Nos termos do art. 17 do Código Penal, "não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime". Em certas hipóteses, verifica-se, ex-post, que o autor jamais poderia atingir a consumação, quer pela inidoneidade absoluta do meio executório, quer pela absoluta impropriedade do objeto material (pessoa ou coisa). O instituto corresponde ao que se denomina "crime impossível"[1], apresentando três espécies[2]:
1.ª) delito impossível por ineficácia absoluta do meio;
2.ª) delito impossível por impropriedade absoluta do objeto material;
3.ª) crime impossível por obra de agente provocador.
Ocorre o primeiro caso quando o meio executório empregado pelo insciente pseudo autor, pela sua natureza, é absolutamente incapaz de causar o resultado (ausência de potencialidade lesiva). Ex.: o sujeito, por erro, desejando matar a vítima mediante veneno, coloca açúcar em sua alimentação, pensando tratar-se de arsênico[3]. Inclui-se nessa hipótese a chamada tentativa irreal ou supersticiosa, como é o exemplo de o sujeito desejar matar a vítima mediante ato de magia ou bruxaria.
Na segunda espécie, inexiste o objeto material sobre o qual deveria incidir o comportamento, ou, pela sua situação ou condição, torna-se absolutamente impossível a produção do resultado visado[4], circunstâncias desconhecidas pelo agente. Ex.: "A", pensando que seu desafeto está dormindo, golpeia um cadáver[5].
A terceira hipótese de crime impossível corresponde ao denominado crime putativo por obra de agente provocador[6]. Ex.: alguém, vítima ou terceiro, de forma insidiosa, provoca o sujeito a cometer um crime, ao mesmo tempo que toma providências para que não atinja a consumação. A ineficácia e a impropriedade não recaem sobre o meio executório nem sobre o objeto material. A impossibilidade absoluta de o delito vir a alcançar o momento consumativo decorre do conjunto das medidas preventivas tomadas pelo provocador. Por isso, ao lado da ineficácia absoluta do meio e da impropriedade absoluta do objeto, o art. 17 pode ser ampliado por analogia, estendendo-se a um terceiro caso: o do agente provocador, em que o conjunto de circunstâncias por ele dispostas exclui a possibilidade de consumação do crime[7].
Nos três casos, não há tentativa por ausência de tipicidade. A que fundamento?
Diversas teorias discutem a razão da punição e impunidade do crime impossível: a subjetiva, a sintomática, a objetiva pura e a objetiva temperada, esta adotada pelo CP vigente. Entre nós, quando absoluta a ineficácia do meio ou a impropriedade do objeto material, o fato é atípico a título de tentativa[8], subsistindo esta quando meramente relativas.
Hoje, adotada a teoria da imputação objetiva, torna-se claro o fundamento da atipicidade do crime impossível.
Imputação objetiva é a atribuição a alguém da realização de uma conduta criadora de um risco relevante e juridicamente proibido a um interesse penalmente protegido, resultando um evento jurídico (resultado normativo).
Fala-se em imputação objetiva da conduta e imputação objetiva do resultado. No primeiro caso, o comportamento existe, mas é afastada a tipicidade por ausência de criação de um risco ao bem, ou, presente o risco, ele não se mostra relevante ou juridicamente proibido, ou não se converte em resultado jurídico. Na segunda hipótese, o resultado jurídico existe, mas sua tipicidade é afastada em razão de não ser relevante ou juridicamente proibido, ou, ainda, por não se conformar ao risco causado pelo autor.
Como ensina margarita martinez escamilla, "a primeira característica que deve apresentar um comportamento para que seja possível a imputação é que se trate de um atuar perigoso, que crie um determinado grau de probabilidade de lesão do bem protegido"[9]. Como se vê, um dos elementos da imputação objetiva é um comportamento criador de um risco relevante e juridicamente não permitido ao bem jurídico (desvalor da ação). Não basta a conduta, sendo necessário que crie perigo duplamente qualificado ao bem jurídico. Ausente o risco, o comportamento é atípico[10]. Não há, então, imputação objetiva da conduta.
Não é suficiente a criação do risco. É necessário que, no caso concreto, ele se converta num resultado jurídico (afetação jurídica potencial ou efetiva do interesse). É preciso, pois, que haja um interesse e que este seja afetado.
No crime impossível pela inidoneidade absoluta do meio executório, embora o objeto jurídico exista, não há criação de risco. Logo, não há imputação objetiva da conduta[11]. Não há falar-se em tentativa, uma vez que ela exige um elemento objetivo: o perigo para o bem penalmente tutelado[12]. Trata-se de um risco objetivo e real, advindo desta circunstância o conceito de idoneidade. Se a conduta não possui idoneidade para lesar o bem jurídico, não constitui tentativa. E não há tentativa por ausência de imputação objetiva da conduta.
