CAPÍTULO III - EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO RECONHECIDO
01 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Os caracteres fundamentais do exercício do direito e seu abuso foram aplicados em algumas instituições do direito romano clássico, embora os princípios não se achassem generalizados. Os aforismos invocados de há muito pela doutrina ( Nullus videtur dolo facere qui suo iure utitur - não é reputado obrar com dolo, quem usa do seu direito; Nemo damnum facit, nisi qui id facit quod facere ius non habet - ninguém causa dano, senão quando faz algo a que não tem o direito de fazer) não tiveram aplicação literal e absoluta. Informa BEVILÁQUA: “Cícero afirma, positivamente, que o direito deve ter um limite : summum jus summa injuria” ( justiça excessiva torna-se injustiça). “O fundamento de seu pensar está na ideia moral da solidariedade humana, digamos, se é lícito exprimir por uma palavra moderna um sentimento antigo homines hominum causa esse generatos, ut ipsi se, aliis alli prodesse possint” ( Os homens foram gerados por causa dos homens, para que possam ser úteis uns aos outros) . (Op. Cit., V. I, p. 424).
Em Roma, todos os direitos deviam ser exercitados com moderação e de acordo com o fim da instituição a que serviam. Afora o enunciado de Cícero, não se enontra, no direito romano, outro texto geral, amplo, comprensivo, categórico e expresso, que moderasse o rigor das mássimas referidas para todos os casos. (Cf. AGUIAR, Henoch. Op. Cit., p., 101)
Não foram somente os filósofos; os jurisconsultos reconheciam a necessidade de sobrepor o interesse público ao particular. Papiniano asseverou: Nam propter publicam utilitatem, strictam rationem insuper habemos : ... nam summam esse rationem quae pro religione facit (Diante da utilidade pública... devemos relevar a razão particular...pois o direito relativo à religião é maior). O imperador Leão declarou que nossos direitos devem ser exercidos sem propósito de prejudicar os dos outros. (Cf. BEVILÁQUA. Op. Cit., p. 424).
No antigo direito espanhol, uma Lei das Partidas, após determinar quais obras os homens não podiam fazer, que impedissem o curso das águas por onde antes costumavam correr, concluía que mesmo que o homem tenha o poder de fazer no que é seu aquilo que quiser, deve fazê-lo de modo que não acarrete dano, nem prejuízo a outro. Após examinar comparativamente as leis das Partidas, referentes ao uso do direito, com o direito romano, HENOCH AGUIAR arremata:
“Así, el mismo pensamiento aparece en las leyes romanas y en las partidas, o sea, que el acto ejecutado por el propietario, dentro de lo suyo, no estaba permitido en el caso particular de que tratan ambas leyes, si lo ejecutaba com ánimo de perjudicar y no le fuese necesario para mejorar su propia herdad.” (Op. Cit., p. 103, 104).
No direito medieval, a palavra emulação significava intenção de prejudicar ao executar um ato, realizado dentro dos limites traçados pela lei. A doutrina dos atos de emulação teve grande desenvolvimento no direito comum, tanto em matéria de direitos reais quanto obrigacionais, ao ponto que se proibiam os atos executados com animus emulandi, como ainda foram criadas presunções em grande número, destinadas a prová-lo, como a presunção de ausência de interesse legítimo por parte do agente ao realizar o ato que se cuidava impedir. (Cf. Ibid. p, 105).
Dentro desse exame histórico-evolutivo, PONTES enquadra o exercício do direito dentro de um processo dialético. A antiga máxima, dotada de absolutidade, (TESE) Qui iure suo utitur neminem laedit - quem usa de seu direito a ninguém prejudica - foi aquebrantada pela Sumum ius summs iniuria - (ANTÍTESE). A SÍNTESE deu-se ou com a inclusão do abuso do direito na classe dos atos ilícitos, ou pelo emprego de regra jurídica de inclusão de enunciado proibitivo (como ocorre no BGB, § 226, no qual o exercício é proibido se apenas tiver por fim causar dano a outrem), ou pelo enunciado de pré-exclusão de contrariedade a direito (não constituindo ilícito o exercício regular; contrario sensu, o exercício irregular ou abuso do direito são atos contrários ao direito). (Cf. Op. Cit., p. 291).
02 - CONCEITO
Partindo do aforismo romano de que o ilícito consiste em agir sem direito, agir contra o direito (agere sine jure, id est contra jure), a contrário sensu, o exercício de um direito não constitui contrariedade ao direito. Com supedâneo nesses princípios, as legislações civis normalmente pré-excluem de ilicitude o exercício de um direito reconhecido, ante a incompatibilidade lógica entre exercer um direito e o recíproco cometimento de ilícito.
“Il diritto soggetivo si esercita ponendo in ato - nei limiti consentiti dal diritto oggetivo - alcune o tutte le facoltà giuridiche, che potenzialmente sono in esso contenuto”. (AZZARATI, Francesco S. et MARTINEZ, Giovanni. Diritto civile italiano. Padova: CEDAM, 1943, t. I, p. 14).
A conceituação peca por levar em conta somente os limites impostos por lei. À ideia de exercer regularmente um direito reconhecido contrapõe-se ipso facto a de não causar dano a outrem, com seu uso irregular, o que encerra a figura de abuso do direito. Nem sempre o legislador fixa na lei limitação ao exercício do direito individual, fazendo com que surjam, na sua concretização, dificuldades originárias da extrapolação de seus limites.
O exercício do direito consiste na prática atuação do conteúdo do próprio direito, seja pondo em ação um, alguns ou todos os poderes que o encerram; é o fato material correspondente ao abstrato conteúdo de um direito. Pode consistir em ato único ou em atos sucessivos.
COVIELLO traçou as seguintes regras gerais relativas ao exercício do direito:
- Cada um é livre para exercitar ou não seus direitos; o exercício do direito é facultativo, não obrigatório, exceto quando se trata de direitos que são ao mesmo tempo dever, como os direitos do pátrio poder, tutela; (Aqui convém destacar que, no direito brasileiro, a propriedade é um direito, sendo, em contrapartida, um dever do proprietário destinar-lhe função social – art. 5º, XIII e também art. 1228, Código Civil).
- O direito permanece sempre o mesmo, ainda que não seja exercitado; mas a falta de exercício prolongada, por tempo determinado pela lei produz, de regra, a sua extinção, o que ocorre não tanto como pena da inércia, já que o exercício do direito não é um dever, mas no interesse social principalmente;
- Cada um pode usar seu direito, como melhor lhe pareça e agrade, também usá-lo mal, salvo se a lei não impeça o mau uso, como ocorre no caso de prodigalidade, à qual a lei põe impedimento com o instituto da inabilitação; (Usá-lo mal não significa intenção malévola para atingir outrem).
- O titular de um direito pode fazer tudo o que é necessário para exercitá-lo (adminicula iuris). Assim, quem tem a servidão de tirar água, também tem o direito de passagem sobre a propriedade serviente, que é necessário para o exercício daquela servidão;
- Quem exercita um direito, como dele retira vantagens, desse modo deve suportar os ônus que acompanham seu exercício;
- O direito pode ser exercitado diretamente ou por meio de outrem; o exercício por meio de outrem tem a mesma eficácia que o exercício direto. Mas não é necessário para tal fim que se trate sempre de verdadeira e própria representação jurídica; pode bastar às vezes a referida representação econômica ou de interesses. A verdadeira representação, a jurídica, só é necessária para a conclusão de negócios jurídicos, não para os fatos econômicos que constituem o exercício de um direito, como seria o uso material da coisa, a conclusão dos trabalhos agrícolas, etc.: para estes basta que uma pessoa qualquer aja no interesse de quem aí tem efetivamente direito, ou por vontade da lei. Assim, possui-se por meio do inquilino, colono, comodatário, ainda que estas pessoas ajam, na realidade, no próprio interesse. Contudo, nem todos os direitos admitem a possibilidade de exercício por meio de outrem, como são, pela sua natureza, os direitos de família; e ainda entre aqueles que o admitem há alguns para os quais é excluído aquele modo especial de exercício por meio de outrem, que é a cessão do exercício do direito: assim ocorre para o direito real de uso (Cf. COVIELLO, Nicola. Manuale di diritto civile italiano-parte generale. Milano: Società Editrice Libraria, 1929, p. 483, 484).
A antiga máxima Quem, exercitando seu direito, ocasiona dano não é obrigado a ressarcir, nos tempos atuais, não pode ser tomada em caráter absoluto. O aforismo significa que o só fato de ocasionar um dano não inclui o de repará-lo. Porém, como adverte LAURENT, é mister observar se o autor do fato danoso usou de um direito sem lesar o direito de outrem; então, não haverá ilícito e, consequentemente, obrigação de ressarcir o dano. Se, indagava o autor, cavando um poço em meu poder, corto a nascente que alimentava o poço do meu vizinho, causando-lhe dano, haveria obrigação de reparar. Alguns admitiam que não, porque nada mais fiz do que exercitar o meu direito, sem cometer culpa. A palavra culpa implica a restrição com a qual se necessita entender a máxima. Em verdade, não cometo culpa alguma, porque não leso o direito de meu vizinho; ele não tinha direito à água dessa nascente; ela pertencia ao proprietário do terreno no qual saía e o proprietário do terreno inferior só tem direito por efeito de uma convenção. Se não existe direito convencional e se não é adquirido o direito por prescrição, posso, como proprietário, usar da nascente e também exauri-la. Não incorro em culpa, pois que pratico o que posso fazer sem ferir o direito de meu vizinho. (Cf. LAURENT, F. Princippi di diritto civile. Trad. Alessio di Majo. Roma: Dott. Leonardo Vallardi, editore, 1881, v. XX, p. 311).
A exemplificação denota a complexidade da matéria, cujos confins muitas vezes tormentam o julgador, a saber até onde vai um direito e onde inicia o de outrem. Nas relações de vizinhança, sentindo que a proximidade acarretaria uma série de desentendimentos, os legisladores, em geral, disciplinam a matéria, estabelecendo os limites necessários. O nosso Código Civil de 2002 (art. 1310) bem como o Código anterior (art. 585) proibiram escavações ou obras que tirem à nascente ou ao poço de outrem a água necessária às suas atividades normais.
Nosso atual Código disciplinou a matéria de águas nos artigos 1288-1296. Dentre os regramentos ali traçados, chamamos atenção pela preocupação do legislador em preservar a função econômica e social dos recursos naturais pelo confrontante. Ao dono ou possuidor de prédio inferior tem preservada sua condição natural e anterior, que não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior (art. 1288). Também, o proprietário de nascente, uma vez satisfeitas as necessidades de seu consumo, não poderá impedir ou desviar o curso natural das águas para os prédios inferiores (art. 1290).
Como se vê, a situação exemplificada por Laurent, por ser obra antiga, é coberta de limitações no direito brasileiro.
O Código Civil de 1916, em matéria sobre águas (art. 563 a 568), foi revogado pelo Decreto n. 24.643, de 10/julho/1934 - Código de Águas - que dispôs sobre nascentes e águas subterrâneas, nos seus artigos 89 a 101, regulando o direito de vizinhança. Com o advento da Carta da República, segundo os arts. 20, III, e 26, todas as águas passaram a ser do domínio público (bens da União, Estados), extinguindo-se as águas particulares, na opinião de autores. Nesse caso, o artigo 1290 citado acima estaria eivado de inconstitucionalidade. Mas não é ponto pacífico, e outros autores admitem ainda existirem as águas particulares, com argumentos lastreados nas legislações anteriores.
Outras limitações estão contidas na seção V (direitos de vizinhança – arts. 1277-1313), do capítulo I, título II (da propriedade) do Código Civil brasileiro.
03 – PRESSUPOSTO
O pressuposto básico do exercício do direito é a consciência de exercitar, quer dizer, os atos pelos quais se faz valer o conteúdo do direito ou alguns dos poderes nele compreendidos são realizados com a consciência de exercitar em todo ou em parte o direito em questão; onde falta tal consciência, não se pode corretamente pensar em verdadeiro e próprio exercício de direito, ainda que não ocorra que este efetivamente exista e pertença à pessoa que o exercita, quando, então, há o simples fato do exercício ou a aparência ou exteriorização do direito; e, tal aparência, sem assumir a natureza de direito, é, porém, protegida pela lei. (Cf. CHIRONI, G. et ABELLO, L. Trattado di diritto civile italiano. Torino: Fratelli Boca Editori, 1904, v. I, p. 577).
Em puro rigor, o exercício correto do direito não constitui ato ilícito, consequentemente não se pode falar em conflito de direitos, visto que se constituem harmoniosamente dentro de um mesmo sistema jurídico. Bem anota LISANDRO SEGOVIA:
“Los derechos son racionalmente armónicos y su conflicto no es posible, donde el uno acaba sólo puede empezar el otro, como las fincas contiguas que se tocan, pero no se superponen. No cabe exceso en el ejercicio del propio derecho”. (Apud AGUIAR, Henoch D. Hechos y actos jurídicos en la doctrina y en la ley. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1950, v. II, p. 96).
Cada direito tem seu raio de ação e seu exercício; só é legítimo quando se move dentro da área fixada na lei. Fugindo de sua órbita, ainda que originariamente tenha sido exercitado nos seus limites, atingirá o campo do direito alheio, surgindo o conflito.
Pode ser que a colisão se dê em virtude de exercício simultâneo dos titulares do direito, como também pelo ato de um deles, prejudicando o outro que se limita a manter o gozo de seu direito. O exercício do direito implica na obrigação correlata de não ultrapassar a área delimitada, seja com o próprio fato de seu exercício, seja pelas consequências que podem do exercício derivar.
Entretanto, os limites podem não estar fixados na lei e sim na natureza do próprio direito. Nesse último caso, reside o problema.
Enfoca HENOCH AGUIAR: “El ejercicio del derecho para que no pierda su carater de acto lícito, debe verificarse dentro de los limites impuestos por la ley, ya se refieren ellos a la extensión del derecho o al modo de usarlo: Así, la licitud de aquel acto dependerá no solamente de que no haya extralimitación del derecho en sí; sino también de que lo ejerza normalmente, empleándose al efecto los medios permitidos por la ley. (Op. Cit., p. 97). Sintetiza o autor: “...El ejercicio propiamente dicho o la defensa del derecho, cuando causan un daño a otro, sólo liberan de responsabilidad al titular, si procedió con la debida diligencia y atención para evitar aquel daño”. ( Op. Cit., p. 99).
Na efetivação do exercício tanto se compreende a sua atividade, ou seja, pô-lo em movimento, com o fim de retirar as vantagens dele advindas com seu gozo, quanto sua própria defesa frente a um atentado de alguém, até o momento de sua extinção. Defendê-lo é exercitá-lo.
Ambas as situações, para se revestirem de legitimidade, estão condicionadas pela lei, isto é, a realização submete-se aos meios e modos por ela determinados.
