassada de legítima defesa. (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 240).

15 - LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO

O conceito, pressupostos, alcance e limites do instituto da legítima defesa são carreados do diploma penal para o campo do direito civil, visto como o princípio em que se fundamenta a exclusão da ilicitude é o mesmo em ambas as esferas.

O Código Civil estabelece o direito de regresso contra terceiro culpado do perigo, a favor do autor do dano que ressarciu o dono da coisa, em ato de necessidade (art. 930). O parágrafo único deste artigo estende a ação regressiva contra aquele em defesa (legítima defesa) de quem se causou o dano. É de lembrar-se que a defesa de terceiro é também contemplada, sob outra figuração e pressuposto, pelo direito civil, reconhecendo a “gestão de negócios”. Não haveria, portanto, razão para excluir a defesa de terceiro, no cível, quando já assentada no direito penal. O parágrafo do art. 930 remete ao inciso I, do art. 188.

Ao estender a legítima defesa a terceiro, ou seja, o exercício da defesa por quem não seja titular do direito nem seu representante legal, a lei transforma o cidadão em defensor do direito em relação àquele que se encontra momentaneamente fora da proteção da autoridade (do Estado).

Os pressupostos para a defesa de terceiro são os mesmos da defesa própria, não exigindo a lei existência de qualquer relação jurídica entre o  ameaçado e o reagente, embora sustente PONTES que o princípio geral da legítima defesa é o de cada um defender seu direito, não podendo defender o de outrem, exceto na incidência de norma jurídica especial entre o titular do direito e o terceiro, ou gestão de negócios (negotiorum gestio). (Cf. PONTES. Op. Cit., p. 286).    

A relação que se estabelece entre o agredido e o terceiro defensor foi cuidadosamente examinada por PONTES. Para VON THUR, seria gestão de negócios. PONTES também a admite, excluindo as situações em que já existam outras relações: pátrio-poder, se a defesa entra no conceito de guarda;  tutores, curadores; pedido de auxílio a pessoa incerta, caso em que a relação seria mandato;  dever de defesa comum, como quando o terceiro e o agredido são marido e mulher ou sócios de sociedade  empresarial, e o ataque foi de causa estranha à comunhão ou sociedade. Sendo gestão de negócios, a defesa ou é de acordo com o artigo 1331 (atual art. 861 - ato jurídico  stricto sensu - conforme o interesse e vontade presumível do agredido)  ou é ato-fato ilícito (atual art. 862 - contra a vontade do agredido). (Cf. Op. Cit., p. 284).

Não será legítima a defesa se o ofendido consentir nela, e o terceiro nela intervém, como consequência lógica da aplicação da máxima Volenti non fit injuria (não se faz injúria a quem consente), observando-se a relatividade da aplicação desse princípio.

Igualmente não será legítima, se o agredido recusa a defesa. O procedimento de terceiro entra no mundo jurídico, portanto, como ato ilícito. “Há o princípio da legítima defesa própria ou alheia, cuja incidência somente se exclui onde a vontade do agredido pode excluir”.

A defesa da posse é admitida pelo possuidor imediato ou direto (locatário, usufrutuário, credor pignoratício) e se fundamenta em relação existente entre o possuidor direto e o indireto. Mas pode haver defesa da posse pelo possuidor direto contra o possuidor indireto (proprietário) se esse invade os poderes de utilização do possuidor direto. Indaga-se se pode haver defesa da posse por terceiro - que não seja servidor da posse - (art. 487 – atual 1198), ou seja, se o artigo 502 (atual 1210, § 1º) é exceção ao artigo 160,I, primeira parte (atual 188). Estudos antigos (Neubecker) respondiam que não, por se tratar de agressão à coisa e a ofensa à propriedade, ofensa à pessoa. PONTES, àquela época, rechaçou a argumentação, pois “O pôr a posse fora da esfera do direito poder-se-ia admitir, mas fora da esfera da personalidade, onde estaria, no entanto, a propriedade, é difícil de entender-se”. (Cf. Op. Cit., p. 285).

A questão reside em examinar se, no caso de posse, a gestão de negócios é permitida (arts. 861-875). Considerando-se que a legítima defesa opera no mundo fático, é fácil perceber que tanto é contrário a direito “Violar direito” quanto ”causar prejuízo a outrem”. O artigo 502 (atual 1210, § 1º) estendeu a legítima defesa à posse, e não consiste limitação ao artigo 160, I, 1ª parte (atual 188).

Conclui o autor supra que, nos casos de relação entre o agredido e o terceiro ou em caso de gestão de negócios, não há justificativa para exclusão da legítima defesa da posse por terceiro. (Op. Cit., p. 286).

