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Inconstitucionalidades e ilegalidades da tarifa excedente de consumo

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01/02/2002 às 01:00
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4. As ilegalidades

4.1. Primeira ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 8.078 (Código de Defesa do Consumidor)

A relação existente entre a CAGECE, fornecedora do serviço de fornecimento de água, e os usuários desse serviço, sem dúvida, constitui relação de consumo, regida, portanto, pelo Código de Defesa do Consumidor.

Em face disso, é de patente ilegalidade a Lei Estadual que institui a Tarifa Excedente de Consumo por prejudicar demasiadamente os consumidores.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 51, inc. IV, determina que:

"Art. 51 - São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade".

Portanto, tem-se que a Lei Estadual instituidora da Taxa Excedente de Consumo é completamente ilegal, pois constrange o consumidor, de modo abusivo, a pagar o que não consumiu.

4.2. Segunda ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos) e Lei Federal 6.528/78

Ademais, a Lei Estadual 12.968/99 não é compatível com a Lei Federal 9.433/97, que "institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989".

Com efeito, a Seção IV, do Capítulo IV, da citada lei, dispõe sobre A COBRANÇA DO USO DE RECURSOS HÍDRICOS. Em seu art. 21, há os critérios a serem observados na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos. Cita-se:

"Art. 21. Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

I - nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;

II - nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente".

Percebe-se que não há autorização legal para a fixação de valores pelo uso o critério de "consumo médio". Daí, não há como aceitar que se calcule o montante do valor da tarifa com base em uma estimativa arbitrada irrazoavelmente pela Administração.

Ademais, a cobrança das tarifas de água e esgoto obedece ao prescrito na Lei Federal n. 6.528/78, cujo § 2º, do art. 2º, estabelece que "as tarifas obedecerão ao regime do serviço pelo custo, garantindo ao responsável pela execução dos serviços a remuneração de até 12% (doze por cento) ao ano sobre o investimento reconhecido".

Portanto, o consumidor deve pagar pelo que efetivamente consumiu, ou seja, pelo consumo real de água e esgoto.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

"REPETIÇÃO DO INDÉBITO - LIMITE PARA CONSUMO MÍNIMO DE ÁGUA - TARIFA - HIDRÔMETRO PARA MEDIR O CONSUMO D´ÁGUA - INADMISSÍVEL ADOÇÃO DE MÉDIA MENSAL DE CONSUMO. Tarifa de água. Consumo mínimo. Limite para a sua utilização. O consumo por estimativa não se confunde com o consumo mínimo. Enquanto o primeiro tem lugar nos casos de inexistência de hidrômetro, verifica-se o segundo quando o consumo registrado no aparelho medidor fica abaixo do limite mínimo previsto em norma regulamentar. A utilização desse limite mínimo, todavia, só é admissível quando, em se tratando de imóvel comercial, o consumo de água for inferior a 20 metros cúbicos-mês. A partir desse limite, o usuário tem o direito de só pagar por aquilo que realmente consome, conforme for medido pelo hidrômetro. Embargos desprovidos" (Embargos Infringentes n° 257/94 - Rio de Janeiro - RJ - 2° Grupo de Câmaras Cíveis - TJRJ – 1995).

4.3. Terceira ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 8.987/95 (Política Tarifária)

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de ter como preço público e, portanto, tarifa, o quantitativo cobrado a título de água e esgoto. Confira-se com os seguintes precedentes: Recursos Extraordinários nºs 54.194, 54.491 e 77.162, relatados pelos Ministros Luis Gallotti, Hermes Lima e Leitão de Abreu, com acórdãos publicados nos Diários da Justiça de 28 de novembro e 17 de dezembro, ambos de 1963 e 24 de maio de 1977, respectivamente.

Portanto, a Lei Estadual 12.968/99, além de ser formalmente inconstitucional por dispor sobre política tarifária, é ilegal, por afronta a Lei Federal 8.987/95, que dispõe sobre a tarifação dos serviços públicos.

Com feito, em seu Capítulo IV, há toda a disciplina legal da política tarifária. Entre os inúmeros dispositivos regulando a matéria, há de se destacar, por ter bastante relevância ao presente caso, o art. 13, que determina:

"art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários" – grifos nossos.

Da leitura do dispositivo, é fácil compreender que somente em duas hipóteses as tarifas poderão ser diferenciadas:

1. em função das características técnicas: por exemplo, melhor qualidade de determinado produto, maior segurança etc e;

2. em função dos custos específicos: por exemplo, distância do local de fornecimento do serviço, gastos extras etc.

Em conclusão, só se justifica a diferenciação de tarifa quando o serviço prestado necessitar de gastos diferenciados. Assim, não pode haver diferença de tarifa em virtude de o consumo de um determinado usuário haver diminuído ou aumentado: todos que estão não mesma situação devem ser igualmente tarifados.

