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O controle da administração pública

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07/04/2014 às 12:43
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7. Do autocontrole ou autotutela

Quando se inicia qualquer discussão acerca do autocontrole da administração pública, não raro citamos como embasamento de nossa convicção a súmula 473 do Supremo Tribunal Federal (STF):

A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação judicial.

No mesmo alcance, a súmula 376 do STF:

A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

Trata-se do poder de revisão do ato administrativo, conferido ao administrador, a fim de o mesmo se preservar de um dano maior ou de ferir a legalidade, mantendo vigente ato reconhecidamente ilegal ou, até mesmo, agir em defesa do interesse público. Pende-se, pois, na presunção de legalidade do ato administrativo, conceito inicial de que o ato, antes de praticado, sofreu análise detalhada da autoridade que o emitiu ou praticou.

Entretanto, o alcance do autocontrole tende a ir além da capacidade revisora, mantendo-se, antes, como preventivo da ilegalidade, orientando o poder discricionário, evitando a tomada de atitudes polêmicas, contraproducentes ou desnecessárias, ainda que legais. Lastreia-se, portanto, nos princípios da Razoabilidade, da Proporcionalidade e da Moralidade Administrativa.  Como nos ensina Hely Lopes Meireles (2010),

[p]or considerações de direito e de moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos: - 'non omne quod licet honestum est' (MEIRELES, 2010, p, 84 e seguintes)


8. Do Controle Externo

Por definição, o controle externo é aquele ao qual a administração pública se submete, exercido por terceira pessoa. Neste universo, temos o Controle Parlamentar, exercido pelo Poder Legislativo e pelos Tribunais de Contas, o Controle do Judiciário e o Controle Social, conquista da Constituição de 1988.

Já a Constituição de 1891 imaginara um órgão técnico capaz de “liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso” (art. 89).  

Evidentemente, o conceito de “liquidar” adotado no texto de 1891 não difere daquele emanado no art. 63 da Lei 4.320, cujo propósito é a aferição da exigibilidade dos créditos (a pagar e a receber) e a legalidade dos procedimentos na sua constituição e escrituração.  Também, forçosamente, pela forma disposta no texto legal, o controle que se pretendia era de natureza posterior, revisora (antes de as contas serem prestadas ao Congresso). Esse embrião dos atuais tribunais de contas, embora o seja na origem, não o é mais nas finalidades ou propósitos.

O Controle Parlamentar, como veremos adiante, insere-se na definição de controle externo (em relação ao Poder Executivo), que pela disposição hodierna se exerce, de per si e com auxilio dos Tribunais de Contas.

Ao instituir entidade cuja atribuição é de controle externo, auxiliar do Poder Legislativo, em relação a esse Poder o controle também permanece como externo, preservando a autonomia dos Tribunais de Contas de fiscalizar,  o Poder Legislativo, do qual é auxiliar. Cabe ainda aos Tribunais de Contas controlar o Poder Judiciário em relação aos atos de gestão financeira (art. 71, IV da CF/88).  

Com o advento da Administração Gerencial e, em especial, pela evolução da informática, o exercício do Controle Externo Legislativo pelos tribunais de contas ganhou contornos mais ágeis. Deixando de ser meramente um controle posterior, os Tribunais de Contas, nos dias atuais, centralizam suas ações no controle prévio (que examina o ato antes de sua consolidação); preventivo (emitindo orientações quanto à prática do ato); concomitante (aferindo a lisura das etapas de realização) e posterior (não mais em caráter revisor, mas mensurando  resultados, verificando eficiência e eficácia nos investimentos públicos). Um grande avanço, sem dúvida.


9. Controle Legislativo ou Parlamentar

A noção de controle, dentro da própria estrutura de poder de Estado, esboçada nos preceitos iluministas, tomou corpo nas teorias de Locke (Ensaio sobre o Governo Civil, 1690) para quem o Parlamento, enquanto órgão prévio de consulta, exerce limitação ao poder do Monarca. Já discorremos rapidamente sobre esta modalidade de controle, a que chamamos Controle Objetivo, imposto pela própria Carta Constitucional como limitador da ação administrativa.

Na mesma esteira, a tripartição de poderes, idealizada por Montesquieu na obra O Espírito das Leis, escrita em 1748, serve, nas palavras do autor, “[p]ara que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder” (2000, p. 166).  