Relativamente ao instituto da posse, no direito brasileiro, anotamos que o Código Civil adotou a teoria objetiva (Ihering), não exigindo a intenção de possuir como dono, como não requer o poder físico sobre a coisa; consiste na relação de fato entre a pessoa e a coisa, com o fim da utilização econômica desta. Caracteriza-se pela exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono - visibilidade do domínio (art. 1196). Mas não é possuidor aquele que conserva a posse em nome de quem se acha em relação de dependência ou em cumprimento de ordem ou instrução daquele em cuja dependência se encontra (art. 1198 - detenção). Também não induzem em posse os atos de mera permissão ou tolerância (art.1208). (Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio Janeiro: Forense, 2005, v. IV, p. 18-23).

Tratando-se da natureza jurídica da posse, modernamente é considerada como sendo um direito real, com todas as suas características: oponibilidade erga omnes, indeterminação do sujeito passivo, incidência em objeto obrigatoriamente determinado, etc. (Neste sentido confira Caio Mário. Op. Cit., p. 27), embora não esteja elencada no art. 1225 dentre os direitos reais.

16 - LEGÍTIMA DEFESA QUE ATINGE TERCEIRO                                                                                                                                                                           

A ordem jurídica reconhece a defesa de quem é agredido contra o agressor, pois esse está ingressando na esfera jurídica de outrem contra o direito, causando dano. Vige no nosso sistema jurídico o princípio de que o dano deve ser reparado, seja diretamente por quem o causou ou pelo seu responsável. A isenção da reparação está registrada expressamente, seja como excludente de ilicitude, seja como de responsabilidade.

Ao assentar a defesa do agredido como legítima, o direito a reconhece em relação à vítima que provocou a defesa/dano. Se o dano atinge terceiro ou coisa de terceiro, ele é indenizável, porque, então, adentra no mundo jurídico como ato contrário ao direito, visto que o terceiro não integra a relação que legitima o ato de defesa, seja por exceder o agente os limites de defesa, seja por imperícia, no ato de defesa ou imprudência, pela avaliação errônea da reação, em resumo por qualquer erro de conduta.  Não ocorrendo erro, o terceiro atingido tem direito à reparação, pois aí já não se trata mais de defesa e é contrário a direito ofender a esfera jurídica alheia. Basta a contrariedade a direito, independente de ser culposo o ato.

Nessa circunstância, se Tito defende-se de Paulo e atinge Cícero, contra este último não se cogita de legítima defesa de Tito. Em outra situação, se Tito defende-se de Paulo e, para tal, necessita usar coisa pertencente a Cícero, ocorrendo dano a esta coisa, não se fala em legítima defesa, mas a hipótese insere-se em estado de necessidade. Tito ressarcirá Cícero do prejuízo, cabendo-lhe ação regressiva contra Paulo.

A previsão de indenizar terceiro inocente está contida no artigo 930, do Código Civil, “in verbis”:

“Art. 930. No caso do inciso II, do artigo 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano com ação regressiva, para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Parágrafo único - A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, n. I).”

Observamos que a reparação ao terceiro inocente atinge qualquer bem jurídico e não apenas a vida e integridade física.

Idêntica discussão reinou no direito italiano. “Sarà da adottare la stessa soluzione anche in materia civile”, indagava CANDIAN. Em instância penal, subsistia a justificante de legítima defesa, mesmo quando por erro no uso dos meios de defesa ou por outra causa a defesa atinge pessoa diversa daquela que determinou o perigo.

Aduz o autor que a identidade de noção e disciplina do instituto, em matéria penal e cível, teoricamente induziria a responder em sentido afirmativo. Porém, examinando os artigos 2045 do Código Civil italiano (estado de necessidade - cabe indenização ainda que o agente tenha praticado o ato mediante coação psíquica), 2047 (indenização pelo autor do dano, ainda que psiquicamente inimputável por defeito de consciência ou vontade), artigos que indicam a mitigação dos princípios da responsabilidade e da inimputabilidade com o da defesa do interesse de outrem, concluía haver condenação à indenização para aquele que, agindo por legítima defesa atinja pessoa diversa do agressor. (Cf. Op. Cit., p. 137). Atualmente não há qualquer discussão sobre esse ponto.

17 - DIREITO POSITIVO ESTRANGEIRO

Não pretendemos, dentro da síntese à qual nos propusemos, neste trabalho, tecer uma abordagem comparativa dos direitos, mas, apenas, deixar registrada uma amostragem simples da previsão do instituto, em comento, feita por alguns códigos estrangeiros, principalmente porque se percebe que não houve preocupação em dar ao mesmo tratamento amplo em sede civil.

- No Código Civil português, aprovado pelo Decreto Lei n. 47.344, de 25 de novembro de 1966, atualizado em 17.4.2006 (Lei 6.2006), encontramos as disposições seguintes :

“Art. 337 (legítima defesa)

Considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou patrimônio do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.