04 - COLISÃO JURÍDICA
O exercício do direito subjetivo consiste em pôr em ação uma, algumas ou todas as faculdades jurídicas que o contem, dentro dos limites traçados pelo direito objetivo e, nesse exercício, pode ocorrer que seu titular contraponha-se ao direito exercitado por outrem. A doutrina costuma denominar o conflito que aí se estabelece como colisão de direitos, colisão jurídica e mesmo colisão de interesses. Segundo alguns juristas, há conflito de interesses, não de direitos, pois não se admite que o direito objetivo estabeleça um direito, ao mesmo passo que permite um direito contrário sobre o mesmo objeto. O interesse consiste na utilidade ou vantagem que a certo sujeito pode ser fornecida por um bem.
Parte da doutrina não endossa a existência de colisão de direitos. Na realidade, se o direito objetivo tem como função precisamente regular a colisão dos interesses individuais, tornando pacífica sua coexistência, seria inexato dizer, em tais casos, conflito ou colisão de direitos.
A coexistência dos direitos é harmônica, seja qual for a esfera em que forem previstos. Existindo uma norma penal incriminadora de certo fato e em determinados casos outra norma jurídica, mesmo extrapenal, permite-o ou mesmo impõe-no, não há que falar-se em existência de crime. Acentua NELSON HUNGRIA que, “ainda quando a norma de excepcional licitude seja de direito privado”, não há crime. “Nenhum direito subjetivo individual, ainda que de caráter privatístico, pode gravitar fora da órbita do interesse social. Se o direito civil, por exemplo, disciplinando esta ou aquela facultas agendi, autoriza, para assegurar-lhe o pleno exercício, a prática de um fato que, em outras condições, constituiria crime, tem-se de entender que assim dispõe, não apenas por amor ao direito individual em si, mas também no interesse da ordem jurídica em geral. Tal disposição, portanto, não pode deixar de repercutir sobre o direito penal”. (Op. Cit., 1978, p. 308).
Não se pode admitir que, tendo alguém direito sobre determinado objeto, possa existir sobre o mesmo um direito contrário de outra pessoa. Entende-se que, na realidade, ocorre um conflito de interesses e não de direitos.
“Ma è un assurdo giuridico la coesistenza di diritti contrari “, e, portanto, o exercício legítimo de um direito que, por si, constitua a violação do direito de outrem. (Cf. AZZARITI et MARTINEZ. Op. Cit., p. 14).
Alguns casos de conflitos são regulados, tais como: o estabelecimento de indenização na desapropriação, requisição, passagem coativa no terreno de outrem para obtenção de água (casos esses em que a conciliação dos interesses opostos não seja possível). Ainda: nas relações entre vários interessados, para fazer valer os próprios direitos nos confrontos entre o mesmo devedor ou terceiros, quando a lei estabelece o critério da prioridade, como ocorre no bem hipotecado; ou quando concede a preferência ao possuidor de boa fé dos bens móveis adquiridos de quem não era proprietário os efeitos do título; outras vezes, prefere quem, pelo sacrifício de seu direito, recobrasse não a simples falta de um lucro, mas uma verdadeira e própria perda, como quando consente na ação de revogação, ao credor até contra quem tenha adquirido a título gratuito e em boa-fé, do devedor; outras vezes admite, em simultâneo concurso, mais pessoas que ostentam direitos iguais sobre a mesma coisa ou direito a prestações pelo mesmo devedor, como nos casos de comunhão, divisão, concurso para liquidação do passivo da herança beneficiada, de falência. (Id. Ibid., p. 14,15).
A respeito de uma mesma coisa pode ocorrer a existência de dois ou mais direitos, pretensões, ações ou exceções; ou a respeito do mesmo patrimônio, ou de prestação que se exaure em si podem concorrer, divergindo, o exercício de dois ou mais direitos, segundo lição de PONTES DE MIRANDA, que não se deteve sobre a divergência da existência ou não da colisão de direitos, apesar de ter como imprópria a terminologia. Dependerá da natureza e extensão dos direitos a possibilidade do exercício pleno de todos ou a não possibilidade, como também, se não há choque entre eles (porque estão enfileirados hierarquicamente) a possibilidade de exercícios de modo que uns precedam aos outros e nenhum deles fique no mesmo grau do outro. Aponta os seguintes princípios, utilizados pelo legislador, para solucionar o problema resultante do choque:
O princípio da prevenção - pelo qual o primeiro titular exerce o direito, ficando aquele que vem depois com o que dele sobrar. É adotado nos direitos reais (princípio da prioridade em tempo);
O princípio da igual sorte - onde todos sofrem com a colisão - nos direitos de crédito o nosso sistema jurídico por vezes excetua tal princípio ao enunciar outro (par condicio creditorum - o que vem em primeiro plano). (Cf. Id. Ibid., p. 290, 291).
Não se pode acolher na sua rigidez o adágio Qui iure suo utitur nemini iniuriam facit, pois não se justifica a violação do direito de outrem para exercício do próprio direito. O Código Civil brasileiro mantém orientação oposta ao provérbio citado, sendo o exercício, que causa lesão, contrário a direito. Para exclusão da contrariedade, o fundamento básico é sua regularidade, significando, com isto, que nem todo exercício ocasionador de dano seja antijurídico, somente configurando-se como tal aquele irregular, conforme já previa o Código Civil anterior, onde a doutrina ali já admitia estar previsto o abuso do direito.
Se o exercício do próprio direito pressupõe, necessariamente, a falta de direito contrário, o critério buscado, segundo informa GIORGIO GIORGI, consistirá em verificar se do lado do prejudicado existia direito ou simples interesse. O direito significa o gozo de utilidade garantido pela lei; simples interesse quer significar o gozo de utilidade não garantido pela lei. Abre-se aqui à investigação do jurista um dos campos mais vastos no domínio do direito civil: cuidando-se de investigar, quanto se estende cada um dos vários direitos, que a vigente legislação reconhece e garante, seja no Código Civil, nos demais Códigos e Leis Especiais e, por fim, na Constituição. (Cf. GIORGI, Giorgio. Teoria delle obligazioni nel diritto moderno italiano. Firenze: Ed. Fratelli Cammelli, 1909, v. V, p. 283, 284).
Ressalta CUNHA GONÇALVES, precisamente sobre o abuso do direito, que parte da doutrina põe em dúvida a possibilidade de uma ação preventiva, já que o abuso diz respeito a danos consumados. A ação preventiva existe e está prevista no Estatuto Civil português, sempre que seja evidente ou provável uma colisão de direitos e interesses (arts. 14 e 15 C.C. anterior). A questão do abuso do direito, assim como no estado de necessidade, é “um aspecto ou uma fase da questão mais ampla da colisão de direitos que o legislador português regulou com certa elegância”. (Op. Cit., p. 512).
Efetivamente disciplina o atual Código Civil português, de 1966 :
“Art. 335º. (colisão de direitos)
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.
O Código anterior previa diversamente (“Quem, exercendo direito, procura interesses, deve, em colisão e na falta de providência especial, ceder a quem pretende evitar prejuízos”- art. 14; “Em concurso de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os interessados ceder reciprocamente o necessário, para que esses direitos produzam o seu efeito, sem maior detrimento de uma que de outra parte”- art. 15).
Esses preceitos do Código anterior visavam a evitar prejuízos; em sua letra e espírito, segundo anota CUNHA GONÇALVES, eram superiores a todas as teorias até hoje elaboradas sobre abuso do direito e relações de vizinhanças. Diante desses artigos não havia de se investigar qual o vizinho culpado, qual rompeu o equilíbrio entre os prédios, qual era o estado de fato anterior. “Posto o princípio de que o direito de cada um tem por limite o direito de outrem, só cumpre averiguar qual a pessoa, singular ou coletiva, que, exercendo o seu direito, procura interesses e qual a que pretende evitar prejuízos, ou seja, a destruição dum valor patrimonial já constituído e que não era vã expectativa”. Quem procura interesses é quem inicia a atividade que pode causar prejuízo; interesse não significa aqui ausência de direito subjetivo, uma expectativa, e sim proveitos a serem obtidos com o exercício do direito. A quem pretende evitar prejuízos compete provar que estes prejuízos constituem ofensa de um direito seu, porque a lei não se refere a simples colisão de interesses, mas à colisão de direitos.
Direitos da mesma espécie seriam os dos co-herdeiros de herança indivisa em igual proporção, os direitos dos sócios de sociedade. Direitos iguais seriam, por exemplo, os direitos dos cidadãos de usufruir coisa comum. Sendo esses iguais ou da mesma espécie, a regra é que um e outro devem efetivar-se sem maior prejuízo para qualquer das partes. Se forem desiguais ou de espécies diferentes, o direito menor deve sujeitar-se, como ocorre nas associações em que o direito de deliberação pertence à maioria, ou nas sociedades onde o direito de deliberação é proporcional à cota social. (Cf. CUNHA GONÇALVES. Op., Cit., p. 514). Esta explicação prevalece para o atual Código.
No caso de serem iguais ou da mesma espécie, o conflito resolve-se seja pelo instituto da transação, seja por imposição do juiz, sempre que a lei não indicar solução diversa.
Não só ocorrerá colisão jurídica entre titulares que exercem direitos concorrentes, como os coproprietários, mas também entre pessoas estranhas; também não se exige que as partes exerçam ou queiram exercer o mesmo direito, bastando que apenas uma o exerça, causando prejuízos a outrem que se mantinha tranquilo. A efetivação do prejuízo, “Ultrapassando a fase inicial da colisão e das cautelas, constituirá o abuso do direito”. (CUNHA GONÇALVES. Op. Cit., p. 515).
05 - “ONUS PROBANDI”
O direito brasileiro reza não constituir ato ilícito o exercício regular de um direito reconhecido. Resultando dano desse exercício, a regra é no sentido de categorizar-se o ato como ilícito, salvo se foi exercido de modo regular, requisito exigido pela lei. Decorre de tal princípio que o ônus probatório compete a quem praticou o ato e não ao que sofreu prejuízo, a quem compete provar a existência do dano. Ao agente compete a prova da regularidade do exercício (orientação diversa do BGB), em atendimento aos princípios da prova: Incumbe ao réu provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor ( art. 333, II, CPC), ou seja, Reus in exceptione actor est.
Não havendo prova do exercício regular, será o agente condenado, não por presunção da irregularidade, mas porque o dano existe, está provado e, consequentemente está a culpa.
Requisito básico é lesar com culpa, não competindo indagar qual o propósito de lesar. A questão assenta-se em dado objetivo. Segundo PONTES, “O critério de se ter por irregular o exercício, se o interesse único seria o de lesar, não basta, em direito brasileiro.” (Op. Cit., p. 293). O uso abusivo do direito, por óbvio, é um uso irregular, ilícito.
06 - CAMPO DE ATUAÇÃO
A norma jurídica de contrariedade ao direito (art. 186 c/c art. 188, I), isto é, o exercício abusivo atinge todas as esferas jurídicas, seja no direito público, comercial, penal, civil, processual civil, etc. Seu campo de aplicação compreende o direito de propriedade, de obrigações, o direito de estar em juízo, o processo executivo, o pátrio-poder, o direito de crítica e de liberdade de imprensa, etc. Por isso, os atos de emulação, apenas constituem um capítulo e têm tratamento autônomo, sobretudo pela sua secular história e a aceitação ou recusa de sua censura em direito romano. (Cf. D’amelio, Mariano. Nuovo Digesto Italiano, 1937, V. I, p. 49)
No processo civil, a matéria é posta, como requisito do exercício do direito regular, no art. 3º: “Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade” (tanto prevalece para propositura da ação, reconvenção, exceção e recurso), sendo a falta de interesse acarretadora do indeferimento da peça inicial ou extinção do processo. No processo, “A regra jurídica tinha de ser includente, - por faltar princípio geral de contrariedade a direito, no processo, como elemento do ilícito absoluto. O ônus da prova incumbe ao que alega o abuso do direito processual”. (PONTES. Op. Cit., p. 293).
07 - PROTEÇÃO PREVENTIVA
Preventivamente, aquele em condições de sofrer o dano pode pleitear a tutela contra o exercício irregular ou abusivo, como cominatoriamente, em se tratando de ato realizado.
Outrora, já questionava PONTES qual seria o instituto que albergaria a alegação de exercício irregular pelo réu. É defesa ou reconvenção e não exceção de dolo como entendia Enneccerus, pois a exceptio dolis generalis é outra categoria jurídica e mais vasta. (Cf. Id. Ibid., p. 294). O art. 675 tem seu correspondente conteúdo no art. 798 do atual CPC; prevê o poder cautelar genérico do juiz, para adotar providências/medidas, além dos procedimentos cautelares disciplinados no Código.
De notar-se que o exercício irregular não nasce necessariamente com essa mácula, podendo, pelas circunstâncias supervenientes, tornar-se irregular o que se iniciou regular ou tornar-se regular, sanado, aquele originariamente irregular. “El acto ilícito que ultrapasa los límites, asignados por la ley al titular de un derecho, es un acto ilícito que puede ser objeto de medidas preventivas y debe, si no há podido prevenir-se, dar lugar a una reparación en especie”. (AGUIAR, Henoch. Op. Cit., p. 113).
Os autores de direito privado francês veem hipóteses de abuso de direito em casos onde um direito tenha sido exercido temerariamente ou imprudentemente, em síntese, de uma maneira defeituosa; defectibilidade relativa ao modo de exercício do direito, à técnica de sua utilização. É, por exemplo, o que se realiza em matéria notadamente de exercício de vias de direito: o juiz aponta, deste modo, uma demanda feita sem fundamento ou constata, no exercício da ação, procedimentos que constituam uma falta, ou ainda que o recurso a uma medida de penhora tenha sido imprudente. JOSSERRAND, evocado por MARCEL WALINE, chega mesmo a admitir que se estabelece a responsabilidade não somente quando se comete dolo, fraude ou falta grave, mas também na falta de delicadeza, medida, oportunidade, enfim, cometendo-se uma falta na execução, um erro na técnica, um contrassenso qualquer, desde que ele seja nitidamente caracterizado. (Cf. WALINE, Marcel. Responsabilité publique et responsabilité privée. Paris: LGDJ, 1957. T. VIII, p. 387).
08- CARACTERÍSTICAS DO EXERCÍCIO REGULAR NO DIREITO BRASILEIRO
- Exercício sem fim de causar dano a outrem, seja de ordem patrimonial ou moral;
- Exercício que denota a existência de qualquer interesse legítimo;
- Exercício com responsabilidade e moderação;
- Exercício dentro da órbita do próprio direito, seja dentro do limite traçado pela lei, seja pelo não desvirtuamento de sua essência, observando os requisitos da finalidade econômica ou social, princípios da boa-fé e dos bons costumes.