Assim, o poder limita o poder, não pela simples divisão de tarefas ou atribuições, mas pela supervisão direta ou indireta exercida uns sobre os outros, quanto aos atos praticados. Tal se comprova, mormente pela parcela autorizativa conferida ao Poder Legislativo, como exercício prévio de controle financeiro direto e organizacional sobre os atos dos demais Poderes. Não por acaso, a leitura dos princípios anunciados por Hamilton, Madison e Jay (1979) vão dar à luz a teoria dos freios e contrapesos, amplamente aceita nos dias atuais, em que os poderes, harmônicos e independentes, se consolidam, em verdade, como interdependentes.

Neste cenário, o Princípio da Legalidade, instituído no artigo 37 da Constituição de 1988, consagra o controle prévio parlamentar sobre ações de governo:

Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].   

Sobre o princípio da Legalidade, tem-se que ao administrador público só é possível de fazer aquilo que a lei expressamente autorize ou determine, em uma derivação do enunciado no artigo 5º, II da Constituição Federal de 1988:

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Ainda sobre tal princípio, ensina-nos Celso Ribeiro Bastos (1990):

De um lado representa o marco avançado do Estado de Direito, que procura jugular os comportamentos, quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressão. Nesse sentido, o princípio da Legalidade é de transcendental importância para vincar as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista, este último de antes da Revolução Francesa. Aqui havia lugar para o arbítrio. Com o primado da lei cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, que se presume ser a expressão da vontade coletiva.

De outro lado, o princípio da legalidade garante o particular contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em consequência, uma mecânica entre os Poderes do Estado, da qual resulta ser lícito apenas a um deles, qual seja o Legislativo, obrigar os particulares (BASTOS, 1990, p. 172).

Essa modalidade de controle prévio-autorizador conferida ao Poder Legislativo não exclui do administrador a parcela de Poder Discricionário inerente à função, todavia o prenuncia e o legitima.

Segundo o conceito de Celso Antonio Bandeira de Mello (1992), o Poder Discricionário é:

a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação (MELLO, 1992, p. 48).

Temos, pois, que a discricionariedade não é completa ausência do comando legal, pois tem sua origem na lei e por ela se norteia, mantendo seus limites no princípio constitucional da moralidade, onde se atrela o autocontrole.

Esclarece Hely Lopes Meirelles (2010) que

a legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso (MEIRELLES, 2010, p. 67).

Em decorrência do princípio da legalidade, a assertiva é que a Administração Pública não pode agir contra a lei (contra legem) ou além da lei (praeter legem), só podendo agir nos estritos limites da lei (secundum legem), ainda que na prática de atos considerados discricionários ou vinculados à atividade administrativa.

Ao controle prévio parlamentar exercido pela progênie da lei se soma o controle concomitante e posterior parlamentar, que se exerce por seus meios (Comissões Internas) ou com auxilio dos tribunais de contas – art. 31 e § 1º da CF/88, no que diz respeito aos municípios, e art. 71, no que se reporta à União, extensivo por força da simetria concêntrica aos Estados e ao Distrito Federal (art. 75).


10. Do Controle Judicial

Não é nosso interesse discutir aqui, em espécie, o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário em face dos instrumentos normativos emanados dos demais Poderes. Cingiremos nossa discussão ao controle judicial da legalidade dos atos administrativos, mediante provocação da parte, nas formas permitidas em lei, ou do Ministério Público em sua função institucional.  

A Constituição de 1988 reserva ao cidadão o direito de questionar judicialmente atos da administração por meio de Mandado de Segurança Individual (art. 5º. LXIX); Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX); Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI); Habeas Corpus (art. 5º, LXVIII), Habeas Data (art. 5º, LXXII) e Ação Popular (art. 5º, LXXIII). Ao Ministério Público, em nome da Sociedade ou na defesa de direitos individuais indisponíveis, cabe a Ação Civil Pública (art. 129, III).

É necessário que se registre que a Ação Civil Pública tem sido amplamente utilizada para repreender atentados à boa governança, punir atos de improbidade administrativa e compelir a realização de atos administrativos olvidados pela inércia do administrador, constituindo-se como importante instrumento de controle repressivo que se faz com apoio do Poder Judiciário.

