4. QUARTA E QUINTA DIMENSÕES DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Até aqui mencionamos as três principais gerações ou dimensões dos direitos fundamentais. Há de se ressaltar, contudo, que alguns autores defendem, ainda, uma quarta dimensão dos direitos e garantias fundamentais e, mais além, há aqueles que chegam até a falar já em quinta dimensão dos direitos e garantias fundamentais. Na verdade, não há consenso doutrinário, prevalece as três dimensões principais, mas importa destacar o que alguns doutrinadores vem chamando de direitos de quarta e de quinta dimensão.
No que se refere especificamente aos chamados direitos fundamentais de quarta dimensão, existe discussão acadêmica acerca do que viriam a ser. Quer dizer, além do debate quanto à existência ou não de uma quarta dimensão dos direitos, nem existem consenso dentre aqueles que a defendem. Uma primeira corrente doutrinária defende que os direitos de quarta dimensão seriam aqueles decorrentes da evolução da ciência, como a clonagem, manipulação genética, transgênicos. Mas esta tese vem perdendo força ultimamente. A corrente doutrinária que vem ganhando destaque afirma que os direitos de quarta dimensão estariam ligados à democracia e ao pluralismo, que remonta aos direitos das minorias no aspecto político.
É que a democracia, atualmente, não é vista apenas em seu aspecto formal (voto, plebiscito, eleições, cidadania), em seu sentido estrito, que está diretamente ligada à premissa majoritária (vontade da maioria por meio dos representantes eleitos). Hoje, a democracia também é percebida, sobretudo, no seu aspecto substancial, que abrange, além da vontade da maioria, também a proteção de direitos fundamentais, inclusive das minorias. Ou seja, as minorias também devem ter acesso aos direitos básicos, caso contrário, não haverá uma vontade verdadeiramente livre, isto é, haverá democracia formal, mas não material. É o caso, por exemplo, da prática de compra de votos nas eleições, com candidatos se aproveitando da situação de miserabilidade de certos eleitores.
A vontade das maiorias é expressa através das leis, por seus representantes eleitos, mas a vontade das minorias também precisa ser espeitada, através da garantia mínima das condições para o exercício livre da democracia, caso contrário esta será exercida de forma viciada. É exatamente a partir daí que ganha enfoque o ativismo do judiciário no exercício da jurisdição constitucional que se trata de característica marcante no neoconstitucionalismo. Ao Judiciário são ampliados os poderes para a guarda constitucional e garantia dos direitos da minoria, exercendo o papel contra-majoritário, porquanto não tem vinculação à vontade da maioria, não é eleito pelo povo, como o Legislativo e Executivo o são, formados pela vontade da maioria através dos representantes eleitos.
Por isso é que, hoje, o STF entende que, havendo omissão dos poderes representativos (Executivo e Legislativo) de pautarem a sua atuação pela axiologia constitucional, deve o Judiciário, como representante das minorias, poder contramajoritário, exercer o papel de garantidor dos direitos e darantias fundamentais, como guardião constitucional. Quer dizer, a inércia ou incompetência do legislador e do administrador muitas vezes obrigam uma atuação do judiciário, caso contrário é ele próprio quem vai estar descumprindo a Constituição.
O Estado não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos sociais sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer de modo inaceitável a integridade da própria ordem constitucional. O Legislativo e o Executivo são os atores para o estabelecimento das políticas prioritárias, mas quando estes se omitem ou retardam o cumprimento de um direito, aí se torna necessária a intervenção judicial. Logo, o déficit democrático, a falta de credibilidade nas instâncias democráticas, faz com que o judiciário tenha que intervir. Em que pese as críticas, o próprio sistema jurídico impõe ao judiciário, antes um dever do que um poder, para efetivar a guarda da Constituição e os direitos e garantias fundamentais.
Assim, o que caracteriza uma democracia não é a vontade da maioria, mas o tratamento igualitário, este considerado no plano material, o que pressupõe a necessária garantia dos direitos mínimos para que seja assegurada a dignidade da pessoa humana, valor central do sistema em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. Não há hierarquia entre seres humanos, todos possuem a mesma dignidade, inclusive as minorias, valor absoluto que não comporta gradações. Exatamente desse conceito vem o crescimento da democracia, o respeito a todos, o pluralismo, os direitos das minorias, a participação popular nas decisões políticas, tudo como forma de garantir a voz das porções minoritárias e assegurar a soberania popular também no seu aspecto democrático, o que passou a ser objeto de proteção constitucional no chamado Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, o pluralismo também seria outra exteriorização dos direitos de quarta geração. Pluralismo seja ele ideológico, político, cultural, artístico, religioso. Essa diversidade de ideologias é uma característica da nossa sociedade. O pluralismo está associado ao respeito à diversidade, ao direito das minorias. A comunidade jurídica percebeu, sobretudo após o derramamento de sangue ocorrido na II Guerra Mundial, que muitos problemas da humanidade não eram apenas a falta de solidariedade (daí surgem os direitos de terceira dimensão), mas também a falta de tolerância ao desamparar o direito das minorias (daí surge a preocupação com a garantia da democracia material).
