Artigo Destaque dos editores

Considerações sobre a função social da propriedade

Exibindo página 2 de 3
02/01/2014 às 16:53
Leia nesta página:

A função social da propriedade na Constituição de 1988 e no Código Civil de 2002

Segundo Gustavo Tepedino, o direito brasileiro pela primeira vez reconheceu a função social da propriedade no texto constitucional de 1946. Estava-se diante de uma política intervencionista influenciada pela Europa do pós-guerra. [42] Sobre o assunto, pode-se afirmar que no curso do século XX foi constatado que a forma pela qual determinado ordenamento conforma o direito de propriedade relaciona-se à questão da ordem econômica, v.g., a distinção entre economia planificada e economia de mercado. [43] Ora, a função social da propriedade não se fez presente apenas em regimes democráticos.

Já na Constituição de 1967, a função social da propriedade foi erigida a princípio da ordem econômica e social. A função social da propriedade passou a ser tida como um direito fundamental.[44]Porém, tal ideal de restrição à propriedade privada mostrou-se incapaz de lidar com as injustiças sociais.

Nada obstante, de maior relevância são as várias disposições da Constituição de 1988 que tratam do direito de propriedade. Os incisos XXII a XXXI do art. 5.º da CF aplicam-se ao direito de propriedade em sentido amplo (o que inclui o direito de sucessão, o direito autoral etc.). Aqui destaca-se que o inc. XXII garante o direito de propriedade, por sua vez, o inciso XXII estabelece que a propriedade cumprirá com a sua função social. [45]

De acordo com Gilmar Ferreira Mendes, essas disposições podem trazer alguns problemas. Ocorre que a atuação do legislador infraconstitucional, ao limitar o direito de propriedade, segundo o constitucionalista, não pode chegar ao ponto de suprimi-lo, vez que este se encontra constitucionalmente assegurado. [46]

As disposições constitucionais acerca do instituto revelam como o direito de propriedade paulatinamente descolou-se do paradigma civilístico.[47] Sobre o assunto afirma Rodrigo Xavier Leonardo: pode-se dizer que, atualmente, no direito brasileiro, o fundamento jurídico da propriedade não mais se encontra no Código Civil. O primeiro e principal fundamento dogmático-jurídico da propriedade se encontra na Constituição Federal.[48] Ademais, o citado autor lembra que a propriedade, antes um direito subjetivo, agora é um princípio geral da organização social e econômica da sociedade. [49]

Além do mais, o conceito constitucionalizado de propriedade não está restrito ao sentido estrito de propriedade. De acordo com Alcidez Tomasetti Junior:

O fio do discurso até agora expresso induz à percepção de que “Propriedade” não traduz noção unitária. Propriedade sobre bens de consumo; propriedade sobre bens de produção; propriedade personalíssima; propriedade privada; propriedade pública; propriedade industrial etc.; são expressões que denotam a existência de específicos regramentos de direito. Não sobreviveu, no direito positivo, a antiga pretensão, que a dogmática tradicional ainda sustenta, a uma noção de cerne fixo, definitivo, de “propriedade”. [50]

Frise-se que as disposições constitucionais acerca da propriedade findaram com a tradicional unicidade do instituto. Existe uma ampla variedade de estatutos das propriedades[51], o que decorre do amplo rol de bens aptos a serem apropriados. Nessa linha, é interessante destacar a diferença entre a conformação da função social da propriedade imobiliária urbana (§ 2.º do art. 182 da Constituição Federal) e da função social da propriedade imobiliária rural (art. 186 da CF). [52]

A ideia de função social da propriedade não se presta exclusivamente à tutela dos interesses patrimoniais do proprietário, busca-se o resguardo de interesses metaindividuais de cunho existencial titularizados pela coletividade. [53]Para que cumpra a sua função social, a propriedade urbana deve atender às exigências previstas no plano diretor ao qual está submetida (§ 2.º do art. 182 da CF). A propriedade urbana que não cumpre a função social será desapropriada em nome da política urbana; porém, na prática, tal desapropriação dificilmente ocorrerá, vez que para tanto deverão restar frustradas as seguintes medidas: a imposição de parcelamento do solo ou edificação compulsória; tributação progressiva no tempo. Digna de nota é a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da figura da usucapião coletiva, prevista no art. 10.º do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/01) – trata-se se figura umbilicalmente ligada à noção de função social da propriedade.