2. O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente”.

“Art. 338 (Erro acerca dos pressupostos da ação direta ou da legítima defesa)

Se o titular do direito agir na suposição errônea de se verificarem os pressupostos que justificam a ação direta ou a legítima defesa, é obrigado a indenizar o prejuízo causado, salvo se o erro for desculpável.”

O Estatuto Civil português dispõe, no subtítulo IV, sobre o Exercício e   Tutela  dos Direitos, contemplando o abuso de direito, a colisão dos direitos, a ação direta ou justiça de mão própria, a legítima defesa, o estado de necessidade, o consentimento do lesado (arts. 334 a 340).

Traça o conceito de legítima defesa, estabelecendo seus pressupostos e limites. Aceita o excesso, desde que resulte de perturbação ou medo não culposo, o que quer significar: havendo excesso culposo é afastada a excludente (ato justificado, na expressão do artigo).

Admite a legítima defesa de terceiro. Quanto aos sujeitos e bens tutelados, diferentemente da Lei Penal brasileira, que se refere à agressão a “direito seu ou de outrem”, a Lei portuguesa emprega a expressão “contra a pessoa ou patrimônio”.

Ora, se a noção de patrimônio encerra o conjunto das relações jurídicas de alguém, apreciáveis economicamente, outros direitos e bens estariam excluídos, o que não condiz com a evolução e finalidade do instituto. Poder-se-ia refutar, no caso, que a expressão patrimônio seria genérica, englobando o denominado, por alguns, por “patrimônio moral”.

Retira a legítima defesa putativa (art. 338) da licitude, impondo obrigação de indenizar, exceto se há erro desculpável. Adere ao critério da proporcionalidade entre o dano evitado com o dano causado, na mesma linha que já expusemos, ou seja, a legítima defesa não tem de ser proporcional, apenas não pode ser desproporcionalmente além do necessário (“ato não seja manifestamente superior ao que pode resultar a agressão”).

O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), de 1900, deu tratamento genérico ao instituto, no  § 227, dentro da seção -  compreendendo os parágrafos 226 a 231 - que cuida do Exercício dos Direitos, Legítima Defesa e Justiça Privada, Estado de Necessidade e Abuso do Direito (ao expressar Proibição de “chicana”-exercício do direito apenas com o fim de causar dano a outrem). 

“§ 227 - Um ato imposto por legítima defesa não é antijurídico.

Legítima defesa é aquela defesa que é necessária para afastar, de si, ou de outrem, um ataque atual contrário ao direito”.

Infere-se, do exposto, que deve haver recurso ao Estatuto Penal, a fim de melhor compreensão e aplicação do instituto. São pressupostos: contrariedade ao direito, ataque momentâneo, ataque dirigido ao reagente ou a outrem.

No Código Civil italiano, de 1942, inclui-se a legítima defesa a par do estado de necessidade, no título IX, que cuida dos fatos ilícitos, em idêntica linha ao Código Civil brasileiro, exceto ao não consigná-la como excludente de ilicitude. Não é expresso o exercício regular de direito reconhecido, mas há previsão do uso dos atos emulativos em relação à propriedade (art. 833), embora não seja norma geral.

“Art. 2044 - (legittima difesa). Non è responsabile chi cagiona il dano per legittima difesa di sé o di autri .”

Remetia ao Estatuto Penal. Por isso os autores defendiam, por sua natureza, uma noção unitária de legítima defesa, sendo legítimo valer-se das várias disposições que a disciplinam os diferentes Códigos. São requisitos: a atualidade do perigo, injusta ofensa. Estranhamente não se refere o Código Civil à excludente de ilicitude, mas de responsabilidade, o que é diverso, pois, na última situação o fato do reagente entra no mundo jurídico como ato ilícito.

Atualmente, com a evolução doutrinária e jurisprudencial, entende-se que é aplicável a todos os direitos, e não somente à própria pessoa ou outrem.

No Código Civil francês (legislação antiga - Decreto de 1803), não há previsão, carreando-se a sua disciplina do Código Penal. É direito reconhecido pela equidade. A jurisprudência civil fez, ela mesma, aplicação expressa dos artigos 328 a 329 da Codificação Penal. Assentou que o art. 328 (legítima defesa) consiste na aplicação de um princípio geral, que vale universalmente, mesmo na ausência de texto legal. Leis posteriores previram-na, como o Código Rural (Lei 4 de abril/1889), Lei de Imprensa ( 29/junho/1881), etc.

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Sobre a autora
Aparecida I. Amarante

Procuradora do Estado de Minas Gerais. Ex-professora-adjunta de Direito da UFMG. Doutora em Direito Civil. Escritora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Aparecida I.. Excludentes de ilicitude civil: legítima defesa, exercício e abuso do direito, estado de necessidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3814, 10 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25864. Acesso em: 24 abr. 2024.

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