E foi exatamente essa a origem da barbárie que ocorreu com o nazismo, doutrina que estabelecia discriminações a ponto de conceber alguns seres humanos superiores intocáveis em detrimento de outros considerados inferiores (judeus, negros, etc), como se fossem raças de segundo escalão desprotegidos pelo direito, o que acabou resultando no brutal extermínio de algumas classes minoritárias. Era preciso, portanto, assegurar a democracia também no seu aspecto material com o respeito aos direitos das minorias (Estado Democrático de Direito). É direito fundamental, portanto, o respeito recíproco com as diferenças (o que não é importante para a maioria, pode ser para uma minoria). É o caso dos quilombolas, do indigenato, das cotas raciais, dentre outros. Essa simbiose de cultura e idéias é marca de um povo e tem que ser assegurada, por isso ganha destaque nos tempos atuais o pluralismo, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1° da Constituçao Federal.
Portanto, podemos sintetizar dizendo que os direitos de quarta geração seriam a democracia e o pluralismo, decorrentes da globalização política, relacionando-se com os direitos das minorias. Contudo, como dito anteriormente, há discussão acadêmica e o tema está longe de tornar-se pacífico. Se não há consenso quanto aos direitos de quarta dimensão, parece exagero já se partir para uma quinta dimensão dos direitos fundamentais, embora o tema já esteja iniciando na doutrina. Tratar-se-iam dos chamados direitos transnacionais, algo que deve ser buscado pelos Estados em conjunto no plano internacional. Paulo Bonavides classifica o direito à paz como um direito de quinta dimensão, algo a ser buscado pelos Estados em cooperação.
De fato, o estudo combinado do direito interno com o direito transnacional sugere ser a evolução do neoconstitucionalismo, que fará surgir o que a doutrina já tem antecipado como transconstitucionalismo. Esse fenômeno da globalização tem mudado o enfoque das relações internacionais. Se antes eram características marcantes da sociedade internacional ser paritária e descentralizada (sem hierarquia e poder central), hoje percebemos que tais características estão em franca mutação, cada vez mais surgindo organizações centralizando o poder e tribunais hierarquizando interpretações, com a sociedade global passando a ganhar instituições parecidas com as existentes no plano doméstico.
Há uma nítida hierarquia se estabelecendo no plano internacional. A soberania de cada Estado permanece, mas a regulação no plano externo ganha força. Em outros termos, podemos dizer que a soberania no plano material tem sido mitigada pela nova ordem internacional. Isso é exatamente o que se chama de constitucionalização do direito internacional, uma expressão doutrinária que retrata um fenômeno através do qual o direito internacional interfere na organização do direito interno, justamente por decorrência da cosmopolitanização do direito. Transpor as fronteiras geográficas buscando uma harmonização jurídica a nível global, esse seria a essência dos chamados direitos de quinta dimensão (direitos transnacionais), mas sem consenso, a doutrina é iniciante no tema.
4.1 Aplicabilidade Prática da Nomenclatura
Sabemos que, quanto à essência (critério ontológico), a Constituição brasileira ainda pode ser caracterizada como nominal. O critério ontológico ou essencialista, difundido pelo jurista alemão Karl Loewenstein, estuda a essência da Constituição, aquilo que ela é na realidade, verifica a concordância das normas constitucionais com a realidade do processo de poder, a partir da premissa de que a Constituição é aquilo que os detentores e destinatários de poder fazem dela na prática. A Constituição nominal traz normas constitucionais que, em certa dose, carecem de força normativa adequada para alterar a realidade, falta-lhes efetividade, em algumas situações não saem do papel. Preocupa-se com o futuro, planejando as ações para a frente, mas não regula de forma efetiva a situação atual, representando mais o plano do ideal do que o real.
Vejamos, por exemplo, o art. 7º, IV, da CF/88: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo...". Outro exemplo, ainda, seria o art. 196 da CF/88: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação". De fato, há descompasso entre a projeção futura e a realidade.
A partir dessa observação, parece-nos mais apropriado, então, antes de querermos apressar a nomenclatura das dimensões dos direitos fundamentais como um indicativo da existência de mais garantias conquistadas, precisamos efetivar e consolidar o que já tem previsão. Se ao invés de nos preocuparmos com gerações futuras de direitos fundamentais, efetivássemos concretamente as que já existem, estaríamos com a sociedade em melhor realidade. Como falar em quarta e quinta dimensões se as primeiras nem são efetivamente cumpridas? Aliás, a jurisprudência do STF fala no chamado fenômeno da “erosão da consciência constitucional”, que consistiria no perigoso processo de desvalorização funcional da Constituição Federal em decorrência da omissão inconstitucional do Poder Público, o que lhe diminuiria sua força normativa.
Erosão significa corrosão, desgaste, tratando-se de processo contínuo de degradação, enfraquecimento. Dessa forma, podemos dizer que a erosão da consciência constitucional seria a degradação da sua magnitude, perda do relevo da Constituição, justamente porque esta perde a sua efetividade. A consequência de tal conduta erosiva (inércia dos poderes públicos) é provocar na sociedade uma idéia de que a Constituição não tem efetividade, a consciência constitucional fica enfraquecida (perda da credibilidade) pela ausência de ato do poder público que confira efetividade às normas constitucionais.
Isso pode provocar a degradação constitucional, redução da sua funcionalidade (perda da efetividade), influindo na consciência coletiva acerca da inefetividade da Constituição, por não cumprir a função para a qual foi criada, daí resulta a desvalorização funcional da Constituição, que passa a ser vista pela sociedade como algo que está no papel, mas não provoca transformação social. A rigor, quanto maior a preocupação de formalizar direitos, maior a dificuldade de lhes garantir uma aplicação efetiva. Melhor seria, então, ao invés de se preocupar com o futuro e prever quarta e quintas dimensões de direitos e garantias fundamentais, garantir a efetividade das que já existem.
Nesse ponto, ressalte-se que se observa ao redor do mundo um fenômeno chamado de “rematerialização das Constituições”, no sentido de consagrarem um extenso rol de direitos fundamentais. As Constituições atuais são prolixas (analíticas ou regulamentares), tratando de forma ampla das matérias. Tratam também de metas a serem alcançadas, programas de atuação a serem seguidos pelo Poder Público, com normas tipicamente dirigentes. No Brasil, por exemplo, o rol dos direitos e garantias fundamentais atingiram um nível de formalização que dificilmente poderá ser muito ampliado. É óbvio que podem surgir um ou outro direito de acordo com a evolução da sociedade, mas nós atingimos um nível de formalização dos direitos hoje, de fato, bastante satisfatórios. É o que se chama de rematerialização das Constituições.
Ocorre que, de nada adianta estar previsto na Constituição se não é garantido na realidade. A formalização dos direitos evoluiu muito, mas a preocupação atual não é com o plano da formalização e existência (reconhecer mais direitos na Constituição), mais que isso, fazer com que esses direitos saiam do papel e venham para a realidade. Os direitos fundamentais, então, têm duas acepções: formal e material. A dimensão formal é a positivação dos direitos fundamentais, algo já conquistado, inclusive como se percebe desse fenômeno da rematerialização das Constituições. A dimensão material, por sua vez, refere-se à efetividade desses direitos, isto é, que esses direitos deixem de ter apenas eficácia (formal) e passem a ter efetividade (material), sejam cumpridos na prática, efetivamente usufruídos por todos. Nesse plano, temos a dimensão material dos direitos fundamentais. É esta que deve ser a maior preocupação do constitucionalismo contemporâneo.
4. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, podemos concluir que a evolução dos direitos e garantias fundamentais e sua concretização no mundo atual tem origem na luta do povo para conter o poder estatal. O núcleo central dos textos constitucionais é a existência de regras de limitação ao poder autoritário e de prevalência dos direitos fundamentais, como forma de distanciar-se da concepção autoritária de Estado presente no regime antigo. Logo, analisar os direitos fundamentais é perceber a evolução das garantias que, ao longo dos tempos, foram conquistadas e asseguradas ao homem. É nesse sentido que se inserem os direitos e garantias fundamentais de primeira (liberdade), segunda (igualdade) e terceira (fraternidade) dimensões.
Contudo, a doutrina moderna já começa a falar, também, em direitos de quarta (democracia material e pluralismo) e quinta (direitos transnacionais) dimensões. O primeiro se relaciona aos direitos das minorias na busca dos direitos mínimos para que seja assegurada a dignidade da pessoa humana, valor central do sistema em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. O segundo diz respeito ao estudo combinado do direito interno com o direito transnacional, decorrente da cosmopolitanização do direito. Em todo caso, a doutrina ainda é iniciante no tema. O que importa é que, antes de se preocupar com o avanço na nomenclatura para indicar a suposta evolução a partir da existência de mais dimensões de direitos fundamentais, precisamos efetivar e consolidar os já existentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª ed. Saraiva, 2010.
BULLOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Saraiva, 2011.
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Juspodvum, 2012.
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. 37ª ed. Saraiva, 2011.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª ed. Saraiva, 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Saraiva, 2012.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. MENDES, Gilmer Ferreira. NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de Direito Constitucional, v. 1. 2ª Ed. Saraiva, 2012.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. Atlas, 2011.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª ed. Método, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. Malheiros, 2011.