Quanto ao cumprimento da função social pela propriedade rural, faz-se fundamental a leitura dos arts. 186 da CF:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Segundo Gustavo Tepedino, da leitura do supracitado dispositivo infere-se que proprietário deve exercer seu direito de propriedade respeitando os múltiplos interesses não proprietários, que, segundo esse civilista, abarcam a proteção ambiental, a utilização racional das reservas naturais, as relações de trabalho derivadas da situação proprietária, o bem-estar desses mesmos trabalhadores etc. [54]

Por outro lado, o art. 185, II, da Constituição Federal, determina que a propriedade produtiva não é susceptível de desapropriação para fins de reforma agrária. Sobre isso, Gustavo Tepedino afirma que esse dispositivo não pode ser capaz de impedir a desapropriação para fins de reforma agrária, por exemplo, de uma propriedade que, embora produtiva, vocacione-se a fins especulativos. [55] De outro ponto de vista, Carlos Frederico Marés atribui a contradição entre os artigos da Constituição à atuação dos ruralistas na elaboração da carta magna. Dentro do jogo político, teriam sido inseridas disposições capazes de enfraquecer ou mesmo neutralizar as disposições progressistas. [56]

Frise-se, todavia, que a Lei 8.629/93, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal, em seu art. 7.º, inc. III define que não será passível de desapropriação, para fins de reforma agrária, o imóvel que comprove estar sendo objeto de implantação de projeto técnico que (...) preveja que, no mínimo, 80% (oitenta por cento) da área aproveitável do imóvel seja efetivamente utilizada em, no máximo, 3 (três) anos para as culturas anuais e 5 (cinco) anos para as culturas permanentes.Ora, pela leitura do citado dispositivo novamente vem à baila a ideia de que a propriedade produtiva não é passível de desapropriação.

De outro viés, criticando a imunização da propriedade produtiva da desapropriação para fins de reforma agrária, Carlos Frederico Marés afirma que, caso uma terra produtiva não possa ser desapropriada, a própria ideia de função social seria inútil, criando um obstáculo à reforma agrária. Para o citado autor, só pode ser considerada produtiva uma gleba que cumpra os demais requisitos relativos à função social. [57] Em sentido oposto, Luciano de Camargo Pentado afirma que (...) a CF 185 II exclui a propriedade produtiva do rol dos bens desapropriáveis para fins de reforma agrária. Ela é imune à sanção pelo descumprimento da função social. [58]

Contudo, digna de nota é a decisão proferida pelo STJ no agravo regimental no recurso especial – 1138517[59], o qual é eloquente ao afirmar que, para que uma propriedade cumpra com a sua função social, não basta apenas que seja produtiva. Tomamos a liberdade de transcrever o seguinte trecho:

Todavia, a função social da propriedade não se resume àexploração econômica do bem. A conduta ativa do proprietário deveoperar-se de maneira racional, sustentável, em respeito aos ditamesda justiça social, e como instrumento para a realização do fim deassegurar a todos uma existência digna.Há, conforme se observa, uma nítida distinção entre a propriedadeque realiza uma função individual e aquela condicionada pela funçãosocial. Enquanto a primeira exige que o proprietário não a utilizeem prejuízo de outrem (sob pena de sofrer restrições decorrentes do poder de polícia), a segunda, de modo inverso, impõe a exploração dobem em benefício de terceiros.Assim, nos termos dos arts. 186 da CF, e 9º da Lei n. 8.629/1993,a função social só estará sendo cumprida quando o proprietáriopromover a exploração racional e adequada de sua terra e,simultaneamente, respeitar a legislação trabalhista e ambiental,além de favorecer o bem-estar dos trabalhadores.

Contudo, em que pese o tom progressista desse julgado, infere-se que no caso em comento não restou comprovado o descumprimento da função social da propriedade.

