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Guerras drônicas e os próximos 100 anos

12/01/2014 às 13:18
Leia nesta página:

A guerra e a barbárie evoluem com a tecnologia, mas isto provoca uma involução da civilização.

A I Guerra Mundial foi o último conflito que colocou  frente a frente exércitos massivos combatendo predominantemente a pé. A II Guerra Mundial foi a primeira guerra mecanizada, ou seja, em que o papel estratégico das máquinas foi maior do que o dos deslocamentos pedestres de exércitos. A Guerra do Golfo foi a primeira guerra predominantemente aérea com o uso de bombas inteligentes que filmavam sua trajetória até o destino. Os demais conflitos desde então foram combinações mais ou menos heterogêneas das últimas três modalidades de guerras, com uma ênfase crescente para a utilização de armamentos sofisticados cuja utilização depende do emprego de computadores e de sistemas de computação.  Nenhuma guerra totalmente cibernética ainda foi travada, mas estamos a caminho dela.

A utilização e inutilização virtual de Drones computadorizados de combate será a grande novidade da próxima guerra, com todas as suas implicações. Os soldados, especialmente os dos países mais avançados, já operam máquinas de matar que se parecem muito com jogos virtuais. Eles são capazes de despedaçar pessoas a centenas e milhares de quilômetros de distância vendo tudo numa tela de LCD povoada de bonequinhos que se parecem com os personagens virtuais que eles destroem impiedosamente quando estão de folga. Matar virou algo lúdico, com todas as implicações perversas e desumanas que isto traz.

Algumas sociedades, como a nossa, encaram a guerra como uma tragédia a ser evitada. Outras, como a anglo/americana, encaram a guerra com naturalidade. Guerra para norte-americanos e ingleses é um negócio lucrativo como outro qualquer, além de uma fonte de diversão sádica eventual. Há algum tempo resenhei um livro que ajuda a compreender o que os norte-americanos estão planejando para o próximo século. Reproduzo a resenha aqui para fomentar o debate.

"Os próximos 100 anos"

O lançamento deste livro recebeu várias matérias e sinopses elogiosas e favoráveis na internet. Mas até o presente momento não vi uma análise profunda do mesmo.

Logo de saída o autor afirma que qualquer "...tentativa de prever o século XXI que não comece com o reconhecimento da natureza extraordinária do poder norte-americano está fora da realidade. Mas defendo um ponto de vista ainda mais amplo e inesperado: os Estados Unidos estão apenas no início de seu poder. O século XXI vai ser o século norte-americano."

A primeira coisa que salta aos olhos é a incapacidade do autor de admitir um fato evidente. Desde a invenção das armas nucleares a guerra deixou de ser a continuação da política por outros meios. Hannah Arendt afirmou com muita propriedade que o

...desenvolvimento técnico dos implementos da violência alcançou agora o ponto em que nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de destruição ou justificar seu uso efetivo no conflito armado. Assim a guerra - desde tempos imemoriais árbitro último e implacável em disputas internacionais - perdeu muito de sua eficácia e quase todo o seu fascínio. O jogo de xadrez 'apocalíptico' entre as superpotências, quer dizer, entre aqueles que manobram no mais alto plano de nossa civilização, está sendo jogado de acordo com a regra de que 'se alguém 'vencer' é o fim para ambos'; trata-se de um jogo que não apresenta semelhança alguma com nenhum jogo de guerra que o precedeu. (SOBRE A VIOLÊNCIA, Civilização Brasileira, 2009).

Em 301 páginas o autor descreve os próximos 100 anos, em que os EUA não farão mais do que reafirmar seu poder vencendo conflitos econômicos e militares contra potências emergentes como China, Rússia, Turquia, Polônia, Turquia e Japão.

Logo no princípio, o autor faz uma apologia da cultura norte-americana. Afirma que o "...pragmatismo norte-americano foi um ataque à metafísica européia acusada de não ser prática." Segundo ele a "...cultura norte-americana não lida facilmente com o que é bonito e verdadeiro. Ela valoriza realizar coisas, e não a preocupação sobre a importância daquilo que é feito."

O que parece uma inovação é na verdade uma aplicação prática do conceito de Johann F. Herbart (1776/1841) segundo o qual "dos pensamentos saem sentimentos e, destes, princípios e modos de ação." Herbart foi um critico de Rousseau e dos outros pedagogos que desvalorizavam a instrução. Mas também foi um crítico feroz da educação tradicional por ensinar coisas inúteis para a ação. Portanto, o pragmatismo norte-americano e seu correspondente  pedagógico não nasceu nos EUA.

Para George Friedman, a China é um tigre de papel. "O problema para a China é político. A China sustenta-se por causa do dinheiro não da ideologia. Quando vier uma crise econômica e o dinheiro deixar de entrar, não só o sistema bancário terá seus espasmos, mas todo o tecido da sociedade chinesa estremecerá."

A crise financeira norte-americana veio e o crescimento econômico na China recuou apenas 2%. A China resistiu bem a retração do comércio mundial e não foram os chineses que pediram ajuda aos norte-americanos, mas os americanos que pediram ajuda aos chineses. Neste exato momento os norte-americanos tentam convencer a China a valorizar o Yuan, mas os chineses continuam se apegando à sua ideologia.

Entre os efeitos da derrocada econômica da China, o autor prevê que um "...futuro muito real para a China em 2020 é o seu velho pesadelo - um país dividido entre líderes regionais que competem entre si potências estrangeiras tirando vantagem da situação para criar regiões onde possam determinar as regras econômicas para o seu próprio bem, e um governo central tentando sustentar tudo isto, mas fracassando."

