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Caio, Tício e Mévio têm que morrer para que o Direito Penal possa viver

13/03/2014 às 16:28
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Grande parte do tempo do juiz foi gasto estudando delírios criminais que, salvo um produto do acaso, jamais julgará.

O que seria do atual Direito Penal brasileiro sem Caio, Tício e Mévio. Provavelmente nada. Dartagnan está para os Três Mosqueteiros, assim como o direto punitivo está para nossos inesquecíveis Cainho,Ticinho e Mevinho – intimidade pura. Digo isso porque o alto grau de abstração que circunda o Direito Penal é consequência, em grande parte, desse trio. Os crimes dos quais nossos autores tomaram e tomam parte são deveras bem elaborados. O grande óbice de tudo isso é que no mundo fático; no mundo dos homens médios, convive-se com crimes menos sofisticados: é o vizinho que esbofeteia o outro; é o motorista que atropela o pedestre; é o pai que maltrata os filhos; é o sujeito que esfaqueia outro em uma festa e tantos outros que povoam o cotidiano de pessoas, digamos, humanas.

Mas, logicamente que esses delitos não são dignos de apreciação por parte da doutrina. Relacioná-los aos nomes de Caio, Tício e Mévio seria rebaixar o Direito Penal: crime é arte, logo nada de baixeza. Um juiz não precisa saber julgar crimes comezinhos. Tem sim é que debruçar-se sobre crimes elaborados. Caio quer matar Tício, com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício. Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal. Em consequência da ingestão das meias doses, Tício vem a perecer. Qual o crime de Caio e Mévio? Genialidade pura.

Despindo-se do tom sarcástico, vivemos uma catarse no Direito Penal que, por consequência, provoca hecatombes em diversos outros ramos (social, carcerário etc.). Esse mar fantasioso em que navegou e navega o direito punitivo foi abordado com precisão porLênioStreck para quem “simbolicamente, os manuais que povoam o imaginário dos juristas representam com perfeição essa crise. Há, pois, um profundo déficit de realidade. Os próprios exemplos utilizados em sala de aula, ou nos próprios manuais, estão desconectados daquilo que ocorre em uma sociedade complexa como a nossa. Além disso, essa cultura estandardizada procura explicar o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos e atemporais”. (Lênio Luiz Streck em “Crise Dogmática. Manuais de Direito apresentam profundo déficit de realidade”[1]).

Esse matiz mirabolante reverbera na seleção dos operadores de direito. A título exemplificativo, Streck nos traz ilustrativo exemplo cobrado por banca examinadora: “André e Carlos, gêmeos xifagos (sic), nasceram em 20 de janeiro de 1979. Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo por (sic) fim a vida de André, desfere-lhe um tiro mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive”. E seguem-se várias alternativas. Sem entrar no mérito da questão — e até para não parecer politicamente incorreto e não ser processado pelo gêmeo xifópago que, milagrosamente, sobreviveu— , impõem-se, no mínimo, duas observações: primeira, é importante saber que os gêmeos xifópagos (e não xipófagos, como constou da pergunta) nasceram no mesmo dia (tal esclarecimento era de vital importância!); e, segunda, não está esclarecido o porquê de Amadeu odiar apenas a André, e não a Carlos (afinal, tudo está a indicar que eles sempre andavam juntos)[2].

Segundo o autor “enquanto setores importantes da dogmática jurídica tradicional se ocupam com exemplos fantasiosos e idealistas/idealizados, a vida continua. Mais ou menos como em uma sala de aula de uma faculdade de direito no Rio de Janeiro, em que o professor explicava os crimes de dano, rixa e estampilha falsa e, lá de fora, ouviram-se tiros, muitos tiros. Na verdade, enquanto o professor explicava os conceitos desses relevantes crimes, várias pessoas foram mortas, em um conflito entre traficantes. Mas o professor não se abalou: abriu seu Código e passou a explicar o conceito de atentado ao pudor mediante fraude!”

Eis aí algumas das razões para compreenderemos o que acontece no Direito Penal. O doutrinador olha para trás e reproduz toda aquela alucinação que fez parte de sua vida. O julgador dificilmente percorrerá caminho diverso. Grande parte de seu tempo gastou estudando delírios que, salvo um produto do acaso, jamais julgará.

De nada adiante ter o maior senso crítico para apreciar, por exemplo, quem julgará um crime ocorrido dentro de uma aeronave Britânica que partiu de Paris, rumo ao Chile e que sobrevoou o Brasil, território no qual ocorreu o crime, se é alheio aos exemplos da vida.

Valendo-se do exemplo de LênioStreck para quem há um importante manual de direito penal que ensina o conceito de erro de tipo do seguinte modo: um artista se fantasia de cervo e vai para o meio do mato; um caçador, vendo apenas a galhada, atira e acerta o “disfarçado”. Fantástico. Quem não sabia o que era erro de tipo agora sabe. Só uma coisa me deixou intrigado: por que razão alguém se fantasiaria de cervo (veado) e iria para o meio do mato? Mistério, muito mistério. O mesmo livro explica o significado de nexo causal, a partir do seguinte exemplo sobre causas preexistentes: “o genro atira em sua sogra, mas ela não morre em consequência dos tiros, e sim de um envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasião do café matinal”. Que coisa, não? Mas tem mais tragédia familiar: o que seria causa “superveniente” no direito penal? O manual dá a solução, com o seguinte exemplo: “após o genro ter envenenado sua sogra, antes de o veneno produzir efeitos, um maníaco invade a casa e mata a indesejável (sic) senhora a facadas”. Significa dizer que o genro foi salvo pelo maníaco (seria o maníaco do parque, que teria escapado da prisão?) Mistério, não?

Em suma, urge que o doutrinador, ou o Direito Penal se reinventa buscando um olhar mais realista/sociológico ou continuaremos a marcar rumo à alucinação e, por consequência, sem qualquer senso de justiça.

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Notas

[1] http://www.conjur.com.br/2006-jan-09/manuais_direito_apresentam_profundo_deficit_realidade

[2] Consta em nota de rodapé do referido texto a seguinte indagação “Aproveito para sugerir uma pergunta para o próximo concurso: João e Pedro são gêmeos xifópagos. No dia do referendo, João se recusa a ir votar; já Pedro, adepto do “não ao desarmamento”, não admite ficar de fora do pleito, mormente por se tratar de uma obrigação legal e cívica. Qual é o remédio cabível para Pedro poder comparecer à votação? É possível conduzir João “sob vara”? E, se o voto é secreto, um gêmeo pode olhar o voto do outro? Esse voto não seria nulo? A pergunta está desde logo à disposição, sem a necessidade de pagamento de direitos autorais”. 

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Sobre o autor
Leandro Brescovit

Graduado pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Analista Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, lotado na Procuradoria Regional de Caxias do Sul/RS, Pós graduado em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRESCOVIT, Leandro. Caio, Tício e Mévio têm que morrer para que o Direito Penal possa viver. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3907, 13 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26886. Acesso em: 2 mai. 2024.

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