INTRODUÇÃO
A relação do homem com os bens é um dos temas mais interessantes e talvez um dos mais tormentosos do direito. Tal relação é perpassada pelos mais diversos interesses, por vezes antagônicos, bem como por opções econômico-jurídicas que sofrem influências de ordem religiosa, ética, política etc.[1] A temática ganha relevo ainda maior quando se leva em conta que humanidade, em todas as épocas, de alguma maneira teve na terra uma das (senão a única) fontes de seu sustento. [2]
Destarte, infere-se que o estudo da história, quando provido de contundente rigor metodológico, serve para problematizar a questão da propriedade no direito. Revela que a forma pela qual concebemos o instituto é uma construção histórica, delimitada temporalmente e espacialmente. Nesse sentido ensina Paolo Grossi:
É o convite a relativizar noção e instituto que ele pode plenamente e sem temor colher como mensagem desta fértil reconsideração teórica, que quer ser sobretudo profanação de um simulacro e recuperação para a história de um modelo absoluto. Sobre isso o historiador não pode não consentir; para ele “propriedade” deve ser somente um artifício verbal para indicar a solução histórica que um ordenamento dá ao problema da relação jurídica mais intensa entre um sujeito e um bem, ou, em outras palavras, a resposta à questão central sobre a consciência mínima do ‘meu’ jurídico; soluções e respostas que são duplamente multíplices, segundo os vários climas históricos [...]. [3]
Como ponto de partida desse estudo, tomamos como pressuposto que uma mesma palavra, de acordo com a formação discursiva na qual está inserida, assume sentidos muito diversos. O significado de uma palavra é dado pela língua e pela história. [4] As variadas significações que determinada palavra pode carrear estão inseridas dentro de um discurso, que é possibilitado pela língua.
O discurso é formando por um conjunto de práticas peculiares a determinada sociedade em um período histórico específico. Nada obstante, ele não pode ser compreendido como algo estanque, insusceptível de transformações; pelo contrário, há de ser enxergado como um processo. Dentro desse processo, o discurso se mantém quando é constantemente reproduzido por reiteradas práticas a ele ligadas, ou paulatinamente transforma-se pelo surgimento de outras práticas. [5] Sob esta óptica, analisando-se a histórica ocidental, percebe-se que rupturas do discurso então vigente deram azo ao surgimento de experiências jurídicas diversas. Exemplos de rupturas estão na transição do período Clássico para o Medievo, ou do Medievo para a Idade Moderna. Todavia, a transição de um discurso dominante para outro não é um processo rápido, a substituição das práticas reiteradas e a mudança da “mentalidade” podem levar séculos.
Essa construção teórica é importante e pode ser manejada para problematizar a questão da propriedade no direito e para rebater os argumentos de civilistas tradicionais que se utilizam da noção de continuísmo e chegam ao ponto de conceber determinados institutos jurídicos como naturais.
Ainda sob a égide do magistério de Paolo Grossi, é conveniente ressaltar que a expressão propriedade, quando utilizada no singular, pode levar o observador desatento à errônea conclusão de que existe tão somente uma conformação possível para a relação entre o homem e os bens – conformação esta que seria associada ao conceito de propriedade peculiar ao discurso vigente. Ato contínuo, Grossi opta por falar em propriedades – de forma a abarcar as diferentes significações que a expressão assumiu de acordo com o discurso vigente em cada experiência jurídica específica. Nada obstante, o autor florentino faz a ressalva de que o termo, mesmo que usado no plural, ainda é um reducionismo dado que nem todas as sociedades foram afeitas ao modelo de pertencimento, individual ou coletivo, dos bens. Segundo Grossi:(...) falar somente de propriedade, mesmo que no plural, significa ficar bem fechado no nicho de uma cultura do pertencimento individual. É esse um horizonte demasiado estreito. [6]
Paolo Grossi alerta ainda que a propriedade, como uma solução para a tormentosa relação entre o homem e as coisas, jamais poderá ser reduzida a uma regra técnica.[7] Antes disso, a propriedade (em sentido lato, a relação do homem com as coisas) está inserida em uma mentalidade. Não é uma mera regra técnica, pois - ainda que essa tenha sido a pretensão das codificações burguesas ao cunharem a propriedade absoluta e abstrata-, cada maneira de se compreender a relação do homem com as coisas insere-se em uma experiência jurídica localizada, em práticas constantemente reproduzidas no tempo e de maneira coletiva. [8]Liga-se a uma mentalidade e por mentalidade deve-se entender como determinada sociedade vive, entende e reproduz o fenômeno jurídico – consolidando-o ao longo do tempo.