09 - LIMITES DO EXERCÍCIO
O conteúdo do direito subjetivo não é idêntico em todos os direitos, quer seja do ponto de vista qualitativo, quer quantitativo, razão porque o seu exercício sofre variação formal e temporal. “Cada direito subjetivo tem limites objetivos, não só de duração, de forma, circunstância material, mas também de boa ordem social”. (CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Tratado de direito civil. Coimbra Ed. LTDA. 1929, V. I, p. 428). Mesmo podendo o titular do direito gozar de ampla liberdade no seu exercício, não poderá ir além de um justo limite. Por esta razão, acresce CARVALHO SANTOS, todo direito acaba onde começa o direito de outrem. Repete a antiga fórmula, acolhida pela jurisprudência francesa, de que todo direito tem por limite a satisfação de um interesse sério e legítimo. Por legítimo entende-se, naturalmente, normal, exercido dentro dos fins sociais traçados para ele ou para aquele que age de boa-fé. A noção de abuso, na lição de Orozimbo Nonato, vale como uma afirmação de justiça contra a lei. “E porque a noção do justo é, sobretudo, moral, é em um elemento moral que a teoria do abuso do direito lança suas raízes mais profundas” (Apud CARVALHO SANTOS, J. M. Op. Cit., p. 340, 341).
Não apenas a lei estabelece os limites do exercício, mas ainda os costumes, a equidade, a ordem social, o espírito de justiça, a solidariedade social, etc. Há um limite não expresso, de caráter geral, que é dado pelo objetivo pelo qual o legislador ao próprio direito tenha concedido. Quando o limite é traçado pela lei, o exercício do direito que for além dos limites objetivos dá lugar a verdadeira e própria violação do direito. Quando não é expresso, o exercício anormal e contrário à essência mesma do direito constitui uma forma especial de violação, denominada abuso do direito. (Cf. AZZARITI, Francesco S. et MARTINEZ, Giovanni. Op. Cit., p. 17).
Os juristas citados faziam uma distinção. Se a lei estabelece expressamente os limites de certo direito, não se fala de abuso e a atividade do titular dentro do limite não poderá resultar ilegítima, ainda que ele opere de má-fé e em observância rigorosa da lei, mais que o seu proveito, proponha-se a prejudicar outrem. Dir-se-á melhor, nesse caso, abuso e direito apresentam-se como termos inconciliáveis e contraditórios. Assim, o proprietário de um terreno não pode opor-se a que o vizinho faça cisterna, fossa, etc. na distância estabelecida pela lei, embora possa sentir-se molestado, e o vizinho tivesse a possibilidade de fazê-lo mais distante. Quando a lei não põe algum limite expresso, ocorre considerar caso a caso, se o exercício não vai além da finalidade do próprio direito, que dali mostra sua natureza e, excedendo-lhe o conteúdo, não propicie evidentemente aquele abuso, que não pode considerar-se consentido pela lei. (Id. Ibid., p. 18)
Outro exemplo é citado por LAURENT, no caso em que a lei estabelece o próprio limite, o que ocorre, regra geral, em matéria de vizinhança : ao trabalhar a terra de meu jardim, corto as raízes de árvores do jardim vizinho, as quais acabam morrendo; a lei permite-me cortar as raízes quando adentram no meu terreno. Usando esse direito, firo o direito do proprietário ? Não, pois este violou a lei pelo fato de que as raízes de suas árvores se prolongaram sobre o terreno vizinho. (Op. Cit., p. 311).
Os autores são acordes em que os limites do exercício de um direito são dados tanto pelo seu próprio conteúdo, quanto por expressa disposição de lei, que lhe restrinja o conteúdo normal, quanto pelo fim a que visa .
Lembramos que nosso Estatuto Civil não permite o exercício de má-fé, mesmo se dentro dos limites traçados, uma vez que agregou a esses limites princípios solidários de convivência humana que afastam o uso abusivo do direito.
10 - ABUSO DO DIREITO
Para expor os limites do exercício do direito, faz-se mister adentrar na teoria do abuso do direito, cuja noção veio sendo galgada paulatinamente na doutrina e na jurisprudência para, ao final, vir expressamente positivada no art. 187, Código Civil/2002).
Poucos Códigos Civis cuidaram expressamente da previsão do abuso do direito e, aqueles que o previram, tomaram posições diversas. Consoante isso, temos o disposto no § 226 do Código Civil alemão (proibição de chicana), que fundamenta a noção de abuso no exercício que tenha por fim exclusivo causar dano a outrem. O Código Suiço, artigo 2º., caracteriza-o pela má-fé no seu exercício:
“Art. 2º. Chacun es tenu d’exercer ses droits et d’ exécuter ses obligations selon les règles de la bonne foi”(omissis). L`abus manifeste d’un droit n’est pas protégé par la loi (omissis).
“Art. 3º. La bonne foi est présumée, lorsque la loi en fait dépendre la naissance ou les effets d’un droit.
Null ne peut sa bonne foi, si elle est incompatible avec l`attention que les circonstances permetaient d`exiger de lui”
No Código brasileiro anterior, ele se configurava como exercício irregular (art. l60, I) ou, como expressa Saleilles, o exercício anormal. Seu pressuposto básico era o excesso no exercício, o exercício anormal. Coube ao Código de 2002 encerrar a discussão, abraçando expressamente (art. 187) a teoria do abuso do direito, incluindo-a na categoria de atos ilícitos, tanto quanto ao aspecto subjetivo (intenção de causar dano, má-fé), quanto ao aspecto objetivo (uso contra sua finalidade), encampando as diferentes opiniões dos doutos, fazendo coro ao que dispusera o Código Civil português, art. 334.
O Código Civil português, na linha da doutrina moderna, prevê-o expressamente (artigo 334º.),
Caracteriza-o pelo excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, bons costumes, ou pelo fim social ou econômico desse direito.
No Código Civil italiano, são proibidos ao proprietário os atos de emulação, no artigo 833, mas não existe proibição genérica. O proprietário não pode praticar atos os quais não tenham outro escopo senão o de prejudicar ou acarretar moléstia a outrem (artigo 844).
O direito codificado argentino não ampara o uso abusivo dos direitos, considerando como tal aquele que contrarie os fins que a lei teve como objetivo, ao reconhecer os direitos ou o que exceda os fins impostos pela lei, pela boa-fé, pela moral e pelos bons costumes (artigo 1071, 2ª. parte). Este texto foi inserido pela lei n. 17.711/1968 que trouxe inovações ao Código Civil, cuja vigência é de 1869.
`A falta de texto expresso, para a jurisprudência francesa, o direito só pode ser exercido, tendo em vista a satisfação de um interesse sério e legítimo. O abuso do direito consiste em seu desvio, caracterizado para obter indiretamente um resultado evidentemente estranho aos interesses legítimos, para a savalguarda dos quais o direito foi instituído. (Cf. WALINE, Marcel. Responsabilité publique et responsabilité privée. Pari: LGDJ, 1957, p. 384).
Historia MARIANO D’AMELIO sobre as mais variadas e opostas tendências sobre o abuso dos direitos. Entre os extremistas, há os que nele veem um renascimento do idealismo jurídico; outros negam completamente a possibilidade de uma doutrina de tal nome. Os negativistas dizem que a expressão abuso do direito é uma contradição in terminis, pois se aí há abuso, não há direito e, se há direito, não há abuso. D’AMELIO rechaça a tese, argumentando que o direito não é um conceito absoluto. Ele é proporção e, como tal, tem limite. Além desse limite, não é mais operante como força social, protegido pelo Estado. A máxima comumente admitida Summum jus summa injuria não exprime ideia diversa. Trata-se , também aqui, do limite, tão essencial ao direito.
Se o limite é fixado pela lei, a questão não se coloca tampouco, porque além do mesmo há o não direito ou atividade ilegal e o dano que essa ocasiona é injuria datum (produzido pela injúria). Se o limite não é expresso, deve-se verificar se não se encontra na própria natureza do direito e, buscando-o, com objetividade e boa vontade, é encontrado sempre. Excedê-lo é violação nos efeitos, igual à violação do limite expresso. (Cf. Nuovo Digesto italiano. Torino: UTET, 1937, V. I, p. 49).
Mas, observa o autor, é necessária a advertência guardar-se de abusar do “abuso do direito”, como não é raro acontecer na prática, o que se obtém buscando na essência do instituto e descobrindo exatamente o limite do direito, quando não é fixado pela lei.
Aqueles que têm acreditado na colocação do problema diversamente, imaginando que o abuso seja um caso de conflito de direito, ou conflito entre o direito e a moral, ou um turbamento do equilíbrio dos interesses, têm plenamente justificadas as agudas críticas levantadas contra suas concepções. O problema, portanto, consiste em investigar o limite do direito quando não é fixado pela lei. Primeiro a doutrina, depois a legislação vieram em auxílio da jurisprudência que, por seu lado, esforça-se durante muitos séculos, para indicar caso por caso os limites pesquisados. Para Josserand, quando o limite não é expresso em lei, seu exercício é livre, mas pode ocorrer o abuso, seja por maldade do titular (abuso subjetivo) ou independentemente de má-fé, usando-se do direito contra sua própria finalidade ( abuso objetivo). (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 49).
Para SALEILLES, o abuso está no exercício anormal do direito, contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, reprovado pela consciência pública e extrapolação, consequentemente, do conteúdo do próprio direito.
ROTONDI nega a existência da doutrina do abuso do direito. Afirma que, pela evolução da consciência jurídica, das condições morais, técnicas, econômicas, etc., a finalidade, para a qual o direito foi concedido, e o seu conteúdo podem mudar substancialmente de uma época para outra, e que, portanto, pode ser considerado abuso aquilo que tempos atrás era um uso normal e legítimo (Cf. D’AMELIO. Op. Cit., p. 49).
Historicamente, fixando-nos na doutrina, segundo o resumo de BEVILLÁQUA:
- Para uns o abuso do direito estaria no seu exercício, com intenção de prejudicar alguém;
- Outros entenderam que sua característica estva na ausência de motivos legítimos, conforme opinião de Josserrand, exposta anteriormente;
- Seria a negligência ou imprudência associada à intenção de prejudicar (Capitan);
- O abuso estaria no seu uso anormal (Saleilles); Acolhida pelo Código Civil brasileiro de 1916, segundo BEVILÁQUA, e pela jurisprudência, pelas expressões “uso regular do direito” como excludente de ilicitude;
- Seria ofensa à personalidade : “há ofensa ao direito de personalidade, quando alguém abusa de seu direito de modo que ofende a outrem”( Köhler);
- Para Bardesco as fórmulas propostas são insuficientes, contudo se complementam , devendo ser aceitas até que, mais firme o estado jurídico por elas representado, possa traduzir-se por um critério único. (Cf. Op. Cit., V. I, p. 425).
Em síntese, há a doutrina objetiva que reduz os direitos a seus efeitos; a subjetiva funda-se no móvel da realização do ato e não no seu resultado; há outros doutrinadores que adotam o critério intencional de causar prejuízo e outros defendem a ideia preconizada por JOSSERRAND (détournement du droit). (Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria. O silêncio como manifestação de vontade nas obrigações. Rio Janeiro, Walter Roth Ed., 1944, 2ª. ed., p. 147).
Doutrina do início do século XX, fundamentada no Código Civil português anterior, mostra-nos o avanço que apresentava sobre a matéria:
“As restrições que a lei impõe ao exercício dos direitos baseiam-se não só no interesse geral ou na utilidade pública, mas ainda na equidade. É assim que a pessoa que exerce um direito, tendo por fim interesses, deve, em colisão e na falta de previdência especial, ceder a quem pretende evitar prejuízos”(art. 14 C.Civil anterior). ( MOREIRA, Guilherme Alves. Op. Cit., p. 632).
No direito brasileiro, ainda na vigência do Código anterior, sustentou-se que o exercício deveria conter-se no âmbito da razoabilidade. Havendo excesso ou, embora sendo exercido, causasse mal desnecessário ou injusto, a atitude do titular equiparava-se ao ato ilícito, com o consequente dever de ressarcimento (Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio Janeiro: Forense, 1.990, p. 316).
Não era preciso indagar a intenção única do titular em lesar; bastava que lesasse, com culpa. “As circunstâncias podem, objetivamente, compor o caso do exercício irregular”. O critério, segundo se tem por irregular o exercício, quando o interesse único for lesar, não basta no direito brasileiro . (CF. PONTES. Op. Cit., p. 293). A atitude do legislador brasileiro é contrária à máxima Qui iure suo utitur neminem laedit, pois, se o exercício lesar, é contrário a direito. (Id. Ibid.). O uso deve ser normal, ao contrário será abusivo. (Beviláqua. Op. Cit., V. I, p. 426).
O exercício deve ser normal, regular. Sendo anormal ou irregular, o titular fica obrigado à reparação. “ É a mesma teoria da responsabilidade civil fundada na culpa, abraçada pelo nosso Código”. Exemplificando, alguém em sua propriedade provoca emissão de fumaça ou produz ruído. Se eles excederem ao normal, ao comum, haverá abuso. O mesmo prevalece em caso de demanda intentada por espírito de emulação, capricho ou erro grosseiro ( art. 3º. do CPC anterior; arts. 16 e 17 do atual CPC), como também o abuso verificado no exercício dos meios de defesa. (Cf. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil-parte geral. S. Paulo, Saraiva, 1982, 21ª. ed., p. 282 e ed. de 2012, p. 358). Essa doutrina segue as pegadas de PLANIOL, para quem o abuso do direito não constitui uma categoria distinta dos atos ilícitos, doutrina não acolhida pelo nosso Código Civil vigente.
Em face do nosso Código anterior, a doutrina já sustentava que o abuso consiste no exercício irregular, anormal; no exercício com excessos, intencionais ou involuntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem; é a doutrina versada em excelente parecer de PLÍNIO BARRETO. (Cf. Revista dos Tribunais. S. Paulo, V. LXXIX, p. 506, agosto/1931).
Condensando: o Código Civil atual eliminou qualquer dúvida ao preceituar, caracterizar como ato ilícito o abuso do direito. Além do excesso do exercício expresso em lei, há excesso nos limites ditados pelos fins econômicos ou social, pela boa-fé, pelos bons-costumes. Enfim, há abuso seja sob aspecto subjetivo ou objetivo, isto é, independentemente de existência de culpa, bastando haver desvio de sua finalidade; o animus nocendi não é requisito único.
A doutrina comumente destaca três categorias inseridas na teoria do abuso do direito:
- “Venire contra factum proprium” – o comportamento do indivíduo é antagônico a comportamento seu anterior, que gerou expectativa para terceiro e lhe causa prejuízo; veda a prática de atos incoerentes com aqueles já praticados antes, licitamente, e que, analisados conjuntamente, tornam-se ilícitos. Destacando o princípio da boa-fé objetiva, positivado no atual Código, e que se presta à interpretação dos contratos, invoca CAIO MÁRIO o venire contra factum propium : este “ veda que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior do inciviliter agere, que proibe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a invocação de uma cláusula ou regra que a própria parte já tenha violado”. (Instituições, op.cit., v. III, 2005, p. 21).