O autor parece ser um adepto do mito do eterno retorno. Para ele a história é cíclica e os problemas que corroeram o império chinês no século XIX voltarão a atormentar os chineses no século XXI. Friedman ignora o essencial. O colapso da China no século XIX foi mais um efeito do seu isolamento do que de sua arrojada inserção no mercado internacional de trocas. Os chineses parecem ter aprendido a lição: crescer e expandir ou declinar e morrer. Não me parece que os chineses desconhecem sua própria história ou que pretendam recuar no tempo. O mais provável é que diante de um colapso econômico eminente, os comunistas vão fazer o mesmo que os americanos: apelar para a guerra externa como forma de manter coesa sua imensa população e ativa sua economia.

No imaginário geopolítico de Friedmam a Rússia está fadada ao colapso. "A proteção das fronteiras não é o único problema da Rússia de hoje. Os russos são extremamente conscientes de que estão de frente para uma considerável crise demográfica. A população atual da Rússia é de cerca de 145 milhões de habitantes, e as projeções para 2050 giram em torno de 90 milhões e 125 milhões. O tempo joga contra. Dentro em breve, o problema da Rússia será sua capacidade de manter um exército suficientemente grande para suas necessidades estratégicas."

Vastos Exércitos são coisas absolutamente anacrônicas e sem qualquer valor estratégico. Há bastante tempo as fronteiras dos países não são mais defendidas por Exércitos, mas por arsenais mecanizados operados por um número cada vez menor de especialistas. O poder dissuasório dos tanques, caças, bombardeiros, mísseis e das armas nucleares garantiram as fronteiras dos paises na segunda metade do século XX e continuarão a fazer isto no século XXI. Na atualidade os Exércitos tem mais a função de evitar revoluções internas do que de prevenir guerras externas. O raciocínio do autor seria válido nos tempos de Napoleão. Na atualidade é apenas um anacronismo que inclusive deixa de levar em conta a capacidade tecnológica que os russos têm demonstrado de modernizar seus equipamentos militares.

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Friedman afirma que os "...Estados Unidos ficarão ansiosos por aumentar o poder da Polônia e dos paises bálticos e deixá-los enfrentar a Russia." Obama desistiu de instalar mísseis na Polônia e os EUA nada fizeram acerca da campanha russa na Abkasia e Ossetia do Sul. Como podemos ver os fatos já começaram a atropelar as previsões do autor.

Nos capítulos seguintes o autor prevê um forte crescimento econômico dos EUA em decorrência da superação da crise populacional com o aumento da imigração de mexicanos. Também prevê um conflito armado entre os EUA e a Turquia, Polônia (que terá subjulgado a Russia) e Japão. A vitória norte-americana será uma consequencia da construção de bases militares no espaço. Depois da vitória sobre turcos, poloneses e japoneses, os norte-americanos entrarão em guerra com o México por causa do aumento do nacionalismo mexicano dentro dos EUA. Este conflito acabará em empate.

Qualquer um que não esteja familiarizado com retórica concluirá que o livro é excelente. Os mais cuidadosos perceberão que há uma diferente entre o que o livro é e o que ele aparenta ser. "Os próximos 100 anos" aparenta  ser produto da mais genuína métis (palavra grega usada para designar a capacidade de antecipar os fatos e se apropriar do melhor resultado prático mediante uma artimanha), mas não passa de uma coleção de hipérboles adornadas por dados estatísticos corretos e projeções do presente e de um certo passado no futuro, como se o próprio futuro não fosse algo absolutamente incerto ou pudesse ser condicionado pela linguagem.

O livro não só é ridículo como extremamente pernicioso (especialmente se os norte-americanos acreditarem nele). Aos leitores brasileiros sugiro que leiam este livro levando em conta as advertências de Hannah Arendt:

"A falha lógica nessas construções hipotéticas dos eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que antes aparece como uma simples hipótese - com ou sem as suas consequentes alternativas, conforme o grau de sofisticação - torna-se imediatamente, em geral após alguns poucos parágrafos, um 'fato', o qual, então, origina toda uma corrente de não-fatos similares, daí resultando que o caráter puramente especulativo de toda empreitada é esquecido. Não é preciso dizer que isso não é ciência, mas pseudociência, 'a desesperada tentativa das ciências sociais e comportamentais', nas palavras de Noam Chomsky, 'de imitar as características superficiais das ciências que realmente têm um conteúdo intelectual significativo. E a mais óbvia e 'mais profunda objeção a esse tipo de teoria estratégica não é sua utilidade limitada, mas o seu perigo, pois ela pode nos levar a acreditar que temos um entendimento a respeito desses eventos e um controle sobre seu fluxo, o que não temos', como indicou recentemente Richard N. Goodwin em um artigo de revista que tinha a rara virtude de detectar o característico 'humor inconsciente' de muitas dessas pomposas teorias pseudocientíficas." ("Sobre a violência", Civilização Brasileira, 2009)

Em razão de seu otimismo e arrogância George Friedmam fez por merecer as palavras que Safo dirigiu às mulheres que  "de alma versátil na sua leveza só pensam no presente." O desprezo pela história impeliu o estrategista a prever a persistência do presente apesar da imprevisibilidade dos fatos futuros. Friedman se esqueceu do que ocorreu à Siena medieval, que foi sobrepujada por Florença por um fato absolutamente imprevisto: a peste bubônica. O que impede que os EUA sejam a Siena do século 21? Nada e o livro de Friedman até pode contribuir para isto desencadeando exatamente o que não deseja.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. Guerras drônicas e os próximos 100 anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3847, 12 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26363. Acesso em: 18 dez. 2024.

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