Nessa linha, o pensamento de Grossi mostra que a forma pela qual concebemos a propriedade insere-se dentro de uma mentalidade, de um discurso, histórica a espacialmente delimitada, que se mantém pela repetição de práticas que a materializam, e que é passível de modificação quando surgem e se propagam práticas relacionadas à outra mentalidade.
Superada essa questão metodológica, centramo-nos do estudo da propriedade, do direito de propriedade, no contexto da dogmática jurídica brasileira.
O conceito jurídico de propriedade e de domínio
Na busca de um conceito jurídico-dogmático de propriedade, com a ressalva de que a propriedade vai muito além de uma regra técnica, recorremos inicialmente ao magistério de Alcides Tomasetti Júnior que, em aclamado escrito sobre o assunto, identificou quatro diferentes possibilidades para a definição jurídica de propriedade.
Conforme esse autor, em uma abordagem mais elástica, o termo propriedade seria equiparado ao direto subjetivo patrimonial.[9] Destarte, na medida em que, na referida acepção, propriedade significaria todo o conjunto de bens pertencentes à determinada pessoa, ali estariam abrangidos tanto os direitos reais, como os pessoais (vez que ambos estão dentro do gênero patrimônio). Quanto ao domínio, este estaria restrito aos bens corpóreos, uma vez que inexiste domínio de direitos pessoais. [10] Luciano de Camargo Penteado pontua que a definição supracitada releva-se presente no conteúdo de dispositivos tais como o caput do artigo 222 da Constituição Federal[11]ou no art. 1.665 do CC. [12]-[13]
Já na segunda definição trazida Tomasetti Júnior, a expressão propriedade engloba todos os direitos reais – o domínio e a totalidade dos direitos reais limitados. [14] Sobre essa definição assevera Luciano de Camargo Penteado:
Nesta acepção, propriedade é todo e qualquer direito real ou situação fática com eficácia real (notadamente a posse), abrangendo assim, as situações possessórias tuteladas pelo direito. Propriedade, por vezes, surge na lei para designar todos os direitos reais (típicos) e também a situação fática da posse, ou seus efeitos jurídicos. É a propriedade lato sensu.
Tal acepção, em que pese tecnicamente criticável, é utilizada em dispositivos como ao art. 1.229 do CC, segundo o qual a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizados, por terceiro, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las. Ora, ninguém duvida que a amplitude desse dispositivo não abranja tão somente o proprietário. Em verdade, o artigo em comento tutela, entre outros, o usufrutuário e o possuidor. [15]
Seguindo adiante, tem-se que a terceira definição restringe o termo propriedade, nas palavras de Tomasetti Júnior, ao direito subjetivo patrimonial que tem por objeto bem incorpóreo. [16] Sobre esse conceito, teoriza Penteado:
É empegado para abranger as situações de titularidade de direitos patrimoniais referentes a objetos de criação intelectual. Assim, haveria a propriedade literária, artística, científica e a intelectual, a qual, por vezes, abrange a coisa corpórea, por vezes, apenas é imaterial. No sistema privado contemporâneo, ela está tutelada e regulada em legislação específica e destacada do direito do direito das coisas, em vista da sua profunda conexão com os direitos da personalidade e do regime diferenciado que adquiriram os contratos de direitos de autor, bem como o direito de patentes e a propriedade industrial.[17]
Destarte, como bem pontuado na passagem transcrita, a acepção de propriedade correlacionada aos direitos do autor apresenta notável relevância na medida em que desemboca em um regime diferenciado de tutela, diverso daquele peculiar ao direito das coisas, vez que nesse vêm a baila significativos aspectos de ordem moral.
No último significado trazido por Tomasetti, propriedade o corresponde ao domínio. Em verdade, o domínio é o direito subjetivo real pleno, em contraponto aos chamados direitos subjetivos reais limitados – tias como a hipoteca, o usufruto, as servidões etc. [18]
Conforme Luciano de Camargo Penteado, a doutrina é relutante em utilizar as palavras propriedade e domínio como se fossem sinônimos. Na busca por uma definição técnica entre propriedade e domínio, persistente referendar o fato de que o domínio abrange apenas bens corpóreos, diferentemente da propriedade. [19] Superado esse ponto e, doravante, centrando-se apenas no que concerne aos bens corpóreos, infere-se que domínio e propriedade só serão sinônimos quando, na esfera jurídica do proprietário, estiverem reunidos todos os direitos reais limitados. Por exemplo, na pendência de usufruto, o proprietário não terá o domínio. [20]
Considerações sobre o conceito moderno de propriedade
De modo geral, como bem percebido por Francisco Eduardo Loureiro, os manuais tradicionais de Direito Civil, ao abordarem o direito de propriedade, filam-se à concepção analítica de propriedade, que destaca os elementos essências desse direito, quais sejam: o direito usar, gozar e dispor da coisa, e reivindica-la em poder de quem injustamente a detenha; e não tratam dos deveres do proprietário para com terceiros não proprietários. Tais manuais tão somente mencionam limites legais externos ao núcleo do direito de propriedade. [21]
O direito de usar permite que o titular aproveite-se da coisa para satisfazer suas necessidades pessoais[22]; o poder de gozar – segundo Luciano de Camargo Penteado, (...) consiste na possibilidade de que é dotado o proprietário de impulsionar a atividade de percepção de frutos com a correlata aquisição do domínio sobre os mesmos, uma vez separados da coisa frugífera, conferindo-lhes a destinação que lhe for mais conveniente[23]; por sua vez, o direito de dispor diz com o poder de alienar a coisa ou gravá-la com ônus. [24]
Dignas de nota também são as concepções sintética e descritiva de propriedade. Pela sintética, a propriedade tão somente corresponde à submissão de uma coisa a uma pessoa. Pela descritiva tem-se que, conforme Ricardo Aronne, que a propriedade é (...) o direito complexo, absoluto exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. [25]
Em outra perspectiva, Paolo Grossi pontua que as principais características da propriedade moderna são a simplicidade e a abstração. A simplicidade diz com fato da propriedade moderna não estar mais dependente do uso; ela é uma potência. Já a abstração relaciona-se à constatação de que nunca antes tantas coisas foram passíveis de apropriação (pode-se ser proprietário inclusive de bens imateriais). [26]
Frise-se que a inexistência de devedores o proprietário para com terceiros legou a este a faculdade de fazer o que bem entender com o objeto de sua propriedade, poderia subutilizá-lo, inutiliza-lo e, quiçá, destruí-lo – desde que não desrespeitasse a lei. O domínio era considerado um direito absoluto em dois sentidos: primeiramente por ser exercido em detrimento de um sujeito passivo universal e, em segundo lugar, pois era facultado ao proprietário um direito irrestrito sobre a coisa, havia uma liberdade absoluta e desprovida de limitações. [27] Esse último, aspecto consiste no tradicional jus abutendi, o qual, de acordo com Darcy Bessone, (...) exprimia um poder amplíssimo, legitimador até do abuso no exercício do direito de propriedade. Em caso de negação do direito real de propriedade, estavam à disposição do proprietário as ações petitórias. A desapropriação só poderia ser feita mediante prévia indenização. [28]
Como dito, o sujeito passivo do esquema da relação jurídica de direito das coisas corresponde à coletividade, compreendida como um todo. A esta não era facultada a prática de atos que possam interferir na esfera jurídica do proprietário sem o consentimento deste. [29]
Ademais, a persistência desse discurso proprietário pode em parte ser justificada pela tradição dos juristas contemporâneos em enxergar o direito posto como o resultado de uma evolução linear iniciada em Roma e chancelada pelo acúmulo e desenvolvimento do conhecimento ao longo dos séculos. [30] Frise-se que esse pensamento – errôneo- chega ponto de conceber institutos jurídicos como sendo sagrados.
Porém, essa abordagem “evolucionista” do direito de propriedade sucumbe diante de uma análise historiográfica provida de contundente rigor metodológico. Conforme pontuado por Paolo Grossi, o dominum romano e a propriedade moderna, em que pese guardem semelhanças no que toca a tipicidade ou o fato de civilização romana ter experimentado um modelo de apropriação individual peculiar à propriedade desenhada nas codificações burguesas; afastam-se na medida em que o dominum romano não possuía uma função econômica acentuada, era antes um instrumento de colonização da terra. O poder de fazer a terra circular era pequeno e a propriedade clássica estava ligada à figura do pater famílias.[31]Já Michel Villey ensina que os romanos não conheciam a noção de direito subjetivo, o dominumnão era um direito; mas sim um poder não jurídico do pater famílias.[32] Já a experiência jurídica medieval é, por si só, capaz de abalar o dogma do continuísmo. Obviamente uma analise mais pormenoriza desse período histórico transcende o objetivo deste trabalho[33], porém, por ora podemos citar que tal período foi marcado pela inexistência do Estado, pelo fim das figuras tipificadas – tal como o dominum ou a possessio – e pela existência de vários titulares simultâneos sobre o mesmo bem. [34]
O excerto abaixo transcrito, extraído da doutrina de Washington de Barros Monteiro, é um exemplo eloquente da civilística tradicional que tinha como um de seus baluartes a legitimação do direito pelo dogma do continuísmo, vejamos:
Legitimidade do direito de propriedade – Esse direito deve ser conservado? Não hesitamos em responder afirmativamente, estribando-se na argumentação de PLANIOL, que estabelece as seguintes premissas, antes de chegar à mencionada conclusão: a) a propriedade é um fato histórico, que remonta à mais Alta Antiguidade. Preexiste às leis que a regulam presentemente; b) sua organização atual resulta de constante evolução. Como a família ou o casamento, a propriedade corresponde a uma força social, que se desenvolve em meio de perenes vicissitudes; c) por esse motivo, não se deve nela tocar irrefletidamente, porque a experiência comprova que não se rompe impunemente com o passado; d) além disso, a propriedade tem justificada sua sobrevivência pelos incontestáveis serviços prestados à humanidade. Pode-se concluir, portanto, que ela representa necessidade econômica para as sociedades civilizadas e que se impões ao legislador e ao jurista. [35]
(grifou-se)
Ora, na passagem acima transcrita, é perceptível um certo viés jusnaturalista. Conforme observado por Darcy Bessone, essa concepção da propriedade como um direito natural, ligado à personalidade e à liberdade do indivíduo, serviu para legitimar o instituto, mormente em sua concepção pretensamente individualista.[36] Por conseguinte, essa concepção absoluta do direito de propriedade invariavelmente acaba gerando a exclusão: poucos são os proprietários e muitos são os não-proprietários. Porém, com o passar do tempo percebeu-se que tal discurso da propriedade absoluta não foi capaz de dar conta das demandas sociais.
Hoje se fala em função social da propriedade. Tal ideia remonta ao início do século XX, tendo como marco a Constituição de Weimar. Trata-se de uma alternativa à experiência socialista da propriedade coletiva. Sobre o assunto, teoriza Luciano de Camargo Penteado:
O papel dos movimentos sociais operará no sentido de buscar uma fragmentação, quando não a destruição mesma do direito de propriedade, como essencialmente injusto e promotor de desigualdades a serem aniquiladas no sistema comunista de produção. Por isso, acabou havendo ao longo do século XX certa polarização entre aspectos liberais e socialista até aflorar, lentamente, uma doutrina que fosse conciliatória da titularização proprietária individual, isto é de um sistema de propriedade privada, mas que, por outro lado, fosse assegurada a sua função social.[37]
Em verdade, as origens histórias da função social da propriedade podem ser buscadas no pensamento de Léon Duguit que, diante da critica marxista, afirmou que a propriedade deixara de ser um direito subjetivo para transmudar-se em função social do produtor de riquezas. Destarte, algumas décadas adiante, a hipótese de Duguit motivou Josserand a cunhar a teoria da relatividade do direito de propriedade, de maneira a –conforme Darcy Bessone- (...) considerar abusivo o exercício do direito, quando desatento à finalidade social determinante de sua instituição. [38]
A ideia de função no direito
A atribuição de uma “função social” a determinado instituto jurídico faz com que esse se distancie de preocupações meramente técnicas e insira-se dentro de um contexto sociológico. [39] Sobre o conceito de função no direito ensina Luciano de Camargo Penteado:
Função, em direito, é também uma relação entre (i) situações jurídicas e (ii) um elemento externo a elas, que pode ser o sujeito, a comunidade formada pela sociedade civil, o sistema de trocas por critério de valor, a estruturação da coletividade existente e operante por intermédio do Estado. Assim, existem situações jurídicas de função individual, quando o elemento externo a elas referido é o sujeito, titular das mesmas, de função social, de função econômica, de função política, respectivamente, Existem tantas funções em direito quanto os entres ou às realidades às quais podem estar referidas as diferentes situações jurídicas. Há a titularidade da situação jurídica e um fim externo a ela. [40]
Sobre esse assunto, José de Oliveira Ascensão ressalta existirem dos tipos de intervenções dentro do conceito de função social, quais sejam: intervenções limitadoras e intervenções impulsionadoras. Naquela a lei busca coibir que o titular de determinado direito funcionalizado pratique atos prejudiciais à comunidade; por outro lado; jánessas a lei, por meio do agir administrativo ou pela atuação judiciária, intervém de forma ativa, fomentando a atuação do titular do direito real de forma a ensejar benefícios à coletividade. [41]
Nesse ponto, retomando a teorização exposta no início do trabalho, pode-se afirmar que a função social da propriedade corresponde a uma mudança discursiva, perpassada pelo abandono no dogma da propriedade absoluta.