5. PARA FINALIZAR
O mundo moderno impõe, amiúde, a busca de novas alternativas condizentes com o turbulento e dinâmico macroambiente desta "aldeia global" (Mcluhan), que tem no signo do efêmero sua qualificadora indissociável.
Realmente, o impacto revolucionário das novas tecnologias - internet correio eletrônico, telefone celular, computadores portáteis, fax, software - e dos mais modernos meios de comunicação - TV a cabo, via satélite, videoconferência, etc - parece ser incompatível com a segurança jurídica, que é a razão de ser do ordenamento e quiçá do próprio direito em sua essência.
E é nesse conturbado cenário que surge a importância maior dos princípios constitucionais: servir justamente para dar o norte para onde o hermeneuta deve seguir nessa difícil atividade de adaptação do direito posto às novas situações jurídicas que vão surgindo num planeta globalizado completamente diferente de tudo que já existiu.
De fato, os princípios, em relação às regras, têm uma grande vantagem: a abertura. Ou seja, os princípios têm uma "substância política ativa", uma "estrutura dialógica", capaz de captarem as mudanças da realidade e estarem "afinados" às concepções cambiantes da "verdade" e da "justiça". Eles não são - nem pretendem ser - verdades absolutas ou axiomas imutáveis; são, isto sim, "poliformes" (Cármem Rocha). Na medida das transformações ocorridas no bojo do seio social, as interpretações dos princípios vão-se adaptando, vão-se moldando constantemente às vicissitudes do meio sócio-político em que atuam. São fluidos, plásticos e manipuláveis e, por isso mesmo, não precisam esperar as alterações textuais (legislativas) das regras para impor ou orientar as decisões políticas dos membros da sociedade. Ou seja, eles transcendem a literalidade da norma mesma em que estão inseridos, permitindo que se mude o sentido, isto é, a interpretação dos textos, sem que se precise, com isso, alterar os seus enunciados normativos30.
Os princípios são, pois, neste momento de incertezas e transformações, o estado da arte na interpretação evolutiva, a única capaz de dar vida ao direito. E eles (os princípios) estão aí espalhados por todo o ordenamento jurídico. A Constituição está cheia deles, já que é Lei Fundamental a "ambiência natural dos princípios" (Willis Guerra Filho). Cabe a nós "descobri-los" e utilizá-los de forma adequada e satisfatória. Parafraseando J. J. CALMON DE PASSOS, diríamos que, assim como os mandamentos de Deus de nada valem para os que não têm fé, de nada valem os princípios constitucionais para os que não têm a consciência de sua potencialidade.
NOTAS
1 O Direito e a Vida dos Direitos, 5ª ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 48.
2 "a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípios e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas as quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema" (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2ª ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 141). Deve ser ressaltado, outrossim, que alguns autores (Perez Luño, Pietro Sanchis e García de Enterria) incluem os valores, ao lado dos princípio e das regras, como espécies de norma. Porém, por transcender aos estreitos limites do objeto desse estudo, deixaremos de tratar dos valores como espécie de normas , preferindo incluí-los como parte componente do próprio princípio, tendo em vista a enorme carga valorativa que nele está inserida.
3 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 4ª ed. Malheiros, São Paulo, 1999, p. 46. No mesmo sentido, o jurista espanhol F. de Castro assim compendiou: a função de ser "fundamento da ordem jurídica", com "eficácia derrogatória e diretiva", sem dúvida a mais relevante, de enorme prestígio no Direito Constitucional contemporâneo, a seguir, a função orientadora do trabalho interpretativo e, finalmente, a de "fonte em caso de insuficiência da lei e do costume" (apud BONAVIDES, Paulo. Curso... p. 255).
4 ROCHA, José de Albuquerque. Ob. Cit. p. 47.
5 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 55.
6 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação...p. 256
7 BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 254.
8 Princípio é, por definição, "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico..." MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. Ed. RT, São Paulo, 1980, p. 230. Em sentido semelhante, a Corte Constitucional italiana assim definiu princípios: "são aquelas orientações e aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas, que concorrem para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico." (apud BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 230)
9 Idem..p. 254.
10 Teoria...p. 46.
11 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação...p. 146.
12 Curso... p. 265
13 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 67.
14 É de se atentar que a expressão "princípio fundamental" consagrada pela Constituição de 1988 é ´ineditismo da técnica legislativa´, segundo Juarez Freitas.
15 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação...p. 141.
16 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria...p. 47. Os colchetes são nossos.