Nada obstante a polêmica acima notificada, infere-se que a concepção constitucional de propriedade distanciou-se da visão tradicional, que a enxergava como um direito absolto. Ao proprietário não é mais dada a possibilidade de exercer seu direito contra a coletividade de forma irrestrita. Além do mais, o art. 5.º da Constituição federal garante o direito “à propriedade”, ligado ao núcleo existencial correlacionado à dignidade da pessoa humana[60], aqui se fala na problemática do acesso à propriedade. 

Grande relevância também é carreada pela função social dos bens de produção. De acordo com Alcides Tomasetti Junior, a propriedade privada dos bens de produção funcionaliza-se. Não se presta apenas obtenção do lucro, de acordo com o art. 170 da CF – A ordem econômica [que, entre outros, possui como princípio a propriedade privada] fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. [61]

Para além da Constituição Federal, o Código Civil de 2002 também trouxe disposições sobre a função social da propriedade. Porém, sobre a função social no CC de 2002, disserta criticamente Rodrigo Xavier Leonardo:

O Novo Código Civil – para dizer o menos -, não promover qualquer alteração efetivamente substancial na noção de propriedade. Basta notar que sua menção à funcionalização da propriedade resume-se apenas a um aspecto meramente externo, vinculado muito mais à vedação de um exercício abusivo dos poderes do proprietário do que a uma alteração da clássica noção de propriedade.

Sobre a disciplina da função social da propriedade no Código Civil de 2002, Tepedino lembra que o caput do art. 524 do CC de 1916 trazia a seguinte dicção: A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua. Por outro lado, no caput do art. 1.228 do CC de 2002, a expressão a lei assegura foi substituída pela locução o proprietário tem a faculdade. Conforme o citado civilista, redação do dispositivo do diploma anterior ostentava fortes características jus naturalistas, ao passo que reconhecia o direito de propriedade como algo preexistente a sua disciplina legal. Como se vê, essa concepção não persistiu no Código Civil de 2002. [62]


A tutela da propriedade que não cumpre com a sua função social

É inelutável que a função social da propriedade não é uma mera limitação externa do direito de propriedade; em verdade ela atua no próprio conteúdo do direito de propriedade. Contudo, há de ser feita a ressalva de que a função social da propriedade não se vocaciona a eliminar a propriedade privada, a funcionalização surge como uma alternativa à extinção da propriedade privada. Nesse sentido, afirma Anderson Schreiber: a propriedade se mantém privada, mas se afasta da definição individualista de “poder absoluto do proprietário”. [63]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Destarte, questiona-se se o proprietário que não cumpre com a função social pode reagir a agressões de terceiros; ou não possui nenhuma garantia de tutela pelo ordenamento jurídico? [64] Sobre isso afirma Francisco Eduardo Loureiro:

Não se pode olvidar, ao examinar a questão, que a própria Constituição Federal, ao disciplinar o mau uso da propriedade, urbana ou rural, estipulou gradativas sanções, (...), que vão desde a edificação compulsória, passando pela tributação progressiva, até a desapropriação para fins interesse social, mediante pagamento em títulos da dívida pública. Não cogitou, todavia, da negativa de tutela, ou da retirada de legitimação do mau proprietário.[65]

Como se vê, o autor supracitado não admite que as invasões a propriedades que não cumprem com a função social possam ser admitidas na ordem jurídica vigente, vez que o cumprimento ou não da função deve ser auferido pelo juiz no caso concreto. Em sentido diverso Carlos Frederico Marés, entende que, ao passo que a Lei –a Constituição- condicionou o exercício do direito de propriedade ao atendimento da função social, o proprietário que com ela não cumpre, não poderia usar a lei –ações possessórias e reivindicatórias. [66] Por outro lado, mesmo Loureiro, refratário ao direito de invasões de terras que não cumprem com a sua função social, entende que o proprietário que por grande lapso temporal deixou de utilizar o imóvel, não pode, a qualquer momento, retomar seu bem de forma a evitar a consumação da prescrição aquisitiva. [67]


Discussão: A função social da propriedade é uma cláusula geral?