- “Supressio” – consiste na perda do direito de ação, por fazer crer que o direito não seria mais exercido. Caracteriza-se pela confiança que alguém deposita em outrem, quanto ao não exercício de direito subjetivo, durante certo tempo, em função da inércia do titular, somada a indícios de que não o exercitaria e, vindo a exercê-lo, com isso, causa prejuízo a outrem;
- “Surressio” - ao contrário da supressio é uma ampliação; surgimento de um direito, em virtude do comportamento reiterado de outrem, ainda que não previsto em lei ou acordo para o indivíduo. É quando o comportamento de outrem produz uma expectativa, que não fora acertada antes, quanto ao exercício de um direito, fazendo-se constituir outro direito.
Quanto ao campo de atuação, o abuso do direito pode ocorrer em qualquer prática de um ato jurídico, quer no direito de família, no de propriedade, no direito trabalhista, na demanda em juízo, etc., e mesmo nas relações contratuais, porque é assente nelas o princípio do exercício de um direito e o abuso resulta numa fórmula abstrata e geral. Nem tudo que não é proibido é permitido.
Exercitando-se irregularmente o direito de contratar, comete-se ato ilícito, acarretando sua nulidade, que pode ser total ou parcial, dependendo se a parte nula puder ser extraída do contrato, reduzindo-o à parte lícita, conforme regra preceituada no art. 184, do Código Civil (“A nulidade parcial de um ato não o prejudicará na parte válida, se esta for separável”).
Encontra-se nas relações de consumo ( Lei no. 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Proteção ao Consumidor), art. 51, § 2º:
“A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”.
§ 4º. “É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade da cláusula contratual que contrarie o disposto neste Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes”.
Em suma, não se permite qualquer abuso do direito no Código de Proteção ao Consumidor. A seção IV é dedicada às práticas abusivas, sendo as condutas ilícitas nela descritas. Tais práticas consistem na discriminação do consumidor, aproveitando-se de seu desconhecimento, de sua limitação cultural, em benefício do fornecedor e consequente prejuízo ou desconforto para a outra parte. Ademais, ocorre uma profunda inovação nas regras contratuais, ao se adotar o princípio do favor consummatoris, expresso no artigo 47 :
“As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.
Além da regra do artigo 187, no qual se positiva a fórmula geral de proibição do abuso do direito, a nossa Lei Maior também contempla a mencionada proibição, quando cuida do exercício do direito de greve.
“Art. 9º. - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º. ( omissis)
§ 2º. - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei “.
São várias as situações previstas em leis especiais, bem como a contida no Código de Processo Civil ( arts. 16-18, 811, 881) sobre a litigância de má-fé, e ainda no próprio Código Civil ( arts. 1277, 1280) sobre o mau uso da propriedade, que pode ofender tanto a segurança do vizinho ou de seus bens, seu sossego e sua saúde.
10.1 – REQUISITOS
No âmbito do direito positivo e da doutrina brasileiros anteriores ao Código de 2002, foram apontados como requisitos para caracterização do abuso do direito:
- Quando o direito é exercido com o fim de causar dano a outrem. Em matéria processual costuma ocorrer, tanto que há previsão de suas consequências no próprio Código de Processo Civil. O artigo 16 impõe obrigação de responder por perdas e danos a quem pleitear de má-fé, seja como autor, réu, interveniente; O artigo 17 enumera em que situações se considera litigante de má-fé e o artigo 18 determina o pagamento de multa, a indenização e em que ela consiste; o artigo 811 enumera os casos de indenização por prejuízos ao requerente do processo cautelar; o artigo 881, que trata do atentado, dispõe sobre o ressarcimento por perdas e danos à parte lesada em consequência do atentado.
- Quando o titular exerce o direito levianamente, sem procurar evitar prejuízos alheios. (Cf. CHAVES, Antônio. Op. Cit., p. 1570, 1571).
Examinando o texto do Código anterior, consignou PLÍNIO BARRETO dois pressupostos:
“- Quando o único efeito que o ato praticado pelo agente poderia produzir fosse o de prejudicar a outrem;
- Quando o agente realiza o ato sem interesse apreciável e legítimo”. Não é suficiente que o ato lese outrem, mas sim que tenha sido realizado sem que ao agente assistisse direito legítimo de fazê-lo ou interesse apreciável em fazê-lo. O exercício é irregular, anormal; supõe aquele direito exercido ou com dolo, ou com negligência ou imprudência (Id. Ibid., p. 511). Nada mais é, na versão do autor, a teoria do ato ilícito.
Após discorrer sobre a opinião de autores estrangeiros, CARVALHO SANTOS comunga com a mesma opinião de PLÍNIO BARRETO. Ao exigir a intenção maléfica para caracterização do abuso, a jurisprudência brasileira restringe a verdadeira inteligência do texto legal. Em nosso direito, a doutrina do abuso do direito só pode ser encarada como parte integrante da teoria geral do ato ilícito. Quer dizer, o abuso resulta da má-fé, da culpa, qualquer que seja a forma de imprudência, quer sob a negligência, nos termos do artigo 159 (atual 186). (Op. Cit., p. 350).
A formulação da teoria do abuso do direito não se afigura questão simples. Lembrou AGUIAR DIAS que o excesso de palavras, nessa matéria, tem feito muito mal à compreensão do problema. (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. Rio Janeiro: Forense. 1873, V I, p. 490).
CARVALHO SANTOS não contesta BEVILÁQUA quando diz que nosso Código Civil de 1916 tenha seguido a doutrina de Saleilles, entretanto admitiu-a na sua primitiva opinião, qual seja : “há abuso do direito no exercício anormal do direito, exercício contrário ao destino econômico ou social do direito subjetivo, exercício reprovado pela consciência pública e que ultrapassa, conseguintemente, o critério do direito, pois que todo direito, do ponto de vista social, é relativo”. Na revisão do projeto do código civil francês, Saleilles propôs a incorporação do seguinte teor : “Um ato cujo efeito não pode ser senão o de prejudicar a outrem, sem interesse apreciável e legítimo, para aquele que o realiza, não pode, jamais, constituir o exercício lícito de um direito”. Se nosso Código tivesse esposado a última doutrina de Saleilles, escreve CARVALHO SANTOS, “Realmente a intenção de prejudicar, sendo exclusiva, nada mais é do que o dolo, não se podendo conceber como um dolo possa ser culposo, originário de negligência ou imprudência”. Se cai por terra a possibilidade de exigir-se a intenção, diante da incompossibilidade com a culpa, “Não há razões para se admitir como essencial esse requisito, mesmo no caso do abuso de direito resultar do dolo.”(Cf. Op. Cit., p. 354).
Destaca o autor que nosso Estatuto de 1916 não seguiu a doutrina de Saleilles na sua íntegra, pois repeliu o objetivismo preconizado nela e aceitou apenas a parte em que aquele jurista faz conter o direito nos seus justos limites, passando a ter caráter de anormalidade condenável sempre que houver ofensa ao destino econômico e social que ao direito se atribui. Não basta a simples existência de prejuízo; além deste, é preciso que tenha sido anormal o exercício do direito.
O conceito de abuso do direito é formulado por AGUIAR DIAS como sendo:
“Todo ato que, autorizado em princípio, legalmente, se não conforme, ou em si mesmo ou pelo modo empregado, a essa limitação. Há, ninguém duvida, um direito de prejudicar. Mas para que se possa exercer, é preciso estar autorizado por interesse jurídico-social prevalente, em relação ao sujeito passivo da ação prejudicial”. (Op. Cit., v II, p. 495).
Analisa o eminente autor a teoria de Savatier ( que não aceita a teoria autônoma do abuso do direito) e reconhece a existência, como instituto autônomo, do abuso do direito. (Id. Ibid., p.123). Cuidando do direito brasileiro (artigo 160,I, Código anterior), sustenta que muitas das aplicações têm-lhe desconhecido totalmente o sentido, ao exigirem o elemento culpa para caracterização do abuso e endossa o pensamento de Lino Moraes Leme, quando afirma que, para apurar o abuso cumpre examinar “Se o ato é suscetível de proporcionar um interesse qualquer, do qual a lei tenha por missão garantir a realização pecuniária ou moral”. Retira desse autor o exemplo : “Matar o gado alheio que pasta em meu campo, por exemplo, é um abuso de direito, porque o direito requer... que eu respeite o direito alheio de propriedade sobre o gado, pois o direito existe como regra de coexistência social - é o conjunto orgânico de condições de vida e desenvolvimento do indivíduo e da sociedade”. (Id. Ibid., 1983, v. II, p. 505).
Diante de todo esse transbordamento das teses dos mais expressivos civilistas, evoluímos até à consagração definitiva da figura do abuso do direito como está atualmente.
10.2 - OFENSA AO DESTINO ECONÔMICO E SOCIAL, AOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DOS BONS COSTUMES
A essa ofensa, aspecto objetivo, a doutrina moderna já dava relevância. Seria ela o fundamento do abuso do direito atualmente? No direito italiano, encontramos a lição de CHIRONI que assenta estar o abuso propriamente dito não na materialidade da ação, já que o agente tem direito de exercício, mas no fato de que, ao ofender direito alheio, quebra as regras que regem o uso normal do direito. Regras essas que se reduzem em que o direito como formação social ( e vontade social é a lei que o assegura), realiza-se pelo sujeito, naqueles termos que implique no equilíbrio entre o interesse do indivíduo e o da coletividade, impondo que o direito seja exercitado em conformidade com seu fim , e como o exercitam e o exercitariam, dada sua posição econômico-social, a maior parte das pessoas a quem pudesse corresponder. Este limite deduz-se da função social do direito. ( CHIRONI. La culpa en el derecho civil moderno. Trad. Bernaldo de Quirós. Madri: Ed. Reus S/A, 1928, t. II, p. 380).
A doutrina do abuso do direito acha-se sintetizada pelo ilustre civilista BEVILÁQUA. Aponta a contribuição da Sociologia para a solução do problema. Se o direito tem por função manter em equilíbrio interesses sociais que se colidem, desvirtuará do seu destino, quando se exagerar, no seu exercício.
“Essa tendência depuradora do direito e a sua finalidade social exigem a socialização do exercício. O direito é a resultante das solicitações dos interesses do indivíduo e da sociedade. O seu exercício deve seguir a linha média traçada por essas duas solicitações”. Direito é meio de realizar-se um fim. Citando Bardesco, continua :
“Abusar do direito é tomar o meio pelo fim, é exercê-lo de modo contrário ao interesse geral e à noção de equidade tal como se apresenta, num dado momento da evolução jurídica. Abusar do direito é servir-se dele egoisticamente, e não socialmente. Em um estado jurídico, em que a justiça e a equidade tendem, como atualmente, à socialização do direito, o seu abuso compromete a responsabilidade de quem o pratica”. (Op. Cit., p. 425).
A intenção do agente (elemento subjetivo) não é elemento que determine se, no exercício, houve ou não a vontade de causar prejuízo, anota GUILHERME A. MOREIRA, em comentários ao Código Civil português anterior, “Essa intenção resulta do próprio exercício do direito, quando, tendo-se em consideração todas as circunstâncias, ele só pode explicar-se pelo intuito de causar um dano”. “...Atende-se ao exercício do direito considerado em si e em relação ao modo por que os homens costumam proceder em harmonia com as regras da boa-fé ou com as normas da moral social”. (Op. Cit., p. 638).
Em nosso atual Código, agregam-se à finalidade econômica ou social os limites impostos pela boa-fé ou bons costumes (art.187).
10.3 - SILÊNCIO COMO ABUSO DO DIREITO
Qui tacet, consentire videtur ( quem cala consente)? O vetusto adágio, originário do direito canônico, não mais significa, no estado atual da cultura jurídica, necessariamente o consentimento. A lei pode atribuir à ausência de manifestação de vontade tanto a recusa quanto a aceitação, dependendo do direito que estiver em jogo. A evolução jurídica demonstra-nos, como anota CARVALHO SANTOS:
· A primeira doutrina considera o silêncio como manifestação de vontade, em muitos casos. Aconteceria sempre que quem guardou silêncio estivesse na possibilidade e na obrigação de falar;
· Outros deram pequena variante à doutrina acima : “Há casos em que se é obrigado a falar, de sorte que, se se cala, incide-se em culpa e fica obrigado a reparar”;
· Para outros, não existe essa obrigação de falar, pois ela não é nem moral nem jurídica. Mediante coação, a pessoa expressa-se, embora não tivesse desejo de dizer nem sim nem não;
· Para DEMOGUE, o homem tem deveres na sociedade; em certos casos, deve falar e não o fazendo, age com culpa, pela qual responde (Cf. Op. Cit., p. 368, 369).
O eminente comercialista CARVALHO DE MENDONÇA admite a produção de manifestação de vontade , através do silêncio, apenas nos casos em que a lei permite, salvo em se tratando da existência de relações precedentes, mais ou menos prolongadas entre comerciantes, sem o costume da aceitação. (Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria. O silêncio como manifestação da vontade nas obrigações. Walter Roth Ed.. Rio Janeiro, 1944, 2ª. ed., p. 108).
Para BATISTA DE MELO, o silêncio “É uma realidade jurídica nos casos em que atua como manifestação virtual da vontade, salvo disposições legais em contrário”. (APUD SERPA LOPES. O silêncio..., p. 111).
Reconhece SERPA LOPES, em sua memorável obra sobre a matéria, que no nosso Código Civil de 1916 há muitos casos nos quais o silêncio era portador de relevantes efeitos Os art. por ele mencionados tiveram sua reprodução no atual Código quase em sua totalidade: artigos 94 (atual 147), 161(191), 522(1224), 548 § único(1256, § único), 683 (enfiteuse-extinção), 1.079 (sem correspondente- estaria no art. 111), 1.084(432), 1.166(539), 1.195(574), 1.292(659), 1.293(sem correspondente), 1.581 § 1º.(1805), 1.584(1807). (Op. Cit., p.144).
São apontadas por esse autor duas teorias que procuram justificar o fundamento da responsabilidade pelo silêncio: a da responsabilidade extracontratual e a teoria do abuso do direito. Esta última deve-se a M. René Propesco Ramniceano, que lançou a ideia ao tecer comentário sobre um julgado de Douai, e para quem tal ideia consiste na única forma de conciliação das duas concepções divergentes : a que não permite a possibilidade de forçar alguém a dar resposta e a que estabelece obrigação de falar, em certos casos. Para ele, o silêncio absoluto nada exprime e o silêncio circunstanciado não passa de uma forma de manifestação tácita, decorrendo das circunstâncias, dos usos e dos preliminares de acordo.
SERPA LOPES aponta as falhas à teoria de Propesco (silêncio como abuso do direito), acreditando que não há espaço para a noção do abuso do direito, já que, em se tratando de silêncio, não se cogita do abuso do direito de não responder, “Mas da obrigação de falar, em dadas circunstâncias, de um dever a cumprir, através de uma ação física positiva.
Surgem duas entidades autônomas : o direito de não responder, de um lado; a obrigação de falar, de outro, emergindo uma ou outra, consoante o império e a natureza das circunstâncias em causa. Uma e outra não se confundem”. (Op. Cit., p. 147).
Defende que o problema consiste em interpretar o silêncio como manifestação de certa vontade, ou não, conforme exista, ou não, certa obrigação de falar. Indaga : “Como cogitar de abuso de direito, se uma parte, v. g.., sob o fundamento do silêncio-consentimento, exigir da outra uma prestação e esta reconhecer aquela forma indireta de aceitação e cumprir a obrigação?
Observa que transferir para a questão do silêncio a do abuso do direito é sair de uma areia movediça para entrar em outra. Embora reconheça o princípio do abuso do direito, aponta dissenso dos juristas quanto ao critério regulador desse princípio.
Destaca, outrossim, que há a hipótese de que, fora do campo contratual, a noção de culpa venha a lhe servir de fundamento, mas, em tal caso, não se defronta com um abuso do direito de abstenção.
“O que ocorre é a violação de um dever de agir ou de falar, dever esse imposto por essa mesma solidariedade social”. Podendo ser assentado sobre o princípio da solidariedade social, a questão do silêncio é pura forma de manifestação do querer.
Finaliza, dizendo que todos os juristas e a jurisprudência afirmam, unanimemente, que para existir abstenção culposa é necessário preexistir obrigação de agir. “Há deveres gerais de fazer. Assim, a atitude de um guarda, deixando o seu inimigo atravessar um ponto perigoso sem adverti-lo, ou quando se ausenta de seu posto, falta com os seus deveres de vigilância e de que resultou um acidente”. ( O silêncio..., p. 147, 148).
O atual Civil brasileiro, no livro III, título I, capítulo I, que trata do negócio jurídico, consigna o silêncio como expressão de vontade, mas dentro de reservas. Não se trata de regra geral aplicada a todas as situações.
“Art. 111 - O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”.
A obra de René Propesco “Le silence créateur d’obligation et l’abus du droit” traz as conclusões infra, compendiadas por CARVALHO SANTOS:
De acordo com o autor francês, o problema do silêncio, encarado como descrito anteriormente, não resolve todos os casos nos quais o silêncio pode produzir efeitos. “Porque se faz depender a circunstância do silêncio valer como declaração de vontade do fato de haver relações de negócios anteriores entre as partes, necessariamente essa fórmula não abrangeria muitas outras hipóteses, em que do silêncio resultou prejuízo a outrem , sem a ocorrência daquela sequência de transações”.
Deste modo, se X não previne Y, sendo que este considera concluído o negócio e informa sobre a remessa do objeto supostamente contratado e, com esse fato, realiza despesas, mesmo inexistindo relações anteriores entre eles, Y teve prejuízos e X é obrigado a repará-los. Porém, essa obrigação de reparar não é resultante de obrigação moral ou jurídica de falar, nem se poderá admitir que seja corolário do princípio de valer o silêncio como manifestação de vontade. (Cf. Op. Cit., p. 369).
“A doutrina do abuso de direito é que resolve a hipótese. René Propesco isso demonstra de modo satisfatório, acrescentando:
“Conciliam-se, assim, as duas concepções contrárias: aquela que não admite que se possa forçar alguém a dar uma resposta e aquela que obriga a falar em certos casos. Se, com efeito, eu tenho o direito de não responder a uma oferta que me fazem, não tenho, porém o direito de abusar de meu silêncio, quando me calando vou prejudicar cientemente a outrem. Eu fico, pois, responsável, porque, em me conservando calado, eu agravei a situação de um terceiro, quando com uma simples palavra de minha parte poderia ter esclarecido minhas intenções e lhe evitar danos inúteis. Há, portanto, abuso do direito”. (Cf. CARVALHO SANTOS. Op. Cit., p.370).
Conclui CARVALHO SANTOS que o silêncio pode constituir abuso do direito, se o agente/titular guarda silêncio, sabendo que esse ato prejudica a outrem; se o silêncio resulta de negligência do agente, de uma maneira incorreta de usar seu direito, há abuso, com a consequente obrigação de reparação dos danos advindos. “A responsabilidade existe em não fazer aquilo que se podia acreditar fosse feito, como diz Emmanuel Levy; nós somos responsáveis na medida em que terceiros confiam em nós para agir”. (Op. Cit., p. 370).
10.4 - ATOS EMULATIVOS
A teoria do abuso de direito é vasta, conforme já dissemos, e os atos de emulação constituem um capítulo da mesma e têm um tratamento autônomo, principalmente tendo-se em relevo sua longa história que lança luzes no direito romano.
Foram os atos de emulação que deram impulso à formação da doutrina geral do abuso do direito, através do direito medieval e das primeiras codificações. Encontramos, na doutrina italiana, que, quem exercita o direito por nenhuma utilidade, mas com intenção de ocasionar dano a outrem comete ato emulativo, quer dizer, abuso do direito. (Cf. CHIRONI, G. Elementi di diritto civile. Torino: Fratelli Bocca Ed., 1914, p. 103).
O atual Código Civil italiano fala em ato emulativo referente à propriedade ( art. 833). Relativamente ao abuso do direito, este é tido como contraditório à utilização de um direito para fins diversos daquele que a lei objetivou tutelar, sendo prescindível sua colocação em texto expresso.
10.4.1 - CONCEITO –
Atos emulativos são os atos de exercício de um direito, que enquanto produzem dano material a outrem, não beneficiam a quem os realiza, e que, além disso, foram determinados exclusivamente pela intenção de prejudicar terceiro. São atos ilícitos, não por acarretar prejuízo, porquanto o exercício regular do direito pode, igualmente, ocasioná-lo, não porque não trazem benefícios ao titular do direito, mas sim pelo intuito maldoso. (Cf. COVIELO. Op. Cit., p. 485).
Anteriormente à vigência do Código Civil italiano de 1942 (este contém proibição ao proprietário da prática de atos emulativos - art. 833), o problema de sofrerem proibição aqueles atos ou serem permitidos não se achava resolvido entre os tratadistas. Os partidários de sua proibição davam o fundamento de que a lei não devia proteger o ato doloso de quem se vale do próprio direito para danar outrem, invocando os princípios da moral e do direito, e que não devemos ter indulgência com atos originados de más intenções (Malittis non est indulgendum). Ainda : A proibição funda-se sobre o princípio geral de que só o interesse pode justificar a proteção da lei.
Os que negavam a proibição, arrazoavam aduzindo a integridade e plenitude do direito. A lei não podia apadrinhar o dolo, mas não se pode duvidar que o titular tenha realmente direito de exercitá-lo, conforme lhe convier, sempre que a lei ou outra limitação expressa não o impeça. Mesmo porque o juízo sobre a intenção, além de fundar-se em elementos sinistros, dada a matéria sobre a qual se atua, seria ainda uma contínua ameaça, uma fonte de controvérsias que impediriam o titular de atuar, quando seus interesses se fizessem necessários. ( Cf. CHIRONI, Gonario. La culpa en el derecho civil moderno. Trad. Bernaldo de Quirós. Madrid: Ed. Reus, 1928, t. II, p. 381, 382).
Após examinar outras teorias, conclui o mestre de Turim que a proibição dos atos emulativos deduz-se do conceito exposto do abuso do direito; estarão proibidos, enquanto por eles o agente abusa de seu direito, e há no abuso uma parte lícita em seu exercício, e outra ilícita que não pode reputar-se como ato legítimo; o ato será lícito, enquanto induza uma modificação sobre o objeto do próprio direito, e será ilícito o mesmo ato, enquanto sua realização obedeça ao propósito de prejudicar a terceiro... A razão da responsabilidade assenta-se nesse propósito, não só pelo dano produzido, senão em haver desviado intencionalmente de seus próprios fins o direito contra as normas gerais características de sua prístina função social, e que por isso impõe-se a todos. Para o autor, não é necessária disposição expressa de proibição dos referidos atos. (Op. cit., p. 383)
Para que as noções do abuso e ato emulativo se fixem mais claramente, lançamos mão da doutrina de AZZARITI e MARTINEZ:
Contudo, se os atos emulativos, sob o aspecto de sua antítese com o escopo do direito, vão exatamente enquadrados na geral proibição do abuso do direito, bem mais amplo e comprensivo se nos apresenta o conceito de abuso do direito, pelo qual deve prescindir totalmente da particular e difícil indagação sobre a boa-fé do sujeito (a má-fé é, diversamente, inseparável do conceito de emulação), e estabelecer-se, com critérios meramente objetivos, se o ato do indivíduo contrasta com o escopo pelo qual o direito mesmo é concedido. (Cf. Op. Cit., p. 18, 19).
Doutrina antecedente ao atual Estatuto Civil português, ao argumento de que o direito só tinha por limites seu próprio conteúdo e os que são expressos na lei, entendia que a lei portuguesa não proibia os atos emulativos (Cf. MOREIRA, Guilherme A. Op. Cit., p. 633). Portanto, desde que o titular respeitasse os referidos limites, poderia exercitar seu direito com o fim único de causar dano a outrem.
A proibição de atos emulativos encontra-se no atual Código Civil português, enquadrada no amplo conceito do abuso de direito, quando diz ser abusivo o excesso dos limites impostos pela boa-fé , pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do direito (artigo 334).
No nosso direito, no Código Civil de 1916 (art. 160) ao consignar o legislador o exercício regular, quis significar que o direito deve ser contido, razoável, o que nos conduz para uma ação justa. Sendo exercido o direito dolosamente, caracteriza-se o animus emulandi. Observa BEVILÁQUA “Desde muito cedo, as melhores consciência sentiam que o direito deve ser exercido dentro de certos limites éticos.” (Op. Cit., p. 424).
No Código atual, considerando que a equidade e a solidariedade são princípios que permeiam todo seu contexto, estão os atos emulativos inseridos na disciplina do abuso do direito, conforme já vimos.
ATOS EMULATIVOS caracterizam-se pela competição, rivalidade, concorrência. Recentemente, tem-se argumentado sobre a existência de outra figura que é o ASSÉDIO PROCESSUAL. Assédio encerra perseguição, neste caso, ligada a uma demanda judicial. A parte usa e abusa de seu direito, sem qualquer benefício próprio, apenas para protelar o feito, causando transtorno à outra parte. Parece-nos que essa atitude não se afasta do conceito geral do abuso do direito, no seu aspecto subjetivo (animus nocendi).
De há muito o STJ reconhecera o abuso do direito ao recurso (Cf. Agravo Regimental no REsp. mº 155.150-RS, j. em 1998).
11 - CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Nesse caso, o ato deixa de ser lícito. Adotando-se a teoria da extrajuridicidade, acolhida por PONTES, pode-se falar aqui, ao contrário do ato em estado de necessidade, em concorrência culposa, visto que o fato não é simplesmente um ato-fato, mas ato que entra no mundo jurídico, ao por em ação as faculdades de um direito.
12 - NATUREZA DA RESPONSABILIDADE NO EXERCÍCIO DO DIREITO
No exercício do direito, especificamente cuidando-se de construção de obra, não é raro ocorrer o conflito de direitos. Há tempos a matéria esteve aos cuidados da jurisprudência, conforme podemos notar no RE n. 84.328, julgado pelo STF, em l3/abril/1977, sendo relator o Min. Xavier de Albuquerque. Os artigos correspondentes no atual Código Civil estarão entre parênteses.
Cuidava-se de ação interposta pela locatária de prédio arruinado pela construção vizinha. Pleiteou a autora perdas e danos contra a proprietária da obra em construção, por ter de desocupar o imóvel e locar outro, o que lhe trouxe maiores despesas.
Em primeiro grau, a sentença acolheu o pedido, em parte, condenando a ré ao pagamento das diferenças de alugueis mais o valor atualizado das instalações perdidas.
Em apelação, a ré alegou ilegitimidade passiva ad causam, prescrição, ausência de prova do dano e do nexo causal entre o evento danoso e a construção. O Tribunal entendeu ser a proprietária parte legítima, como proprietária da obra, cuja responsabilidade era solidária com os construtores.
A ré interpôs recurso extraordinário suscitando : prescrição da ação, responsabilidade do construtor que era tecnicamente habilitado, inadmissibilidade da correção monetária. Fixar-nos-emos somente no ponto que diz respeito à matéria versada neste trabalho : responsabilidade civil no exercício do direito.
Sobre essa responsabilidade destacou o eminente relator, Min. Xavier de Albuquerque, em seu voto, o reconhecimento do dissídio jurisprudencial. A jurisprudência do STF modificou-se, gradual e hesitantemente, nas últimas quatro décadas, sobre o tema. Decisões mais antigas, embora não uniformes, assentaram por cerca de vinte anos ser a responsabilidade do construtor e não do dono da obra, exceto por prova de culpa in eligendo do dono ou, até mesmo, culpa in vigilando.
Na segunda metade da década de cinquenta, as decisões variaram, começando a surgir decisões proferidas em sentido diverso, consagrando a solidariedade entre o construtor e o dono da obra, ainda que sem culpa deste último. Por fim, surgiu interpretação intermediária, admitindo a responsabilidade do dono não solidária com a do construtor, mas subsidiária desta, se inidôneo ou insolvente o empreiteiro.
Firmou o relator ser mais correta a corrente que aponta a responsabilidade solidária, por traduzir o entendimento posterior do STF.
Manifestou-se o Min. Cunha Peixoto em posição divergente, não sem antes tecer precioso estudo sobre a matéria da responsabilidade civil. Argumentou que nosso Código Civil de 1916 adotou como regra geral o princípio da culpa para fundamentação da responsabilidade, sendo a teoria objetiva exceção e, consequentemente, impõe a existência de disposição expressa nesse sentido, e que inexistem dispositivos que autorizam, nas relações entre vizinhos, a aplicação da teoria do risco . Assim, se a responsabilidade por prejuízos causados a vizinho baseia-se na culpa, evidentemente só poderá ser responsável quem causou o prejuízo, salvo nas hipóteses mencionadas, no Código, de responsabilidade por fato de outrem (guarda, direção, autoridade).
Concluiu que a responsabilidade, em se tratando de construção, é direta e única do empreiteiro , pois este age livremente, sendo indiferente ao dono da obra a forma pela qual se conduz, só lhe interessando a conclusão. Além disso, não existe qualquer relação de subordinação entre o dono da obra e o empreiteiro; este último não é preposto daquele e seu mau desempenho recai integralmente sobre ele.