17 Aqui estamos parafraseando uma famosa expressão de KRÜEGER, que dizia: "não são os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei que se move no âmbito dos direitos fundamentais" (apud FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996, p. 17). Segundo PAULO BONAVIDES, essa constatação de KRÜEGER é "a descoberta do núcleo central de todo o processo que rege doravante as transformações constitucionais em proveito da formação e consolidação de um universo da liberdade, juridicamente resguardado por mecanismos de proteção eficaz" (Curso de Direito Constitucional, p. 358).
18 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. Malheiros, São Paulo, 1992, p. 183
19 Sobretudo no controle de constitucionalidade, difuso e concentrado, os princípios constitucionais funcionam como parâmetros a serem aferidos pelo julgador.
20 Ver SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos Editor, São Paulo, 1999
21 A despeito de ser utilizada em várias acepções, a expressão ativismo judicial, ligada à terminologia norte-americana, relaciona-se essencialmente com a amplitude da intervenção do Judiciário no controle das políticas legislativas e executivas.
22 Obviamente, os princípios são até mais genéricos do que a regra. Porém, a generalidade dos princípios tem uma vantagem não achada na regra: a abertura. Na lição de CARMÉM ROCHA: "... eles não pontuam, com especificidade e minudência, hipóteses concretas de regulações jurídicas. O complexo principiológico que fundamenta o sistema constitucional estabelece a gênese das regulações específicas e concretas, mas não as determina em si mesmas, senão dirigindo o seu conteúdo (que virá em outras normas) e excluindo qualquer ditame jurídico que lhe contrarie a diretriz. São, pois, gerais, para serem geradores de outros princípios e das regras constitucionais (...). A generalidade destes princípios possibilita que a Constituição cumpra o seu papel de lei maior concreta e fundamental do Estado, sem amarrar a sociedade a modelos inflexíveis e definitivos, que a vida não permitiria algemar-se em travas de lei. (...)." (...)"A generalidade dos princípios permite, pois, que sendo a sociedade plural e criativa, tenha seu sistema de Direito sempre atual, sem se perder ou mascarar modelos contrários aos que na Lei magna se contêm como opção constituinte da sociedade política" (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 77)
23 No caso Riggs vs. Palmer, citado por Dworkin, o Tribunal de Nova Iorque, utilizando-se do princípio de que "ninguém pode beneficiar-se de sua própria torpeza", decidiu, em detrimento da própria lei (regra) testamentária, que o neto não poderia receber a herança do avô pelo torpe fato de haver assassinado este. Ou seja, prevaleceu o princípio ao invés da lei.
24 BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 7ª ed. Unb, Brasília, 1996, p. 118.
25 Teoria...p. 47.
26 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3ª ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 14.
27 BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 254.
28 BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 263.
29 O nosso Código de Defesa do Consumidor, numa avançada postura, adotou semelhante dispositivo: "os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade" (Art. 7º). Futuramente, prevê-se que haverá um ordenamento jurídico universal em matéria de defesa do consumidor e de direitos humanos, ou seja, qualquer pessoa poderá invocar o ordenamento jurídico de qualquer País para proteger o seu direito, desde que seja mais favorável aos direitos humanos ou ao consumidor. Assim, hipoteticamente, alguém aqui no Brasil poderia invocar a legislação francesa em prol de seu direito em detrimento da própria lei brasileira. Trata-se, sem dúvida, de uma visão bastante avançada, que demandará um super-redimensionamento no conceito de soberania e um extraordinário nível de maturação de toda a humanidade. O tempo dirá se será possível alcançar esse estágio.
30 Não é despiciendo lembrar que a Suprema Corte Norte Americana, em face de um mesmo diploma constitucional, declarou, em sucessivas oportunidades, que o racismo era "legal" (1ª fase, no caso Dred Scott vs. Sandford, julgado em 1857, a Suprema Corte negou a condição de cidadão a um escravo), "parcialmente legal" (2ª fase, em 1896, no julgamento do caso Plessy vs. Ferguson, a Corte Suprema endossou a doutrina do equal, but separate) e, por fim, "ilegal" (3ª fase, no caso Brown vs. Board of Educacion, decidido em 1954(!), a Corte considerou inconstitucional a segregação de estudantes negros nas escolas públicas), donde se conclui a "maleabilidade" do princípio da isonomia insculpido na Lei Fundamental norte-americana. Para bem entender a diferença entre o texto da norma e norma, cita-se CANOTILHO: "O recurso ao ´texto´ para se averiguar o conteúdo semântico da norma constitucional não significa a identificação entre texto e norma. Isto é assim, mesmo em termos lingüísticos: o texto da norma é o ´sinal lingüístico´; a norma é o que se ´revela´, ´designa´." Cf. Direito Constitucional, 5 ed., p. 225.
BIBLIOGRAFIA
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_____________________. A Constituição e a efetividade de suas normas. Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. atual, Renovar, Rio de Janeiro, 1996
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