A função social da propriedade pode ser compreendida de duas maneiras. A primeira delas concebe a função social como sendo uma cláusula geral. Como consequência desse posicionamento, ela seria dotada de conteúdo indeterminado, determinado pelo juiz na análise do caso concreto.

Como é sabido, as cláusulas gerais são conceitos legais indeterminados – dinâmicos - cujo conteúdo há de ser preenchido pela doutrina e pela jurisprudência, que, para tanto, devem recorrer aos valores sociais e culturais consagrados em determinado período e local. Sobre a técnica das cláusulas gerais, assevera Flávio Tartuce:

Pela conjugação das duas construções, na análise dos institutos jurídicos presentes no Código Civil de 2002, muitos deles abetos, genéricos e indeterminados, o jurista e o magistrado deverão fazer um mergulho profundo nos fatos que margeiam a situação, para então, de acordo com os seus valores e da sociedade – construídos após anos de educação e de experiências -, aplicar a norma de acordo com os seus limites, procurando sempre interpretar sistematicamente a legislação privada.[68]

Adoção da técnica das cláusulas gerais, mormente no que toca à função social da propriedade e desapropriação-sanção, em razão dos valores envolvidos, é uma questão deveras problemática. A ideia de função social da propriedade como cláusula geral pode ser criticada na medida em que confere ao Judiciário grande margem de discricionariedade e poder de dirigismo. Sobre a crítica, transcrevemos as palavras de Francisco Eduardo Loureiro: A crítica a tal posição funda-se no fato de que se conferiria ao Poder Judiciário uma margem muito larga de decisão e de intervenção na vida econômica. Em última análise, o juiz teria atribuição para apreciações de política econômica, sem investidura por representação popular.[69]

Em posição intermediária, Anderson Schreiber não nega que a função social da propriedade seja uma cláusula geral, mas admite a existência de parâmetros objetivos para a aplicação da cláusula gera da função social da propriedade:

Impor parâmetros objetivos à aplicação dos princípios constitucionais é necessário e conveniente. Isso por inúmeras razões que vão desde a possibilidade de abuso por parte do Poder Judiciário até os ricos de que a inovação repetida e impertinente do princípio acabe por convertê-lo em fórmula vazia, abandonada à incredibilidade e ao esquecimento. Consoante a melhor doutrina, servem de parâmetros para aplicação dos princípios gerais e os próprios valores consagrados na Constituição.[70]

De outra monta, a posição contrária à tese da função social como cláusula geral também afirma que o conceito de função social é retirado da lei ordinária, não advém da decisão judicial que acerta um caso concreto. [71]

Sobre outro viés, Oliveira Ascensão mostra-se refratário a uma intervenção estatal tão incisiva ao ponto de que o agir do particular fosse minuciosamente dirigido pelo Estado, todavia entende que devem estar previstos em lei os casos em que existe flagrante desvio da função social. Nas palavras desse jurista:

A garantia da autonomia pessoal é, logicamente, o objeto primário da atribuição dos bens em termos reais. E essa falharia se a conduta do sujeito fosse minunciosamente determinada pela lei ou pelos órgãos públicos, sob a alegação da garantia da função. O que se pretende antes de mais nada é a colaboração com a liberdade dos indivíduos. As intervenções em nome da função devem ser prudentes, prevendo os casos em que os titulares se desviaram flagrantemente das necessidades gerais, ou em que estas se apresentam de modo premente.[72]

De início, cumpre ressaltar que, no que toca a propriedade móvel, em que pese serem parcas construções doutrinárias e jurisprudenciais sobre o assunto, parece razoável afirmar que a função social seja uma cláusula geral, dada a grande maleabilidade pela qual o tema pode ser tratado pela jurisprudência. Tal maleabilidade também é vista com maior frequência em julgados que não se discutiu a perda propriedade do titular que não cumpriu com a função social ou em algumas ações possessórias/petitórias propostas contra ocupações consolidadas.[73]

De outra toada, centrando-se na questão da função social da propriedade imobiliária – tanto rural como urbana – a existência de parâmetros objetivos na legislação infraconstitucional para a verificação ou não do cumprimento da função social da propriedade no que toca a aplicação da desapropriação-sanção pode indicar que, ao menos no que toca essas espécies de propriedade, a função social não é uma cláusula geral[74] ou ao menos restaria mitigada a ideia de que o conceito de cláusula geral é preenchido de acordo com os valores culturais do magistrado e da sociedade em determinado momento histórico.

