O Legislativo brasileiro está em descrédito com a sociedade. Prova disso é o reacender da envelhecida discussão sobre a guerra entre poderes de um mesmo Estado e os limites a que se submetem - e aqui, até Montesquieu hesitaria em tomar partido.
As duras críticas sofridas pela PEC 33 revelam a notória crise institucional do modelo tripartite. Apelidada pelos seus antagonistas de “PEC da submissão”, o projeto de norma constitucional foi atacado em virtude da suposta ingerência do Judiciário pelo Legislativo, que praticamente esvaziaria sua função primordial: com ele se pretende instituir o não tão bem-visto controle fraco de constitucionalidade (weak-form judicial review).
Conquanto seja discussão de elevada magnitude, não é este o pesar que se passa à análise.
Uma questão relevante passou despercebida: o Projeto de Emenda Constitucional n. 33/2011 gera uma incongruência sistêmica à jurisdição constitucional. E o pior é que não há solução visível.
Caso viesse a ser ratificado pelo povo o afastamento da declaração de inconstitucionalidade por ato superveniente do Legislativo – dispensada fundamentação para tanto – haveria uma ruptura lógica no sistema de precedentes. Afinal, mesmo cumpridas as exigências do “novo” §2º-B do art. 102 da Constituição (quórum de 3/5 e consulta popular), ainda assim não se estaria diante de revogação da ratio decidendi outrora adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Daí nasce a questão: transcenderiam os motivos determinantes da decisão que declarou a inconstitucionalidade, mesmo quando sustados os efeitos do seu dispositivo?
A PEC 33/2011, de autoria do Deputado Federal Nazareno Fonteles, tenciona postergar o efeito erga omnes e vinculante da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade, submetendo-o à prévia manifestação do Congresso Nacional (artigo 3º). Com o mecanismo adotado, poderá o Legislativo se opor àquela decisão mediante quórum de 3/5, e, caso atingido o número de parlamentares, submeterá a eficácia da decisão do STF à consulta popular.
É inerente a oponibilidade contra todos do dispositivo em sede de ação direta. Por outro lado, os motivos determinantes dessa decisão não possuem mero efeito persuasivo, mas, ao revés, são de observância obrigatória por todos.
Isso porque, em sede de controle concentrado, a Corte se debruça sobre a (in)constitucionalidade de lei em tese – ampla e genérica – de modo que a declaração em si só é possível mediante a delimitação precisa de suas razões de decidir. Não é, pois, a parte dispositiva da decisão que lhe confere o caráter de precedente.
Ora, se a interpretação de uma norma guerreada depende da eleição de determinadas razões interpretativas, e o resultado desse processo mental é, justamente, a declaração de inconstitucionalidade dessa norma (com efeito vinculante e contra todos), por óbvio que esses mesmos motivos possuem igual amplitude e devem, sim, ser seguidos nos casos futuros em que presente similitude de direito. É a essência da teoria da transcendência dos motivos determinantes, aplicada ao nosso civil law.
Retornando à problemática: segundo o modelo adotado nos dispositivos da PEC 33, o Legislativo não necessitaria embasar a medida obstativa da declaração de inconstitucionalidade, tampouco seria obrigação do povo elencar tais razões caso levada à consulta popular. Bastante o pronunciamento contrário, e já teríamos sustados os efeitos.
O que se anula, entretanto, é somente a parte dispositiva da decisão. Os seus motivos determinantes permanecem hígidos e aptos a produzir os efeitos normais de precedente. Explica-se: para se afastar a qualidade obrigatória do precedente, deve-se confrontar as suas razões determinantes com novas, que as superem, baseadas em motivo novo. Aquelas serão enfim afastadas, por não mais se adequarem – é o que tem a doutrina norte-americana como overruling.
Não é o que se observa no caso. Não há como se valer do overruling quando nem ao menos há razões de decidir elencadas pelo Legislativo ou pelo povo. Sendo assim, não há revogação do precedente, e os motivos determinantes da decisão continuam a possuir o efeito vinculante e erga omnes já esperado.
E nem há se invocar a consulta à população como “motivo novo” a ensejar o afastamento do precedente. Pensar assim acabaria obrigando o Tribunal a fundamentar em sentido outro ao que decidiu, isto é, a mudar a sua própria ratio decidendi a cada vez que submetida a sua decisão ao referendo. Isso é inviável.
Ao final, sendo o dispositivo da decisão pela inconstitucionalidade tornado sem efeito, a norma será, a despeito de motivação em sentido contrário, constitucional. Eis a flagrante contradição gerada pela PEC 33.
Para ilustrar, imagine-se diante da hipótese em que determinada lei ou ato normativo é reputado inconstitucional pelo STF. Submetendo-se ao crivo do Congresso Nacional e posteriormente à consulta da população, afasta-se os efeitos da decisão e a norma mantém sua vigência regular. Ao julgar em ação direta lei ou ato normativo semelhante, e vinculada a Corte às razões de decidir anteriormente adotadas, temos um novo pronunciamento de inconstitucionalidade, dessa vez não atacado pelo Legislativo. Conviveríamos com idêntica ratio decidendi embasando a constitucionalidade e a inconstitucionalidade de norma, sendo que, a casos análogos, devem (ou deveriam) ser dadas soluções conformes.
Escancarando a inviabilidade do Projeto, reportamo-nos às palavras de Marinoni[1], no sentido de que “o verdadeiro valor do precedente – seja qual for ele – não está na parte dispositiva da decisão, mas na essência das razões apresentadas para justificá-la”. Longe de esgotar as possibilidades sobre o assunto, fica o debate.
Nota
[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Uma nova realidade diante do projeto do CPC: A ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. Disponível em <www.marinoni.adv.br>. Acesso em: 07 de ago. de 2013.