A responsabilidade do proprietário só ocorrerá quando agir com culpa na escolha do empreiteiro ( culpa in eligendo), não se podendo falar em culpa in vigilando, porque sendo o proprietário um leigo, não pode ditar ordens ou instruções ao construtor. Sobrevindo insolvência, durante a construção, nenhuma responsabilidade tem o dono da obra, em virtude da imprevisibilidade.
Em síntese : construindo em seu terreno, o proprietário está no exercício regular de um direito reconhecido.
Além do mais, não se diga, como os partidários da doutrina da responsabilidade fundada no direito de vizinhança, haver o Código Civil (anterior) ressalvado o direito dos vizinhos, ao assegurar ao proprietário a faculdade de levantar construções que lhe aprouver (art. 572) (atual art. 1299):
“O proprietário pode levantar em seus terrenos as construções que lhe aprouver, salvo direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.”
Mas esse citado artigo está em harmonia com o artigo 554 ( art.1277):
“O proprietário, ou inquilino de um prédio, tem direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam..”.
Enfatizou Cunha Peixoto que “Esses dispositivos não justificam o entendimento dos partidários desta corrente. Com efeito, como se verifica, o art. 572( 1299) ressalva as situações previstas nos artigos subsequentes, nos quais não se encontra suporte para responsabilizar o dono do terreno, quanto ao dano e prejuízos causados a terceiros, entre eles os vizinhos, durante a construção”.
“As regras contidas nos arts. 554 a 558 ( arts. 1277-1284), que se encontram no capítulo - Dos Direitos de Vizinhança - e que disciplinam o uso nocivo da propriedade constituem regras que excepcionam o direito à propriedade imobiliária, de sorte que têm de ser interpretadas restritivamente... Assim, a inteligência que se lhes dê não pode aumentar as restrições enumeradas nos artigos subsequentes ao 572 (1299) do Código Civil”.
Finalizou o revisor que, se o proprietário constrói, observando todas as regras legais e regulamentares, usa de seu direito. Se a construção é entregue a profissional legalmente habilitado e de abonada situação financeira e que não é preposto seu, não se responsabiliza por ato daquele. A culpa do proprietário do terreno só poderia ser in eligendo”.
Concluindo, admitiu ser a responsabilidade direta do construtor e subsidiária do dono da obra.
Acompanhou o voto do relator ( responsabilidade solidária) o Min. Cordeiro Guerra; destacou que, se o construtor é inidôneo.., seria razoável responder pelo dano o dono da obra e não o vizinho arcar com o prejuízo, que não teria nenhum proveito. Concluía : “Também acho que na linha de frente está a responsabilidade do construtor. Mas não isento de modo nenhum o proprietário da obra solidária ou subsidiariamente. Se o Tribunal local reconheceu a responsabilidade solidária.... acho que o fez bem, porque ele defendeu a parte que merece tranquilidade, que é o vizinho”.
O Min. Leitão de Abreu acompanhou o voto do relator e transcreveu o posicionamento do Min. Rodrigues Alckmin:
A propósito do tema existem duas teorias. Uma sustenta que a ação deve voltar-se contra o construtor, por possuir a guarda da coisa, durante a construção; Outra entende ser responsável o proprietário, considerando que as obrigações resultantes da vizinhança, pertencem a ele e o contrato firmado com o construtor é res inter alios acta; e aquele que tem as vantagens da propriedade deve suportar-lhe os riscos. Cabe a ele o direito regressivo contra o construtor.
Anotou o ministro citado serem as teorias compatíveis. Sendo o empreiteiro responsável exclusivo da construção, não será preposto do dono. Logo, não se fala no artigo 1.521, III (932,III) Código Civil (responsabilidade por empregados e prepostos..); e, se não houve culpa do proprietário, também não é lícito invocar o artigo 159. Logo, o proprietário será responsável em face do artigo 572 (1299) C. Civil. (a expressão “salvo direito dos vizinhos” é suficiente para resguardá-los). Em relação ao empreiteiro, é necessário apelar para o artigo 159 (186) (culpa). Conciliam-se, assim, as duas teorias, podendo o vizinho acionar o proprietário ou o empreiteiro ( este último, em caso de culpa); o proprietário por infração de uma obrigação legal, qual seja, a de respeitar os direitos do vizinho, e não por ato ilícito. (Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência dominante consagra a solidariedade entre o construtor e o dono da obra, mesmo sem culpa deste, pelos prejuízos causados ao vizinho. RE .n. 84.328. Drogasil LTDA versus Massa Falida de Casa Alberto Presentes LTDA. Relator: Xavier de Albuquerque. Acórdão de 13 de abril de 1977. Revista Forense ( R.Janeiro). V. 260, p. 197-202, out/nov/dez., 1977).
Posteriormente, ainda lastrado no Código anterior, Julgado do egrégio Superior Tribunal de Justiça demonstrava não pairar dúvidas quanto a essa responsabilidade solidária.
BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. O proprietário da obra responde, solidariamente, com o empreiteiro, pelos danos que a demolição de prédio causa no imóvel vizinho. (REsp. n. 43.906-RJ. Casa Granado, Laboratórios Farmácias e Drogarias S/A versus Estado do Rio de Janeiro. Relator : Min. Ari Pargendler. Acórdão de 20/maio/1996. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 734, p. 254-257).
Cuida-se de ação de indenização ajuizada por Casa Granado, Laboratórios, Farmácias e Drogarias S/A contra o Estado do Rio de Janeiro, em que aquela pretendia ver-se indenizada pelos danos ocasionados ao seu prédio, por causa de demolição no imóvel vizinho de propriedade do réu. Requereu o pagamento de lucros cessantes pelo não recebimento de aluguéis e encargos, por necessidade de desocupação do imóvel danificado, durante o período de duração das reformas.
Respondeu o Estado, requerendo, preliminarmente, carência de ação, pois a parte legítima seria o Departamento de Trânsito (autarquia), já que o réu cedera o imóvel a ele. Requereu a denunciação da lide da empreiteira Demolidora J. Francisco dos Santos LTDA. No mérito, em face da demora para o ajuizamento da ação, alegava não ser possível, àquela altura, discernir com clareza se houve ou não o nexo de causalidade entre a demolição e os danos no prédio vizinho.
O Juízo de primeiro grau aceitou a denunciação e condenou o réu e a denunciada, decisão mantida em segundo grau, com a seguinte conclusão:
“A preliminar de ilegitimidade passiva, suscitada pelo réu deve ser rejeitada. O apelante é proprietário do prédio vizinho ao da autora. Para a demolição contratou os serviços da denunciada à lide. Os danos causados ao imóvel da firma apelada resultaram da demolição. A legitimidade do apelante é evidente; rejeita-se, portanto, a preliminar. No mérito, está devidamente caracterizada a necessidade da desocupação do imóvel pela apelada para a realização de obras de recuperação. Impõe-se, portanto, o recebimento dos lucros cessantes (alugueres e encargos) durante o período de desocupação. Nega-se provimento ao recurso.”
Decidiu pela responsabilidade do proprietário da obra, assegurando o direito regressivo contra o empreiteiro.
Interposto o recurso especial, com base no art. 105, III, letra c, da Constituição Federal, e por divergência de julgados do STF e do TJSP, foi admitido. Debatia-se o Estado pela responsabilidade exclusiva da empreiteira.
O voto condutor citou lição de Hely Lopes Meirelles que aponta a responsabilidade solidária do construtor e do proprietário pela reparação civil de todas as lesões patrimoniais causadas a vizinho, pelo só fato da construção. Excepcionalmente, admite-se a redução dessa responsabilidade, provando-se a concorrência de eventos de ambos os vizinhos para a lesão, quando a obra lesada já se encontrasse abalada, trincada ou desgastada pelo tempo e tais defeitos agravaram-se com a construção vizinha.
A egrégia 2ª. Turma não conheceu do recurso, por unanimidade, apoiando a tese da responsabilidade solidária.
A natureza solidária é defendida por HELY LOPES MEIRELLES. Comumente, pela sua própria natureza, a construção causa dano ao vizinho, mesmo sem culpa dos executores. Devem ser reparados por quem os causou e por aquele que aufere vantagens da construção. Consequentemente surge a solidariedade do construtor e do proprietário. É uma responsabilidade independente de culpa de ambos, consagrada pela lei civil “Como exceção defensiva de segurança, da saúde e do sossego dos vizinhos (art. 554).” (1277).
É um encargo de vizinhança previsto no artigo 572 (1299) do Código Civil e não tem relevância para o vizinho a natureza do contrato de construção ( seja empreitada ou administração); é ato inter alios , indiferente a terceiros.
A jurisprudência brasileira firmou-se na responsabilidade entre eles e na dispensa de prova de culpa pelo evento danoso ( a responsabilidade é objetiva), mas admite redução da indenização, quando a obra prejudicada, de certa forma, concorreu para o dano, seja pela insegurança ou defeito em sua construção. “O que solidariza e vincula os responsáveis pela reparação do dano é, objetivamente, a lesão aos bens do vizinho, proveniente do fato da construção, fato este proveitoso tanto para o dono da obra como para quem a executa com o fim lucrativo”. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. S. Paulo: Ed. Rev Tribunais, 3ª. ed., 1979, p. 257 - 259).
Vê-se que, ao contrário da opinião exposta anteriormente pelo ministro LEITÃO DE ABREU, tirada de RODRIGUES ALKIMIN, não é exigida culpa do construtor.
Atualmente, confirmam a natureza da responsabilidade solidária os seguintes julgados: Resp. 28368/SP e Resp. 180355/SP, publicado em 18.12.2006.
13 - DIREITO DE CRÍTICA
Segundo conceitua CHIRONI, esse direito é entendido, em seu sentido amplo e geral, como a faculdade ou poder jurídico da pessoa para examinar toda produção, todo ato de alguém, enquanto esta produção e estes atos tenham sido voluntariamente apresentados ao público pela pessoa que o faz.
Quem, pela posição que ocupa, seja política, científica, literária, comercial ou industrial, apresenta-se ao público e daí se submete a seu juízo no que se refere às próprias obras, próprias da posição assumida, não recebe ofensa do juízo que de tais obras se dê publicamente; quem se expõe a ele deve recebê-lo, ainda mais se o buscou expressamente deve, portanto, recebê-lo como consequência de sua condição social voluntariamente aceita. Porém, o ato é legítimo se se referir objetivamente ao ato ou à obra; ao contrário, se o juízo for emitido para ofender a pessoa, é abuso do direito.
E, se aparentemente, o fato fosse justo, mas em sua finalidade dirigido a ofender, e ultrapassando, além disso, os termos dentro dos quais aparece limitada a exposição que uma pessoa faz de si ou de suas obras ao público, haverá uma extralimitação por parte de quem emite o juízo, porque se excede no seu direito. (Cf. CHIRONI. La culpa..., p. 405, 406).
A Lei de Imprensa brasileira, n. 5.250/1967, há pouco declarada inconstitucional, excepcionou que não constituem abuso da liberdade de informação os atos veiculados, se forem fiéis e feitos de modo que não demonstrem má-fé, nos casos apontados no art. 27:
“I - a opinião desfavorável da crítica literária, artística, científica ou desportiva, salvo inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
II - ( omissis);
III - noticiar ou comentar, resumida ou amplamente, projetos e atos do Poder Legislativo, bem como debates e críticas a seu respeito;
IV - ( omissis);
V - (omissis);
VI - a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa;
VII - a crítica às leis e a demonstração de sua inconveniência ou inoportunidade;
VIII - a crítica inspirada pelo interesse público;
IX - a exposição de doutrina ou ideias.”
O Código Penal brasileiro, especificamente referindo-se à injúria e difamação, contempla como excludentes de criminalidade ( melhor teria sido dito exclusão de punibilidade), no artigo 142 :
“II - A opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar”.
O artigo 17 do Código Civil de 2002 veda o emprego de nome da pessoa, em publicações ou representações, que a exponham ao desprezo público, independentemente da intenção malévola. Igualmente o art. 20 estabelece limites a veiculações de conteúdo ofensivo à honra da pessoa.
14 - ATOS DE PARLAMENTARES
Os membros do Parlamento (mandatários do povo) não respondem por suas manifestações de pensamento, enquanto se referem ao exercício de suas funções, em seus discursos, com relação às pessoas e às coisas. É uma garantia que não deve sofrer limitação em sua absoluta integridade, em função de um interesse geral. Sem esta garantia, o temor ou respeito, gravemente perniciosos à utilidade pública, poderiam alterar o exercício normal de uma função, cuja essência é a defesa do interesse coletivo.
Por conseguinte, tais atos entram na categoria de exercício normal e legítimo do direito. (Cf. CHIRONI. La culpa.., p. 415)
A atual Carta Magna brasileira dispõe, no art. 53, caput, serem os Deputados e Senadores invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos. Inviolabilidade que se estende aos Deputados Estaduais (art. 27, § 1º) e aos vereadores (art. 29, VIII), sendo que, no tocante a estes últimos, o âmbito de atuação restringe-se à circunscrição do Município e no exercício do mandato.
15 - ATOS JUDICIAIS
Extrapola os objetivos deste trabalho o estudo da questionada responsabilidade, porquanto a matéria buscada é a exclusão de ilicitude e não de irresponsabilidade, porém a ligeira referência serve para indicar que o exercício irregular ou abusivo da atividade judicial não está imune de reparação, sob o pretexto de que essa função consiste em manifestação da soberania, para acobertamento de abusos. (A respeito da responsabilidade do juiz, confira SILVA, Juary C. A responsabilidade do Estado por atos judiciários e legislativos. São Paulo: Saraiva, 1985).
Sobre a responsabilidade do Magistrado é importante observar que a matéria é controvertida, não obtendo consenso tanto em doutrina quanto em jurisprudência. Não se pode olvidar a responsabilidade civil do magistrado, que é pessoal, prevista no art. 133 do Código de Processo Civil, e que não se vincula à responsabilidade civil objetiva do Estado, prevista na Carta Magna, por atos ilícitos de seus servidores, e a ação regressiva caberá somente se o servidor for culpado.
Mesmo quanto a essa responsabilidade pessoal, doutrina mais recente apregoa que a mesma se insere na responsabilidade objetiva do Estado, declarada no art. 37, § 6º. da Carta da República, , uma vez que nele se encontra a expressão “agente”, não havendo razão para excluí-la dos casos de danos por atos judiciais, já que o serviço judiciário é, sem dúvida, um serviço público, sendo os atos praticados pelo magistrado diretamente imputáveis ao Estado. A responsabilidade por atos judiciais, neles se incluindo os jurisdicionais, é uma espécie do gênero da responsabilidade objetiva por atos decorrentes do serviço público, e o magistrado é um agente público que atua em nome do Estado.