Quando à função social da propriedade urbana, sabe-se que a progressividade do IPTU tem como um de seus escopos fomentar a utilização socialmente funcional do imóvel. O § 2.º do art. 182 da CF estabelece que a propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Sobre o imposto sobre propriedade predial e territorial urbana, § 1.º e respectivos incisos, do art. 156 do CF reza que o IPTU, sem prejuízo da necessidade de atendimento às ditames do plano diretor, poderá ser progressivo de acordo com o valor do imóvel e ter alíquotas diferentes de acordo com a locação e o uso do imóvel. Pois bem, como pontuado por Anderson Schreiber, ambos os dispositivos referendados ligam o IPTU progressivo à busca materialização da função social da propriedade. Porém, questionou-se se o IPTU progressivo em razão do descumprimento da função social da propriedade poderia ser aplicado afora os casos de violações ao plano diretor. Destarte, o Supremo Tribunal Federal – no Recurso Extraordinário n.º 153.771 - foi chamado a decidir a questão e fixou entendimento no sentido de que o IPTU progressivo somente pode ser aplicado nas hipóteses de descumprimento do plano diretor. [75] Ora, ao passo que o plano diretor traz parâmetros objetivos quanto à averiguação do cumprimento ou não da função social da propriedade e que a jurisprudência não admite a utilização da sanção do IPTU progressivo afora às hipóteses previstas no plano direito diretor, a tese de que a função social da propriedade urbana seria uma cláusula sofre significativo abalo.

Outrossim, no tocante à função social da propriedade imobiliária rural, para além da polêmica acerca da imunização à desapropriação da propriedade produtiva, infere-se que a Lei 8.629/93, em sua art. 9.º, regulamente e pormenoriza os requisitos previstos no art. 186 da CF. [76]In verbis o referido dispositivo:

  Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei.

§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.

§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.

§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições.

§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.

Por outro lado, sabe-se que a Lei 8.269/1993 possui critérios técnicos para averiguar o grau de utilização da terra (GUT) e o grau de eficiência da exploração (GEE) etc. [77]

Ato contínuo, levando-se em conta os parâmetros objetivos dos dispositivos supracitados no que conta a função social da propriedade, percebe-se que ela tende a se afastar da ideia de cláusula geral, ao menos se levado em conta a definição de Flávio Tartuce e de grande parte da doutrina, referendada nesse trabalho, que a considera a cláusula geral um conceito aberto, indeterminado, que deve ser preenchido pela experiência do aplicador do direito e pelos valores culturais.

Como alento, cumpre ressaltar que essa objetivação da função social, em que pesem as plausíveis criticas que possa sofrer[78], por vezes pode ser útil à efetivação do comando constitucional. Nesse ponto, é interessante frisar que o Programa Nacional de Direitos humanos 2 (PNDH 2), entre outras, tem a seguinte disposição: 414. Apoiar a aprovação de projeto de lei que propõe que a concessão de medida liminar de reintegração de posse seja condicionada à comprovação da função social da propriedade, tornando obrigatória a intervenção do Ministério Público em todas as fases processuais de litígios envolvendo a posse da terra urbana e rural. [79]Sabe-se que tal disposição, pensada com vistas a lidar com um problema grave na realidade fundiária brasileira, foi criticada, pois ao passo que a função social da propriedade seria uma cláusula geral, condicionar o deferimento da liminar possessória à prova do atendimento da função social poderia abrir margem a decisões arbitrárias por parte do magistrado, gerando insegurança jurídica.[80] Nada obstante, tal crítica restaria afastada na medida em que se admite a existência de parâmetros objetivos para que seja averiguado o atendimento à função social da propriedade.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Rudiniki Neto

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista de Iniciação Científica pelo UFPR/Tesouro Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUDINIKI NETO, Rogério. Considerações sobre a função social da propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3837, 2 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26305. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos