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Conceitos de direito e a tridimensionalidade jurídica

01/02/2002 às 01:00
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1 – Introdução

"O direito é o igual múltiplo de si mesmo"

Pitágoras

Por meio da abordagem de três definições de direito, vindas todas de correntes específicas de estudo (axiológica, sociológica e normativista), este trabalho tenciona efetuar análise de cada uma delas e, ao final, estabelecer similitudes e/ou divergências com a Teoria Tridimensional de Miguel Reale. Tal intento se justifica pela necessidade de melhor compreender o fenômeno direito que, encerrando conceitos vários ao longo dos séculos, apresenta-nos o desafio de defini-lo a contento, buscando o que lhe é perene sem olvidar sua complexidade e mutabilidade. Além disso, a importância de utilizar-se com exatidão o termo direito, por aqueles que com ele operacionalizam juridicamente, dá-nos sobremodo razão nessa busca de um conceito que venha a apreender sua essência. Como destaca Lourival Vilanova[1], muitos outros conceitos derivam daquele do direito (relação jurídica, sujeito de direito, fato jurídico etc), sendo imprescindível entender este último para que os demais tornem-se inteligíveis.

Com esse propósito a norteá-la, esta monografia se encontra dividida em sete pontos. O primeiro deles se trata de uma rápida nota distintiva entre conceito e definição. O segundo se dedica à análise daquilo que Emmanuel Kant definiu, numa perspectiva axiológica, como sendo direito. O terceiro examina a definição sociológica de direito formulada por Eugen Ehrlich. O quarto traz a definição de direito dada por Hans Kelsen, numa óptica normativista. O quinto é desenvolvido em torno da Teoria Tridimensional de Miguel Reale, que aborda o direito nos seus aspectos axiológicos, sociológicos e normativos. O sexto ponto, por sua vez, prende-se a considerar a definição de Reale. No final da monografia, o sétimo ponto se constitui numa conclusão onde se avaliarão, a partir de inter-relações, os aspectos de relevo de todas definições apresentadas.

Ao longo do trabalho, e mormente na sua parte de conclusão, serão levantadas duas questões: 1ª – uma visão globalizante pode entender em profundidade um fenômeno pleno de especificidades com o do direito? 2ª – qual o procedimento, a forma, o método pelo qual se possibilita concretamente o entendimento proposto por Reale? Posto isso, passemos ao ponto que inicia propriamente este conjunto de observações.


2 – O direito por Kant, Ehrlich, Kelsen e o tridimensionalismo realiano

2.1 – Nota preliminar

A começar o trabalho, cabe distinguir conceito de definição. Grossíssimo modo, conceito compreende o interior, a essência de um ser ou de uma coisa; enquanto que definição se trata da exteriorização desse conceito. De acordo com Paulo Nader[2], a definição se dá pela verbalização, já o conceito pode ou não se servir de palavras para se expressar. Logo, nosso objeto será primordialmente as definições que, por sua vez, encerrarão diferentes conceitos de direito. Esclarecida esta diferença, vejamos a primeira definição a ser analisada.

2.2 – Definição de Kant

"Direito é o conjunto de condições pelas quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio do outro, segundo uma lei geral de liberdade"[3]. Como se percebe, há três palavras-chave na asserção: conjunto de condições, arbítrio e liberdade. Segundo este autor, liberdade é a posse de um arbítrio próprio independente do de outrem, é o exercício externo desse arbítrio: arbítrio é o querer[4] consciente de que uma ação pode produzir algo; conjunto de condições ou obrigações jurídicas (aqui Kant revisita Ulpiano) implica ser honesto, não causar lesão/dano a ninguém e entrar em estado onde se assegure, frente a todos, aquilo que cada um possua.

Com o suporte dessas notas fornecidas pelo próprio Kant e por Recaséns Siches, poderíamos refazer a afirmação: "o direito implica pressupostos (honestidade e respeito à posse de outrem, verbi gratia) que possibilitam a concretização recíproca do querer de cada um e de todos, observando-se que o querer exercido/possuído por cada um encontra como limite o querer de todos". Esta definição, de caráter valorativo/axiológico, reflete a importância do elemento liberdade (posse e exercício de arbítrio). Só há liberdade dentro de limites e estes são impostos pela idéia de preservá-la. Jusnaturalista, Kant não menospreza o papel desempenhado pelo direito posto, contudo afirma ser este direito posterior ao natural, que o legitima[5]. Prosseguindo, vejamos uma definição de natureza sociológica.

2.3 – Definição de Ehrlich

"O direito é ordenador e o suporte de qualquer associação humana e, em todos os lugares, encontramos comunidades porque organizadas"[6]. Ao definir direito, Ehrlich busca o interior, a estrutura da sociedade, para asseverar que nada se põe, nada se firma, nada existe, enfim, desprovido de uma ordem. Dessarte, não existe modo de cindir a ordenação do produto, pois este último só se torna produto por apresentar-se organizado. Com coerência, Ehrlich refuta que o direito posto, como sistema de leis, seja o único direito na sociedade, pois há comunidades que o desconhecem; porém, nenhuma sociedade desconhece as manifestações normativas, a ordem dada por outros fatores/institutos (família, religião, economia etc), que constituem o chamado direito vivo.

No capítulo XXI do seu Fundamentos da sociologia do direito, Ehrlich discorre sobre esse direito vivo. Trata-se do direito maior na sociedade, abaixo do qual estariam o que ele denomina categorias subalternas (a ordem estatal e as regras de decisão dos tribunais). Vivo ele é por nascer, crescer e desenvolver-se com grande dinamismo no cerne da comunidade; em contrapartida, as duas outras categorias se encontram sempre em atraso e submetidas ao seu vigor. Nesta visão sociológica, o que se nota é o entrelace dos três tipos de direito e a comunidade, sendo que esta última, ao se metamorfosear, modifica a sua ordem, a estrutura que lhe serve de base. A relação direito/sociedade não se configura, pois, como de coordenação mas sim de império, onde se apresentam, em primeiro plano, os fatos sociais a condicionar a ordem jurídica.

2.4 – Definição de Kelsen

Diametralmente oposto a Ehrlich, encontramos Hans Kelsen que define direito nos seguintes termos: "o direito se constitui primordialmente como um sistema de normas coativas permeado por uma lógica interna de validade que legitima, a partir de uma norma fundamental, todas as outras normas que lhe integram"[7]. Compreender esta definição é compreender sistema, norma coativa, norma fundamental e validade. Sistema pressupõe a existência de partes que, inter-relacionadas, compõem um todo; para que essas partes continuem a se comunicar e a existir como um corpo, necessita-se de uma estrutura que as disponha em ordem, dando hierarquia e dinamicidade ao sistema. Para Kelsen, norma coativa é a que evita conduta por todos indesejada por meio da coação (mal aplicado ao infrator), empregando a força física, se necessário. Por seu turno, norma fundamental é aquela que concede validade, pois, toda norma do sistema tem seu fundamento de validade repousado sobre esta norma originária. E a validade seria a legitimidade do ato criador da norma, cujo procedimento deve estar estabelecido no ordenamento[8].

Após essas explicações primeiras, cabe verificar que Kelsen, ao formular sua teoria, não ignorava elementos outros que o direito trazia consigo; em os abstraindo, quis ele isolar a porção normativa da fática e da axiológica. Tal propósito se justificava na medida em que buscava ele os fundamentos para uma ciência jurídica independente, onde o rigor científico estaria concentrado na análise à exaustão da norma jurídica; uma ciência a permitir, bem mais justificar, as decisões jurídicas num nexo próprio ao ordenamento, deixando à sociologia a análise do teor político-social e à filosofia, o teor axiológico/valorativo. E aqui se localiza o porém à formulação kelseniana. À guisa de exemplo, Lourival Vilanova[9] aponta, e com ele concordamos, que ao se excluir do direito o que lhe há de psíquico ou sociológico, dificulta-se a compreensão da positividade (respeito à norma pelos seus destinatários). Entre as críticas ao normativismo de Kelsen (como também aos axiologismos e sociologismos no campo jurídico), encontra-se a Teoria Tridimensional de Reale que, como veremos adiante, trata-se de um momento particular no estudo do direito.

2.5 – O tridimensionalismo de Reale e a sua definição de direito

Em linhas gerais, a Teoria Tridimensional do Direito formulada por Miguel Reale postula que o fenômeno direito se nos apresenta, e deve em conseqüência ser analisado, por meio de três aspectos inseparáveis e distintos entre si: o axiológico (que envolve o valor de justiça), o fático (que trata da efetividade social e histórica) e o normativo (que compreende o ordenamento, o dever-ser). Quando em estudo é tentado isolar um desses elementos, surgem as concepções jurídicas unilaterais (como o moralismo de Kant, o sociologismo de Ehrlich e o normativismo de Kelsen). Se o resultado desses estudos for apenas aglutinado num único estudo, ter-se-á o tridimensionalismo genérico e abstrato. Mas, se ao contrário, num processo de integração, esse estudo procurar correlacionar os três elementos fundantes do direito, ter-se-á o tridimensionalismo específico e concreto, englobando os problemas de fundamento, eficácia e vigência[10]. Reale ainda acrescenta que esses elementos do direito se exercem influência, fazendo surgir pólos autônomos que, numa relação de dialética cultural[11], entram em conflito e, por via do elemento norma, chegam à harmonia; porém, como assinala Marcelo Neves[12], a porção normativa dessa relação de conflito não propicia a superação da tensão (entre valor e fato), ela tende sim a complicá-la.