Há quem afirme que as disposições do art. 133 do CPC, ao expressar responsabilidade direta, destoa do nosso sistema constitucional que, desde a Constituição de 1946, acolhe a teoria da responsabilidade primária do Estado, como também o direito regressivo, em caso de culpa do agente. “Não se elide com isto a responsabilização pessoal do magistrado, que há de ser obrigatoriamente levada a cabo pelo Estado (em um segundo momento) mediante ação regressiva, nos casos de dolo ou culpa, que, aliás, não se restringem àqueles previstos na lei adjetiva civil (art. 133, I e II) como requer o princípio da igualdade entre os agentes públicos, bem como o do devido processo legal em seu sentido material (substantive due process)”. ( DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. In Revista dos Tribunais. São Paulo, V. 710, p. 225-230, dez/94).
A doutrina recente, divergindo da jurisprudência mais conservadora, tem admitido a tese da responsabilidade do Estado por atos judiciais, os quais podem originar-se de culpa pessoal do magistrado, culpa anônima do serviço ou independente de culpa, cabendo ação regressiva no caso de dolo, fraude, culpa grave
“ Art. 133 : Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.
Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no n. II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não lhe atender o pedido dentro de dez (10) dias”.
Esse texto é reproduzido pelo art. 49 da Lei Orgânica da Magistratura, com pequena alteração que não afeta sua substância.
Vários artigos sobre o tema são encontrados na web, para os quais remetemos o leitor.
16 - DIREITO DE ESTAR EM JUÍZO E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
O reconhecimento do direito de estar em juízo é pacífico e deriva do princípio fundamental da igualdade entre os homens. O direito de agir na Justiça, diz também a doutrina francesa, é um direito cujo exercício não acarreta, em princípio, nenhuma responsabilidade, mesmo se a pretensão for repelida, ainda que o processo tenha necessariamente causado um constrangimento à outra parte. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 83).
Ocorre verificar agora caso específico de exercício do direito de modo não regular. Houve por bem o legislador, ao condenar o ingresso em juízo com fins outros, senão o de obter a prestação jurisdicional em situações onde há litígio. Não fosse essa proibição, estaria o Poder Judiciário servindo de instrumento para vinganças ou para acobertar interesses mesquinhos. É certo que propor uma ação judicial ou nela prosseguir não constitui, em si, abuso do direito e mesmo a mera improcedência do pedido não acarreta a obrigação de indenizar para a parte que sucumbiu. A sucumbência encerra uma responsabilidade de natureza especial, mas que não se confunde com responsabilidade pela litigância de má fé.
Tanto para o autor, quanto para o réu ou requerido, estar em juízo é um direito sagrado. Não se pode aplicar aos litígios o que foi visto sobre lesão de um direito. Quem leva uma demanda a juízo e perde não fere o direito do chamado em juízo, embora este vença a lide, porque o direito é duvidoso. Ocorre o mesmo com o réu que sucumbe. Mas não é bastante que algum direito seja defendido para que o autor do fato danoso fique isento da ação de perdas e danos, mas ainda é preciso que tenha usado de boa-fé o seu direito e sem má intenção. Aquele que se defende, portanto, poderá ser condenado a perdas e danos se abusou de seu direito.
Antiga jurisprudência francesa, à falta de disposição expressa em lei, limitava a responsabilidade do litigante temerário em caso de agir de má-fé. (Cf. LAURENT. Op. Cit., p. 312, 313).
Em grande número de decisões, aquela jurisprudência definia o abuso do direito de estar em Juízo como o constituído, no ato de um litigante, pela malícia, má-fé ou erro grosseiro equivalente ao dolo. Outras decisões caracterizavam-no como ação maliciosa ou de má-fé. Outras vezes os tribunais pareciam confundir o abuso com o caráter vexatório da ação ou do procedimento, por vezes associados a seu caráter temerário. Para outros, seria a demanda não séria. Por fim, seria a ação intentada maldosamente ou temerariamente. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 84)
Qualquer que seja o processo, há abuso na intenção de prejudicar, com maldade e má-fé. Mas, além disso, quando a ação é desonrosa para o réu ou de natureza a acarretar-lhe consequências desastrosas não é suficiente para isentar de responsabilidade, estar isento de má-fé ou falta grave; é , de fato, um dever elementar não intentar uma tal ação, sem ter tomado as precauções necessárias para não cometer injustiça. Em verdade, existe então um prejuízo diverso do simples exercício da ação. A temeridade, a simples leviandade degeneram em abuso. (Cf. SAVATIER. Op. Cit., p. 85, 86).
Na Justiça, o abuso pode ocorrer em todas as fontes de procedimentos utilizados : pode resultar de uma defesa; pode ser criado ou agravado mediante o uso de uma via de recurso ordinário ou extraordinário; pode originar-se da avaliação exagerada de uma demanda, principalmente se ela tem por objetivo retirar artificialmente o conhecimento do processo da jurisdição normalmente competente; deriva ainda de procedimentos meramente dilatórios do feito; liga-se aos procedimentos destinados a aumentar gastos pela outra parte, sem utilidade apreciável para o desenvolvimento do processo.
Em matéria de penhora, arresto, o abuso deve ser reconhecido mais facilmente, porque se trata de medida grave, à qual só se deve recorrer em último caso. A penhora de um objeto importante para um crédito mínimo pode legitimar condenação de perdas e danos. O mesmo ocorre na oposição que paralisa a negociação da quase totalidade das ações de uma sociedade, a persecução da penhora em virtude de título que se sabia duvidoso e incerto, a penhora feita em prejuízo de devedor de notória solvabilidade e que não havia se recusado a pagar. Também há responsabilidade quando a parte, mediante artifícios, utiliza-se de uma forma de penhora no lugar de outra, ou uma penhora no lugar de uma ação de nulidade, de modo a transferir o ônus da prova. A ação de declaração de falência pode ser tratada da mesma forma que a penhora e declarada abusiva se o comerciante, cujos pagamentos tivessem sido momentaneamente paralisados, possuía um ativo superior ao passivo. (Esses casos foram extraídos da jurisprudência francesa, da primeira metade do século, dos quais nos dá ciência SAVATIER. Op. Cit., p. 87, 88).
O nosso Código de Processo Civil dispõe no artigo 600 o que considera atentatório à dignidade da Justiça (é um abuso do direito de qualificação acentuada, que não envolve apenas o credor, mas sim um dos Poderes do Estado) as situações do devedor que: fraudar a execução; opor-se maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; resistir injustificadamente às ordens judiciais; não indicar ao juiz onde se encontram os bens sujeitos à execução.
No direito argentino, HENOCH AGUIAR traz-nos posição da jurisprudência:
“ Si la acción deducida importa un uso anormal y abusivo de un derecho, debe responsabilizarse al actor, al procurador que lo representa y al letrado que lo patrocina”. (Op. Cit., p. 98).
Acolhendo a responsabilidade de todos os atuantes, evita-se até mesmo que o titular do direito se deixe levar por profissional despreparado e, sentindo este que igualmente lhe pesa a responsabilidade, pensará melhor nos meios de lidar com a Justiça.
Embora seja regra de direito material, o nosso Código de Processo Civil traz textualmente a situação versada, ao dispor sobre a responsabilidade das partes por dano processual, inserida no capítulo que cuida dos deveres das partes e dos seus procuradores.
“Art. 16 - Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente”.
“Art. 17 - Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidentes manifestamente infundados”.
A aplicação da responsabilidade poderá ser de ofício, indenização que reverterá em proveito do lesado.
“Art. 18 - O juiz, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a indenizar à parte contrária os prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e as despesas que efetuou.
§ 1º. - Quando forem dois ou mais litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2º. - O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20 % sobre o valor da causa ou liquidado por arbitramento”. (art. 18 e seu parágrafo 2º. de acordo com a lei n. 8.952/1994).
Conforme frisamos diversas vezes, a expressão “prejuízos”, contida no caput do artigo, tanto se refere a danos morais ou patrimoniais.
A responsabilidade por litigância de má-fé aplica-se ao processo de execução.
“Art. 574 - O credor ressarcirá ao devedor os danos que este sofreu, quando a sentença, passada em julgado, declarar inexistente, no todo ou em parte, a obrigação que deu lugar à execução”.
Aplica-se ainda a responsabilidade sub examine ao processo cautelar.
“Art. 811 - Sem prejuízo do disposto no artigo 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a execução da medida :
I - Se a sentença no processo principal lhe for desfavorável;
II- Se, obtida liminarmente a medida no caso do artigo 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro de cinco dias;
III- Se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808 deste Código;
IV- Se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor (art. 810);
Parágrafo único - A indenização será liquidada nos autos do procedimento cautelar”.
O artigo 804, referido no inciso II, cuida da concessão de medida liminar sem audiência do réu.
O artigo 808 trata da cessação da eficácia da medida cautelar (quando a parte não intentar a ação no prazo de trinta dias; se a medida não for executada em trinta dias; se o juiz extinguir o processo principal, com ou sem julgamento de mérito).
O artigo 810 fala do acolhimento da prescrição ou decadência do direito do autor, caso em que o indeferimento da medida obsta a que a parte intente nova ação.
Outra disposição específica, acerca da litigância de má-fé, está contida no artigo 5º. , LXXIII, da Carta da República, que prevê a legitimidade de qualquer cidadão para propor ação popular, isentando-o de custas judiciais e ônus da sucumbência, salvo comprovada má-fé.
Ainda em legislação especial, encontramos na Lei nº 9279, de 14.5.1996, alterada pela Lei nº 10196/2001, reguladora de direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, na qual se encontram os crimes de concorrência desleal, a penalidade por abuso do direito:
“Art. 204 – Realizada a diligência de busca e apreensão, responderá por perdas e danos a parte que tiver requerido de má-fé, por espírito de emulação, mero capricho ou erro grosseiro”.
Já foi dito que a previsão sancionadora do artigo 1.531 (atual 940) do Código Civil não se confunde com a responsabilidade aqui versada. O artigo 1531 prevê penalidade ao que demanda dívida paga, “No todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo , o equivalente ao que dele exigir, salvo se houver prescrição”.
Há uma previsão específica, em matéria de difamação e injúria, de excludente de ilicitude penal, contida no atrigo 142, I, do Código Penal, a saber:
“I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador”.
Em referência a esse dispositivo, observamos que a exclusão de ilicitude ( melhor seria tivesse dito o legislador exclusão de punibilidade) não implica, necessariamente, em exclusão de ilicitude civil, pois que não se pode dizer, em rigor, que a situação prevista contém um exercício regular do direito ou legítima defesa . A excludente em questão deverá ser estudada conjuntamente com o artigo 15 do Código do Processo Civil, que proíbe as partes e seus procuradores de empregar expressões injuriosas, quer sejam escritas ou orais. Sendo escritas, o juiz, no seu poder de polícia processual, mandará riscá-las; sendo verbais, advertirá o ofensor, podendo, inclusive, cassar-lhe a palavra.
Retornando à posição do Código Penal e CPC, o Estatuto da OAB ( Lei n. 8.906, de 4/julho/1994), em seu artigo 7º., § 2º., pareceu contrariar o vigor do artigo 15, ao preceituar que não constituem injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação do advogado no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB pelos excessos cometidos. Observamos que tanto as partes, seus procuradores e magistrado devem nortear suas atitudes dentro de um conteúdo ético, sem ferir o direito de outrem.
É conveniente notar que o exercício do direito não goza de absolutismo e que o parágrafo em comento teve declarada sua inconstitucionalidade no tocante à eficácia da expressão “ou desacato” (ADIn 1.127-8/DF).
Quanto ao artigo 811 (processo cautelar), a responsabilidade nele prevista independe da litigância de má-fé e funda-se no fato da execução da medida ( é uma responsabilidade objetiva criada pelo risco), embora possa coexistir com esta a responsabilidade por litigância de má-fé.
17 – EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE SENTENÇA
Por se tratar de execução de sentença pendente de recurso, embora sem efeito suspensivo, há uma situação de risco; por essa razão, toda cautela é necessária. Nessa cautela, poderá o exequente não atentar, fato que tornará seu ato abusivo. Na 16ª. edição de sua obra mestra, anotou MOACYR AMARAL SANTOS que “Se processe com a observância de certas cautelas, de modo a tornar possível, sem maiores danos ao executado, a reposição de tudo em seu lugar, na hipótese da sentença exequenda ser reformada. À execução e observância dessas cautelas dá-se o nome de execução provisória”. (Primeiras linhas de direito processual civil. 16a. ed., S. Paulo: Saraiva, V. III, p. 212-213).
Na 25ª. edição, ano 2011, não se encontra o texto citado, embora advirta o autor sobre a responsabilidade do exequente, e os princípios enunciados a seguir estão disciplinados no art. 475-O, do CPC.
- A ineficácia da execução provisória, em sobrevindo provimento de recurso interposto contra a sentença exequenda. A consequência desse princípio é a restituição das coisas ao estado anterior. Nessa restituição compreende-se a reparação de danos porventura ocorridos ao executado;
- A execução provisória é promovida porque o exequente não se dispõe a aguardar o trânsito em julgado da sentença. Assume, portanto, a responsabilidade que dela resulte; correrá por sua conta e risco. Para garantia de tal risco, prestará caução real ou fidejussória (pelo próprio credor ou por terceiro), mediante arbitramento do juiz;
- A execução provisória não abrange atos que importem alienação do domínio, como também, não permite o levantamento do depósito em dinheiro, sem caução idônea. (Cf. Id. Ibid., p. 228, 229).
No capítulo X, que trata do cumprimento da sentença, expressa o art. 475-I, § 1º : “É definitiva a execução de sentença transitada em julgado e provisória quanto se tratar de sentença impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo”.
Para os títulos extrajudiciais dispõe o art. 587: “É definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do executado, quando não recebidos com efeito suspensivo (art. 739).
O Código de Processo Civil, em seu artigo 574, dentro do livro II - processo de execução - expressa a responsabilidade do credor, consistente no ressarcimento ao devedor dos danos por ele sofridos, quando, passada em julgado a sentença, for declarada inexistente no todo ou em parte a obrigação, que fundamentou a execução.
O art. 475-0 disciplina os princípios retro referidos, observando que a execução provisória procede do mesmo modo que a definitiva :
“Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva, observadas as seguintes normas: (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
I – corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
II – fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento; (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
§ 1º No caso do inciso II do caput deste artigo, se a sentença provisória for modificada ou anulada apenas em parte, somente nesta ficará sem efeito a execução. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
§ 2º A caução a que se refere o inciso III do caput deste artigo poderá ser dispensada: (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
I – quando, nos casos de crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, até o limite de sessenta vezes o valor do salário-mínimo, o exequente demonstrar situação de necessidade; (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
II - nos casos de execução provisória em que penda agravo perante o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça (art. 544), salvo quando da dispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação. (Redação dada pela Lei nº 12.322, de 2010)”
Possibilitando a lei o exercício da execução provisória, forçoso é concluir que não se trata de ato abusivo. Onde, então, este residiria? Certamente, quando não seguidos os princípios necessários, porquanto o direito somente se consolida com a decisão transitada em julgado, da qual não caiba mais recurso.
