6. Considerações finais
O enfrentamento de questões jurídicas complexas, como a dos direitos sexuais e reprodutivos, embora contenha grande sofisticação no campo da retórica e da argumentação jurídico-filosófica, pouco se atém às experiências e aos dados trazidos pela realidade. No caso da esterilização não é muito diferente: discute-se, abstratamente, sobre a possibilidade de intervenção ou não do Estado, sobre a possibilidade do indivíduo ter ou não direito ao próprio corpo, sobre a existência ou não de uma política de controle demográfico – mas, sobre o impacto na vida do indivíduo, em especial o mais carente, pouco ou nada é explicitado.
Por outro lado, dos diplomas internacionais supramencionados, percebe-se uma nítida preocupação que não se limita às tradicionais questões demográficas de Estado. O debate vai muito além, pois versa sobre paternidade responsável, direitos igualitários entre homem e mulher, preservação de direitos da mulher, direito à saúde sexual e ao planejamento reprodutivo e, principalmente, a garantia de informações e acesso aos métodos contraceptivos e conceptivos pelo Estado.
Houve uma verdadeira mudança de valores. Atualmente, sob a perspectiva jurídica, o maior interessado no planejamento reprodutivo não é mais o Estado, tampouco as demais entidades sociais que opinam sobre o tema, mas, sim, o próprio cidadão. É o homem ou a mulher que deverá, em última análise, decidir quando e com quem praticar relações sexuais - ou quando e quantos filhos terá - pois as consequências de seus atos serão primeiramente sentidas por ele ou por ela, diariamente e diretamente ,em sua vida particular.
Neste passo, os direitos sexuais e reprodutivos, positivados no plano internacional e inseridos também em nossa Constituição, não podem ser encarados como instrumentos de controle pelo Estado ou por qualquer organismo político, pois são verdadeiros direitos fundamentais que visam a uma melhor qualidade de vida da pessoa. O exercício desses direitos nada mais é que uma das múltiplas formas do ser humano buscar sua própria felicidade, no que toca à saúde reprodutiva - respeitadas as necessidades e particularidades de cada um - sem descurar, no entanto, do meio social que o permeia.
Com o condão de garantir o exercício pleno de tais direitos, é necessário primeiro reconhecer quem são os destinatários: no caso, o homem e a mulher; em segundo ponto, entender qual o dever do Estado, qual seja, de informar sobre métodos conceptivos e contraceptivos, de forma isenta e clara, e de fornecer os meios materiais para realização das escolhas individuais. Neste último ponto, vale enaltecer que informar não é sinônimo de estimulo ou desestimulo, pois a informação é mera disponibilização de dados sobre as possibilidades existentes acerca do tema. O uso dos métodos conceptivos ou contraceptivos, por sua vez, nunca poderá ser encorajado ( ou até mesmo exercitado de forma coercitiva), tampouco poderá ser desencorajado por alvitre do Estado, sob pena de ,tanto em um caso como em outro, deflagrar-se verdadeira intromissão indevida na esfera individual.
Desta forma, para além da inconstitucionalidade específica do artigo 10º, parágrafo 5º, da lei de planejamento reprodutivo, há uma necessidade premente de modificação da lei como um todo, visto que o legislador trata a esterilização voluntária como opção pela qual o cidadão poderá eventualmente se arrepender, tentando todas as formas possíveis para desencorajá-lo a uma “esterilização precoce”.
No tocante ao papel desempenhado pelos órgãos públicos na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos, em que pese os avanços - afora a falta de recursos materiais, problema esse enfrentado em muitas unidades públicas de saúde - há uma necessidade contínua de capacitação e sensibilização dos profissionais que lidam com situações tão íntimas e essenciais à vida das pessoas. Para a efetivação desses direitos não toca apenas uma instituição solitária, mas a conscientização de que o Poder Público atua como um todo: parcerias entre as instituições devem ser estimuladas, sendo na troca de informações ou no desenvolvimento de ações públicas em conjunto, pois o artificial argumento de “ especialidade” ou “incompetência funcional” é o que mais desorienta e prejudica o cidadão.
Por último, no que concerne à atuação específica da Defensoria Pública na seara dos direitos sexuais e reprodutivos, cumpre enaltecer que o papel do defensor não se restringe ao mero patrocínio de causa à parte pobre na acepção jurídica do termo. Há uma função pedagógica na prestação deste serviço, uma verdadeira educação em direitos, no sentido de informar os direitos fundamentais das pessoas e auxilia-las, judicial e extrajudicialmente, na respectiva concretização desses direitos. Parece-nos nítido, portanto, que não se deve quedar inerte em face dos óbices, em especial os de natureza administrativa, que impedem o amplo acesso aos métodos conceptivos e contraceptivos, inclusive os irreversíveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LEGISLAÇÃO
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Notas
[1] A despeito da adoção do termo “planejamento familiar” pelo constituinte, o termo mais atualizado é “planejamento reprodutivo”, vez que os direitos reprodutivos podem ser exercidos fora do contexto familiar, ou seja, a decisão poderá ser tomada pelo indivíduo no sentido de não ter filhos e de não constituir uma família. Ademais, o termo é mais amplo e abrange agrupamentos humanos que não necessariamente sejam definidos juridicamente como família.
[2] Cf.: Helio Bicudo. Direitos humanos e a sua proteção.São Paulo: FTD, 1997.
[3] Vale pontuar a diferença semântica entre controle demográfico (ou de natalidade) e planejamento reprodutivo. A nosso sentir, o primeiro é política governamental em que se obriga ou condiciona o indivíduo a determinadas práticas reprodutivas e sexuais adotadas no planejamento político de cada gestão; o segundo, por sua vez, é direito fundamental tardio inerente ao complexo de direitos sociais e da saúde, a ser exercido de forma livre e consciente pelo individuo. Aliás, os termos não guardam qualquer relação, visto que o primeiro versa sobre o controle total do Estado sobre o indivíduo e o segundo, de forma diametralmente oposta, implica em uma liberdade individual a ser exercida em face do Estado. Embora o resultado de um planejamento reprodutivo eficiente possa ser a redução da natalidade, este não pode ser confundido com a política governamental em sede de controle de natalidade.
[4] Nota-se que a esterilização voluntária compreende qualquer método cientificamente aceito, embora os mais conhecidos sejam a laqueadura tubária e a vasectomia.
[5] O abolitio criminis da referida contravenção penal somente ocorreu com o advento da Lei n.6.734 de 1979.