Tendo em conta o tridimensionalismo específico, eis a definição dada por Reale: "direito é a realização ordenada e garantida do bem comum, numa estrutura tridimensional bilateral atributiva"[13]. Analisemos de início o bem comum. Para Luiz Legaz y Lacambra, trata-se de um bem estabelecido a partir de relações entre as pessoas, relações cujo valor é o da realização da justiça. Por sua vez, a bilateralidade atributiva consiste na união que faz relacionarem-se dois ou mais sujeitos, atribuindo-lhes pretensões e estabelecendo-lhes formas de agir e de ser[14]

Em outros termos, por direito entende-se a totalização de valores e fatos em normas que obrigam os seus destinatários a determinadas condutas, possibilitando a convivência destes em sociedade. O mérito desta definição vê-se de pronto: o fato de uma visão holística ser a que se ajusta o melhor ao estudo do direito. Todavia, cabe fazer-lhe algumas reflexões, que vamos expor como parte de conclusão deste trabalho.


3 – Conclusão

Considerando as últimas notas, fica claro o escopo realiano. A óptica tridimensional pretende findar com a tendência de setorização de um objeto que se apresenta e constitui-se em multiplicidade. Kant, Ehrlich e Kelsen, e tantos outros estudiosos do mundo jurídico, não ignoravam as facetas do direito, porém, ao elegerem uma delas como sendo a mais importante, comprometeram o entendimento global do fenômeno; isto, contudo, não significou tão-somente insucesso – veja-se que a obra de Kelsen continua a servir de referência aos mais variados trabalhos sobre norma jurídica. Embora não tenham abarcado o todo direito, eles analisaram isoladamente, com maestria e profundidade, as partes que o integravam. Esta observação faz indagar até que ponto é possível, no campo prático e não apenas teórico, em se seguindo a orientação tridimensional, continuar obtendo igual ou maior profundidade na pesquisa jurídica.

Nesse ponto, como resposta à questão, entendemos que o método a ser seguido, o caminho a trilhar para que se alcance o resultado em mente, é condição sine qua non. Lembremo-nos de que o objeto a ser estudado não traz facilidades, sua constituição é múltipla e suas relações recíprocas, mutantes. A nosso ver, a questão metodológica deveria ter merecido de Reale um tratamento especial – em sua Teoria tridimensional do direito[15], o autor em tela aponta uma possível orientação metodológica, mas não lhe aprofunda a análise. O objetivo que a teoria tridimensional deseja alcançar no conhecimento do direito depende, enormemente, do procedimento de estudo. O como possibilitará o ser. Estabelecer uma postura diante de um determinado objeto é o início; tão importante quanto é definir o modo pelo qual ele será, propriamente, analisado. Isso não se configura como uma mera observação; no caso do tridimensionalismo específico e concreto defendido por Reale, trata-se da sua própria realização, efetivando-se plenamente como teoria.

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4 – Referências bibliográficas

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 5ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1993.

EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.

KANT, Emmanuel. Introducción a la teoría del derecho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1954.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984.

LEGAZ Y LACAMBRA, Luiz. La filosofia del derecho de Miguel Reale. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. LVI, fasc. II, p. 78-85, 1961.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Bushatsky-Editora da Universidade de São Paulo, 1973.

_______. Filosofia do direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

_______. Teoria tridimensional do direito. 5ª ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994.

RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho. 4ª ed. México: Editorial Porrúa, 1970.

VILANOVA, Lourival. Sobre o conceito do direito. Recife: Imprensa Oficial, 1947.


5.Notas

1.VILANOVA, Lourival. Sobre o conceito do direito. Recife: Imprensa Oficial, 1947, p. 35-36.

2.NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 247.

3.KANT, Emmanuel. Introducción a la teoría del derecho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1954, p. 80.

4.Este querer é o da determinação radical e primeira que põe em ação mecanismos e atividades humanos (imaginação, vontade etc). Cf. RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho. 4ª ed. México: Editorial Porrúa, 1970, p. 75.

5.Cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 5ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 39-40.

6.EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 24-25.

7.KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984, p. 57.

8.KELSEN, Hans. Op. cit., p. 60 e 269.

9.VILANOVA, Lourival. Op. cit., p. 99.

10.REALE, Miguel. Filosofia do direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 514-515.

11.Reale diz ser esta a dialética de implicação-polaridade, visto que os pólos valor, fato e norma implicam-se mutuamente e mantêm-se irredutíveis. Cf. Teoria tridimensional do direito. 5ª ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 47 et seq.

12.NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 14.

13.REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Bushatsky-Editora da Universidade de São Paulo, 1973, p. 88.

14.LEGAZ Y LACAMBRA, Luiz. La filosofia del derecho de Miguel Reale. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1961, v. LVI, fasc. II, p. 83-84.

15.REALE, Miguel. Op. cit., p. 63.

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Sobre o autor
Álvaro Mariano da Penha

advogado no Recife (PE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PENHA, Álvaro Mariano. Conceitos de direito e a tridimensionalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2619. Acesso em: 21 nov. 2024.

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