Argumenta CHIRONI que, em matéria de responsabilidade, o juiz deverá ter em consideração a culpa e examinar se quem se valeu da execução provisória tinha justos motivos para temer o atraso; mas cabe indagar se esta objeção não implica em antepor a boa-fé da existência real do direito, e ainda a razão de tal investigação, quando a lei não a ordena como condição necessária para que o juiz possa conceder a execução provisória da sentença; e, porventura, as indagações privadas poderão substituir à apreciação feita pelo magistrado? (Cf. La culpa..., p. 379).
A jurisprudência francesa exigia a má-fé para responsabilizar o litigante, no caso de abuso do direito. Posterior decisão contentou-se com a simples imprudência - decisão de 27/abril/1874. Segundo LAURENT, este é o verdadeiro princípio no exercício do direito (Op. Cit., p. 314).
Não pretendemos adentrar no estudo da execução provisória de sentença, porém registrar que ela constitui exercício regular do direito e que o abuso caracteriza-se quando não são obedecidos os princípios retro mencionados.
Vale, outrossim, ligeira referência à TUTELA ANTECIPADA, prevista no artigo 273 do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei n. 8.952/1994, quando o pedido for julgado a final improcedente. Ao contrário da indenização prevista para a execução provisória, naquela não houve qualquer referência expressa e, não havendo, não há o recurso à analogia, pois que ambas têm fundamentos diversos.
Além disso, se houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado ,ela não será concedida ( § 2º, art. 273).
Como nota ERNANE FIDELIS DOS SANTOS, “A antecipação é juízo de certeza do próprio juiz, sem que a parte possa ser responsabilizada, a não ser que, comprovadamente, usou de má-fé (Novos perfis do processo civil brasileiro. B. Hte.: Del Rey, 1996, p. 36). Evidentemente, agindo com dolo ou culpa, responderá a parte pelo ilícito. Ademais, o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu constituem uma das situações para a concessão da tutela antecipada ( art. 273, II).
18 - ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL
Nosso Código Civil não elenca, como fez o Código Penal (art. 23,III), o estrito cumprimento do dever legal como excludente de ilicitude civil.
É de se registrar que alguns penalistas reconhecem ser o dispositivo supérfluo, pois seria um contrassenso a lei impor um dever e posteriormente punir o agente pelo seu cumprimento.
A expressão dever legal, bem o diz, refere-se a qualquer lei, seja penal, civil, constitucional, administrativa, etc., dele excluindo-se os demais deveres como éticos, sociais, etc., sendo o agente qualquer pessoa.
Esclarece MAGALHÃES NORONHA que o dispositivo excludente tem o mérito de explicitar que se deve ter presente qualquer lei, ou seja, uma norma de direito positivo e, então, não se cuida somente da lei, mas também de decretos, regulamentos, enfim, de norma geral, ditada pela autoridade pública na esfera de suas atribuições. (Cf. Direito penal. Saraiva, V. I, 1981, p. 210 e ed. 2009, p. 201). Não cuida o autor dessa excludente na jurisdição civil.
Por seu turno, HÉLIO TORNAGHI comenta a irrelevância da excludente na instância cível, citando arts. do Código Civil anterior, cujos correspondentes atuais são : 186, 188:
“É absolutamente irrelevante no juízo cível que no criminal se haja decidido ter sido o ato danoso praticado no estrito cumprimento do dever legal. Tal circunstância exclui a ilicitude penal, mas não a civil. Nem do art. 159 nem do 160 do Código Civil se infere a licitude civil do ato praticado no estrito cumprimento do dever legal. Ao contrário, o que é justo e razoável é que o dano seja ressarcido ou reparado. Na maioria dos casos ( aqueles a que os alemães chamam Polizeinotstand ), o problema cai naquele outro das indenizações em direito Público. (V. Verb. “Ressarcimento, reparação e indenização”). ( Comentários ao Código de Processo Penal. R. Janeiro: Ed. Revista Forense, 1956, V. I, t. II, p. 138).
No Código Penal, além da previsão genérica, há uma específica de exclusão de criminalidade, cuidando da injúria e difamação, no artigo 142 :
“III - O conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever de ofício;
Parágrafo único - Nos casos dos números I e III, responde pela injúria ou difamação quem lhe dá publicidade”.
Aqui o legislador só fez especificação de caso já absorvido pela previsão geral, evitando o trabalho do intérprete; a situação contida no inciso III acima revela cumprimento do dever legal.
No direito argentino, o artigo 1071 do Código Civil contempla duas situações diversas, ainda que girem em torno do mesmo princípio : A do exercício do direito por parte do sujeito ativo e a do cumprimento de obrigação legal por parte do obrigado. Mesmo que deles redundem consequências prejudiciais a terceiros, são atos lícitos, isto sem prejuízo do artigo 1109 que o completa , segundo HENOCH AGUIAR (Op. Cit., p. 97). Diz o artigo 1109 : “A obrigação de reparar o daño causado por ato culposo rege-se pelas disposições relativas ao delito civil”. Diferentemente do nosso Código, aquele emprega a expressão cumprimento de obrigação legal . Parece-nos que, em essência não ocorre diferenças. Destaca a doutrina argentina que a obediência prevista está incluída no cumprimento do dever e este, por seu turno, incluído no legítimo exercício da autoridade ou cargo, e que a obediência e o cumprimento do dever são especificações genéricas deste último, de forma que os três casos enunciados podem reduzir-se a um só : o cumprimento de uma obrigação legal de que trata o art. 1.071, substancialmente idêntico, por outra parte aos incisos IV e V do art. 34 do Código Penal Argentino. (Cf. AGUIAR, Henoch. Op. Cit., p. 99).
No âmbito de incidência da excludente de que se trata agora, encontram-se os funcionários públicos, tutores, curadores, ou aquelas pessoas que estão sujeitas à obediência devida. Alcançaria obrigações derivadas de norma jurídica, não se estendendo ao campo de obrigações derivadas de contratos ou acordos.
A norma do Código Penal brasileiro aplica-se a qualquer particular, se age por imposição de dever posto em lei, embora grande parte das hipóteses tenha por endereço os agentes do Poder Público, no exercício de suas funções. Alguns deveres legais residem no exercício do poder familiar e tutela . Para educação dos menores, por vezes, se torna necessário o emprego de certos constrangimentos que, fora dessa situação, consistiria ilícito. Os costumes tiveram certa tolerância na aplicação de castigos aos menores por pais e tutores, porém tais atos não podem ser excessivos nem causar lesões físicas ou psíquicas, pois, nesse caso, há excesso, com desvio do direito de correção, configurando-se ilícito.
O Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei nº 8.069, de 13.7.1990) assegura que esses não serão objeto de “..Violência, crueldade e opressão...” (art. 5º) e que “...O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral...” (art. 17).
Quanto a esse poder/dever de correção de menores, há divergência da doutrina a saber se se trata de exercício do direito ou estrito cumprimento do dever legal. ANÍBAL BRUNO enquadra-o na primeira hipótese, lembrando que ato violento torna-se exceção, eis que não compatível com os princípios pedagógicos atuais (Cf. Direito penal, t. II, 2005, p. 4), enquanto ASSIS TOLEDO prefere classificá-lo como estrito cumprimento do dever, considerando a “Anterioridade lógica do dever de educar sobre os direitos daí decorrentes. Os resultados, contudo são os mesmos.”( Op. Cit., p. 200). DAMÁSIO E. DE JESUS compartilha dessa última posição : “Com efeito, o artigo 160, I do CC, diz que não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa, estado de necessidade ou no exercício regular de direito ( que inclui o estrito cumprimento do dever legal)”. ( Código do Processo Penal anotado. S. Paulo: Ed. Saraiva, 1990, 8ª. ed., p. 73) (atual art. 188,I).
A excludente penal deixa incólume a pretensão civil do lesado, em face da não previsão no Código Civil da excludente sub specie . Crítico contundente do artigo 65 do Código de Processo Penal, sustenta AGUIAR DIAS que nem sempre o estrito cumprimento de um dever legal isenta o atuante de reparação. “Que dever legal é, de fato, o que pode causar dano impune? Compreende-se que isente de responsabilidade criminal, mas dá-lo sempre como causa de exoneração da responsabilidade civil é desconhecer o que está hoje assentado na consciência jurídica universal : todo dano injusto deve ser reparado”. (Da responsabilidade civil. Rio Janeiro: Forense., 1983, V. II, p. 922).
Nessa mesma linha, manifesta-se a jurisprudência, ao julgar a responsabilidade civil, em face da penal, em matéria de legítima defesa, discorrendo sobre as excludentes de ilicitude:
“Outra hipótese será a da excludente do estrito cumprimento do dever legal. Embora reconhecida pela Justiça Criminal, com força de coisa julgada, isto não representará empecilho para que a Justiça Cível se convença de que não tenha havido repulsa à agressão do ofendido e avalie o grau de culpa com que o ato tenha sido praticado”. (APUD BUSSADA, Wilson. Código Civil brasileiro interpretado pelos tribunais. Ed. Liber Juris LTDA. 1980, V. I, t. III, p. 53).
O cumprimento do dever legal, segundo entendemos, estaria abrangido pelo exercício regular do direito, dentro da própria instância civil e não como decorrência do preceito penalista.
19 – DIREITO POSITIVO ESTRANGEIRO
No Código Civil português, vamos encontrar o melhor tratamento sobre o instituto do exercício do direito e seu abuso. Cuidando do abuso, insere, em seu texto, a doutrina atual, desprezando leis e jurisprudência antigas que, na maioria das demais legislações, adotavam como critério para caracterização do abuso no exercício do direito a existência de má-fé ou erro grosseiro equipolente ao dolo.
“Art. 334º. (Abuso do direito)
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”.
“Art. 335º. (Colisão de direitos)
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.
Percebe-se que a orientação do legislador português fugiu ao individualismo predominante no Código Napoleônico e nos Códigos a ele posteriores, consagrando a importância da coesão e harmonia dos direitos individuais, dentro de uma visão socializante do direito.
No BGB (Código alemão de 1.900), por ser legislação antiga, consignou-se a proibição de chicana, quer dizer, meios astuciosos empregados para retardamento da efetivação do direito de outrem, tendo sido posto como requisito fundamental no abuso do direito a existência do dolo, sendo insuficiente a culpa:
“§ 226 ( proibição de chicana)
O exercício de um direito é inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar um dano a um outro”.
Ainda não é ampla a redação do § 826, quando diz :
“ (Ofensa aos bons costumes)
Quem, de um modo atentatório contra os bons costumes, causar, dolosamente, um dano a outro, estará obrigado, para com o outro, à indenização do dano.”
Tem-se entendido que o substrato da teoria do abuso do direito encontra-se nos dois artigos citados. Todavia, conforme aponta HENOCH AGUIAR, ambos se fundamentam em fatores diversos de caracterização : o § 226 põe a ilicitude do exercício em fator subjetivo, qual seja, a finalidade de prejudicar, enquanto no § 826 o exercício seria abusivo, sempre que com ele causar-se intencionalmente um dano, por procedimento reprovado pelos bons costumes ( predomínio da materialidade do fato sobre o ponto de vista subjetivo). O atentado aos bons costumes prevaleceria sobre a consciência do prejuízo, de tal sorte que aquele que usar de seu direito de modo repugnante ao espírito público, ainda quando não fosse objeto exclusivo do ato por ele perseguido, cometerá um abuso do direito. (Cf. Op. Cit., p. 112, 113).
O Código Civil italiano (1942) insere, no título dos fatos ilícitos, a exclusão de responsabilidade da legítima defesa e do estado de necessidade, deixando de contemplar o exercício do direito.
Apenas no título que trata da propriedade insere proibição dos atos emulativos.
“Art. 833 (Atos emulativos) - o proprietário não pode praticar atos os quais não tenham outro escopo do que o de prejudicar ou acarretar moléstia a outrem (844)”.
O artigo 844 cuida do uso normal da propriedade fundiária.
Durante a elaboração do atual Código Civil, discutiu-se longamente se se devia estabelecer um princípio, incluído nas disposições preliminares, de proibição expressa do abuso do direito, o que daria lugar à extensão excessiva e atribuição ao juiz de demasiado arbítrio e amplo poder. Após muita controvérsia, na redação do texto definitivo, entendeu-se devolver a formulação específica da proibição do abuso a propósito dos particulares institutos, sem traduzir em uma disposição de lei geral um preceito que parecesse incompleto, já que, enquanto firmava a ideia de que o escopo pelo qual o direito é reconhecido constitui um limite ao seu exercício, não fazia chegar para os outros o conceito essencial da reforma que, neste fim, identifica-se com o interesse superior da Nação.
Mas a supressão do artigo não prejudicou o princípio que existia nesse mesmo conteúdo, visto que, aquela norma, enquanto se referia à regulamentação dos conflitos entre particulares, era substancialmente de considerar-se supérflua, não podendo supor-se que a lei possa conceder ao cidadão um direito, para que dele se utilize para fins diversos daquele que a lei pretende tutelar; e isso sobretudo no ordenamento jurídico fascista que reconhece e tutela os interesses dos particulares, em função da sua correspondência com os interesses da Nação. (Cf. AZZARITI et MARTINEZ. Op. Cit., p. 20, 210.).
No direito positivo francês não há disposição expressa acerca do exercício do direito e do abuso. Para alguns, a proibição estaria no artigo 1382:
(Todo e qualquer fato do homem, que cause a outrem um dano, obriga aquele pela falta da qual aconteceu, a repará-lo).
Mas foi a construção jurisprudencial, vinda desde o século XIX, que chegou `a teoria do abuso do direito a qual tem atualmente grande campo de aplicação, e reconhece que o exercício de qualquer direito deve ter por limite a satisfação de um interesse sério e legítimo; os princípios da moral e da equidade opõem-se a que a justiça sancione uma ação inspirada pela maldade, realizada sob o império de uma maldosa paixão, não se justificando por alguma utilidade pessoal e acarretando grave prejuízo a outrem. (Cf. BONNECASE. Op. Cit., p. 263).
“L’abus d’un droit est son détournement caractérisé pour obtenir indirectement un résultat évidemment étranger aux intérêts légitimes pour la sauvegarde desquels ce droit a été institué.” (WALINE, Marcel. Op. Cit., p. 384).
O Código Civil argentino, com a renovação trazida pela Lei n. 17.711/1968, além de contemplar o exercício regular de um direito próprio, insere o “cumprimento de uma obrigação legal”, como excludente de ilicitude e proíbe, no mesmo artigo (1071), o exercício abusivo dos direitos.