Admitir o contrário, isto é, aceitar que a CAGECE pode cobrar valores incompatíveis com o real consumo dos usuários é endossar um enriquecimento sem causa, com o conseqüente empobrecimento dos consumidores, que vêm pagando pelo que não consome.

Com a Tarifa Excedente de Consumo, consegue-se transformar o "consumo médio" em consumo muito superior ao real, superior mesmo à própria capacidade de fornecimento da CAGECE, que passa a ganhar literalmente por aquilo que não fornece. Por que a CAGECE deve receber esse valor se não prestou o serviço?

Como já decidiu o TJRJ, "tarifa é preço público (e não taxa, nem imposto), e como tal o seu valor deve corresponder ao serviço prestado ou ao produto adquirido" (Embargos Infringentes n° 257/94 - Rio de Janeiro - RJ - 2° Grupo de Câmaras Cíveis - TJRJ - 1995).

Não é demais anotar que essa mesma Lei 8.987/95 dispõe em seu art. 6º que "toda concessão ou permissão prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários". E o que é serviço adequado? A própria lei responde:

"é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas" (§1º, do art. 6º).

Ora, quem há de defender que, no presente caso, com a instituição da Tarifa Excedente de Consumo, haverá a modicidade das tarifas? Absolutamente ninguém; afinal, o valor da "conta de água" poderá até dobrar de valor!

A Lei Estadual, portanto, é absolutamente incompatível com a Lei 8.987/95, que se aplica aos Estados por força do dispositivo constitucional previsto no art. 175, parágrafo único, da Constituição Federal.

4.4. Quarta ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 9.069/95 (Plano Real)

Por fim, não há como não reconhecer a ilegalidade da Tarifa Excedente de Consumo em face da Lei Federal 9.096/95, que "dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, Estabelece as Regras e Condições de Emissão do REAL e os Critérios para Conversão das Obrigações para o REAL, e dá outras Providências".

A referida Lei, proveniente de várias reedições de medidas provisórias, determina em seu art. 70 o seguinte:

"Art. 70. A partir de 1º de julho de 1994, o reajuste e a revisão dos preços públicos e das tarifas de serviços públicos far-se-ão:

I - conforme atos, normas e critérios a serem fixados pelo Ministro da Fazenda;

II - anualmente.

§ 1º - O Poder Executivo poderá reduzir o prazo previsto no inciso II deste artigo.

§ 2º - O disposto neste artigo aplica-se, inclusive, à fixação dos níveis das tarifas para o serviço público de energia elétrica, reajustes e revisões de que trata a Lei número 8.631, de 4 de março de 1993" - grifamos.

Assim, "dentro do princípio da nominalidade que se deseja paulatinamente implantar com a nova moeda do país, os preços públicos e as tarifas de serviços públicos terão suas normas e critérios de atualização definidos, se necessário, pelo Ministro da Fazenda , assegurado que os reajustes serão anuais" (Exposição de Motivos da Medida Provisória que instituiu o Plano Real).

No caso em questão, é inegável que houve um verdadeiro e substancial aumento nas tarifas do serviço de fornecimento de água, sem nenhuma razão ponderável, o que demonstra a total incompatibilidade da Lei Estadual com a Lei Federal 9.069/95.


5. Conclusão

Por tudo o que foi exposto, afigura-se sobejamente demonstrada a completa invalidade da Lei Estadual 12.968/99, tendo em vista ser ela inconstitucional, por malferir uma série de princípios constitucionais (isonomia, finalidade, moralidade, proporcionalidade, devido processo), por não ser o Estado competente para legislar sobre a matéria de que versa a lei e, por fim, ilegal, por ir de encontro a inúmeras leis federais tais quais o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Federal 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos), Lei Federal 6.528/78, Lei Federal 8.987/95 e, por fim, Lei Federal 9.069/95 (Lei do Plano Real), sendo direito básico do consumidor pagar estritamente por aquilo que realmente consumiu.

E o que fazer em face disso? Qual seria a melhor medida para evitar que a população seja ainda mais onerada com essas tarifas, taxas e outros confiscos institucionalizados?

Primeiramente, é perfeitamente adequado a propositura de ações individuais contra a cobrança da malsinada Tarifa. É cabível, inclusive, o mandado de segurança visando suspender de imediato a sua cobrança e requerer a devolução (em dobro, por força do art. 42, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor) do que foi cobrado indevidamente nos últimos cento e vinte dias, que é o prazo decadencial do writ of mandamus.

Nem se diga, no caso, que se trataria de mandado de segurança contra lei em tese, o que é vedado pela súmula 266 do STF. Realmente, o remédio heróico, no caso, é perfeitamente cabível por duas razões. Primeiro, a lei é de efeitos concretos e imediato. Segundo, a autoridade coatora está, como não poderia deixar de ser, aplicando-a normalmente, conforme é notório e pode ser vislumbrado nas contas de água anexadas. Assim, "não há falar de impetração contra ato normativo em tese — hipótese vedada pela Súmula 266 do STF —, se o ato, formalmente normativo, tem eficácia, concreta e imediata, ainda que em caráter geral (RTJ, 111/184)".

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A par disso, bem leciona Hely Lopes Meirelles, "a lei em tese, como norma abstrata de conduta, não é atacável por mandado de segurança (STF - Súmula 266), pela óbvia razão de que não lesa, por si só, qualquer direito individual. Necessária se torna a conversão da norma abstrata em ato concreto, para expor-se à impetração (...)". Empós, arremata o grande jurista:

"Vê-se, portanto, que o objeto normal do mandado de segurança é o ato administrativo específico, mas por exceção presta-se atacar as leis e decretos de efeitos concretos (...) Por leis e decretos de efeitos concretos entendem-se aqueles que trazem em si mesmos o resultado específico pretendido, tais como as leis que aprovam planos de urbanização, as que fixam limites territoriais, as que criam municípios ou desmembram distritos, as que concedem isenções fiscais, as que proíbem atividades ou condutas individuais, os decretos que desapropriam bens, os que fixam tarifas, os que fazem meações e outros dessa espécie. Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos concretos, revestindo a forma imprópria de lei ou decreto, por exigências administrativas. Não contêm mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta, atuam concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de efeitos individuais e específicos, razão pela qual se expõem ao ataque pelo mandado de segurança" ("Mandado de Segurança e Ação Popular", 10ª edição ampliada, pág. 14/15).

Por essa razão, ou seja, por a Lei Estadual 12.968/99 atuar concreta e imediatamente, impondo sua aplicação, a autoridade coatora seria justamente o Presidente da CAGECE, que é o responsável pela execução da medida e, portanto, o ato dele será o atacado em sede mandamental.

No âmbito coletivo, afigura-se-nos iniludível o cabimento de ação civil pública, proposta por qualquer entidade que possua a chamada "representatividade adequada", incluindo-se aqui, obviamente, o Ministério Público.

No presente caso, os interesses em jogo são da categoria dos denominados "individuais homogêneos", "assim entendidos os decorrentes de origem comum" (CDC, art. 81, parágrafo único, III), sendo certo que proteção dos interesses individuais homogêneos, em matéria de direito do consumidor, é atualmente legalmente possível, pois o Código de Defesa do Consumidor possibilitou a propositura da "ação civil pública" e da "ação civil coletiva" para defendê-los em juízo, sendo que a legitimação ativa para a defesa desses interesses será "concorrente e disjuntiva" de qualquer co-legitimado que demonstre, no caso concreto, a "representatividade adequada". Nem se queira invocar aqui o precedente do Supremo Tribunal Federal que nega legitimidade ativa ao Ministério Público para propor ação civil pública que verse sobre tributos (RE 195.056-PR, rel. Min. Carlos Velloso, 9.12.99 e RE 213.631-MG, rel. Min. Ilmar Galvão, 9.12.99). A uma, porque não se pode afirmar que a Tarifa Excedente de Consumo é um tributo. A duas, porque a relação jurídica existente entre o consumidor e o fornecedor do serviços de água, embora eminentemente pública, é inegavelmente uma relação de consumo, onde incide, sem receio de dúvida, as disposições constantes no Código de Defesa do Consumidor que atribuem legitimidade ativa ao Ministério Público para a propositura de ação civil pública em favor dos consumidores.

Pensar o contrário, seria deixar sem tutela adequada esses interesses individuais homogêneos, o que fere frontalmente o princípio do acesso à justiça. De fato, um sistema que consagra e protege interesses coletivos e não estrutura meios adequados para permitir sua efetiva tutela é um sistema incompleto ou falho.

Como bem resume MARINONI,

"se a disciplina da legitimação para a causa ativa, no processo civil individualista, constitui obstáculo para o acesso à justiça, aponta-se, agora, para a ‘molecularização’ do direito e do processo, com a reestruturação das categorias processuais clássicas, para sua adaptação aos conflitos emergentes. É o tratamento dos conflitos a partir de uma ótica solidarista e mediante soluções destinadas também a grupos de indivíduos, e não somente a indivíduos enquanto tais" (Novas Linhas do Processo Civil. 3ª ed. Malheiros, São Paulo, 1999, p. 69).

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Sobre o autor
George Marmelstein Lima

Juiz Federal em Fortaleza (CE). Professor de Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, George Marmelstein. Inconstitucionalidades e ilegalidades da tarifa excedente de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2626. Acesso em: 19 abr. 2024.

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