É necessário, como vimos, para que se reconheça a imputação objetiva, que haja, no caso concreto, um bem a ser protegido. Se não existe, o fato é atípico. No crime impossível por impropriedade absoluta do objeto material, embora a conduta seja potencialmente lesiva[13], inexiste a coisa ou pessoa a ser protegida. Em face disso, não havendo objeto material, inexiste interesse jurídico a ser tutelado. É o caso de o agente atirar em um cadáver supondo tratar-se de pessoa viva. Nessa hipótese, não existe imputação objetiva da conduta por inexistência de objeto jurídico.
Na última espécie, a do crime impossível por obra de agente provocador, aplicada a teoria da imputação objetiva, verifica-se que a conduta não causa nenhum risco ao bem jurídico em face das providências da vítima ou do terceiro (a objetividade jurídica não sofre o mínimo perigo de afetação). O comportamento do provocado, diante das providências do provocador, configura um irrelevante penal. A ação, ensina claus roxin, para ser penalmente considerada em face do Direito Penal, deve oferecer um risco ao bem jurídico. Se não há risco, não existe imputação objetiva[14]. Trata-se de ausência de imputação objetiva da conduta[15], conduzindo à atipicidade do fato[16].
Notas
1. É também chamado quase-crime, crime falho, delito de ensaio, tentativa inidônea ou inadequada.
2. As duas primeiras estão previstas no art. 17 do CP; a última, resultante do emprego da analogia in bonam partem. A doutrina geralmente só apresenta os dois primeiros casos como espécies do crime impossível.
3. Os exemplos são variados: propinação de um grama de veneno quando eram necessários três para matar a vítima; ingestão de substância inócua por mulher grávida que deseja abortar; atirar na vítima com revólver de brinquedo ou com arma de fogo desmuniciada (RT, vol. 514, p. 336); falsificação grosseira; fraude grosseira no estelionato (RT, vol. 608, p. 337); dinheiro marcado (RT, vol. 520, p. 405); sistema de alarme que torna absolutamente impossível a subtração do objeto material (RT, vol. 545, p. 373) etc.
4. O crime impossível por impropriedade absoluta do objeto é espécie do delito putativo por erro de tipo. As outras duas espécies de crime putativo são delito putativo por erro de proibição e delito putativo por obra de agente provocador.
5. Existem diversos exemplos: ingestão de substância abortiva por mulher que se supõe grávida; ausência absoluta de objeto material no furto; subtração do objeto próprio etc. Nesse sentido: RT, vol. 595, p. 378.
6. Há outras denominações, como crime de ensaio, de experiência ou de flagrante provocado. Entendemos que o delito putativo por obra de agente provocador configura espécie de crime impossível. Nesse sentido: MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Bookseller Editor, 1997. I, p. 392, n. 1.
7. A Súmula n. 145 do STF trata do delito putativo por obra de agente provocador, o denominado delito de flagrante provocado: "Não há crime quando a preparação do flagrante pela Polícia torna impossível a sua consumação". Não se confunde com o delito de flagrante "esperado", em que alguém, vítima ou terceiro, normalmente a Polícia, tomando conhecimento de que um delito vai ser praticado, "espera" sua execução para prender o delinqüente em flagrante.
8. Atípico o fato, não há imposição de pena ou medida de segurança.
9. La Imputación Objetiva del resultado. Madri: Edersa, 1992. p. 61.
10. A imputação objetiva configura elemento normativo do tipo.
11. No sentido da atipicidade por ausência de imputação objetiva, apreciando a denominada tentativa supersticiosa: PESSOA, Nelson R.; MACCHI, José I. Gonzalez (orgs.). Código Penal Comentado. Assunção: Bibliográfica Jurídica Paraguay, 2000. tomo I, p. 247.
12. MARTINEZ ESCAMILLA, Margarita. Op. Cit. p. 155, n. V, a.
13. Ex.: detonar uma arma.
14. ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo; Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. I, p. 373. No mesmo sentido: JESCHECK. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Trad. José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 258-260.
15. Não há conduta causadora de risco relevante e juridicamente proibido.
16. Como afirmam ZAFFARONI e PIERANGELI, tratando genericamente da objetividade jurídica, "para que uma conduta seja penalmente típica é necessário que tenha afetado o bem jurídico", configurando "a afetação jurídica um requisito da tipicidade penal" (Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT, 1997. p. 563).