Não é nosso propósito adentrar as particularidades de cada um desses remédios constitucionais, por meio dos quais o cidadão se opõe aos interesses do Estado, exercendo, por sua vez, o controle popular ou social, por via indireta. Igualmente, não nos interessa aprofundar nas discussões acerca do uso indiscriminado da Ação Civil Pública enquanto ingerência do Ministério Público na ação governamental ou na tutela da boa governança. Limitemo-nos, por ora, a delinear a atuação do Poder Judiciário enquanto mecanismo de controle da gestão pública.

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Tratando especificamente do Controle judicial dos atos administrativos, Hely Lopes Meirelles (2010) defende:

O Controle judicial dos atos administrativos é unicamente de legalidade, mas nesse campo a revisão é ampla, em face dos preceitos constitucionais de que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV); conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, individual ou coletivo, não amparado por "habeas corpus" ou "habeas data" (art. 5º, LXIX e LXX); e de que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe (art. 5º, LXXIII). Diante desses mandamentos da Constituição, nenhum ato do Poder Público poderá ser subtraído do exame judicial, seja ele de que categoria for (vinculado ou discricionário) e provenha de qualquer agente, órgão ou Poder. A única restrição oposta quanto ao objeto do julgamento (exame de legalidade ou da lesividade ao patrimônio público), e não quanto à origem ou natureza do ato impugnado.

Certo é que o Judiciário não poderá substituir a Administração em pronunciamentos que lhe são privativos, mas dizer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua competência, é função específica da Justiça Comum, e por isso mesmo poderá ser exercida em relação a qualquer ato do Poder Público, ainda que praticado no uso da faculdade discricionária, ou com fundamento político, ou mesmo no recesso das câmaras legislativas como seus interna corporis. Quaisquer que sejam a procedência, a natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a possibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimônio público, ficará sujeito a apreciação judicial, exatamente para que a Justiça diga se foi ou não praticado com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo ou interesses da coletividade (MEIRELLES, 2010, p, 67 e seguintes).

No mesmo sentido, os ensinamentos doutrinários de José dos Santos Carvalho Filho (2010):  

Todos os atos administrativos podem submeter-se à apreciação judicial de sua legalidade, e esse é o natural corolário do princípio da legalidade. Em relação aos atos vinculados, não há dúvida de que o Controle de legalidade a cargo do Judiciário terá muito mais efetividade. Com efeito. Se todos os elementos do ato têm previsão na lei, bastará, para o Controle da legalidade, o confronto entre o ato e a lei. Havendo adequação entre ambos, o ato será válido; se não houver, haverá vício de legalidade.

No que se refere aos atos discricionários, todavia, é mister distinguir dois aspectos. Podem eles sofrer controle judicial em relação a todos os elementos vinculados, ou seja, aqueles sobre os quais não tem o agente liberdade quanto à decisão a tomar. Assim, se o ato é praticado por agente incompetente; ou com forma diversa da que a lei exige; ou com desvio de finalidade; ou com o objeto dissoante do motivo etc.

O controle judicial, entretanto, não pode ir ao extremo de admitir que o juiz se substitua ao administrador. Vale dizer: não pode o juiz entrar no terreno que a lei reservou aos agentes da Administração, perquirindo os critérios de conveniência e oportunidade que lhe inspiram a conduta. A razão é simples: se o juiz se atém ao exame da legalidade dos atos, não poderá questionar critérios que a própria lei defere ao administrador. (FILHO, 2010, p. 81 e seguintes).

A fim de se preservar a independência dos Poderes, o art. 2º da CF, em tese, limita o Poder Judiciário à análise da legalidade formal do ato combatido, sem adentrar à motivação, à oportunidade e a outros fatores insertos na esfera da discricionariedade. Não obstante, tal limitação não tem impedido o Poder Judiciário de deferir medidas protetivas de direito individual, impondo atribuições ao Poder Executivo, especificamente no que tange ao atendimento na área de saúde. Neste particular, pondera o Judiciário o conflito entre dois princípios – a defesa da vida e a independência dos poderes –, não raro optando pelo primeiro[9]. É ampla a jurisprudência nesta seara. Entretanto, é uma tendência preocupante, posto que já existem decisões judiciais neste mesmo sentido prolatadas em defesa do meio ambiente e do Patrimônio histórico, por exemplo, em que o Judiciário tem-se imiscuído em assuntos administrativos, a nosso sentir, numa clara subversão ao princípio constitucional da separação dos poderes.[10]

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Sobre o autor
Israel Quirino

Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel. O controle da administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3932, 7 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27258. Acesso em: 18 abr. 2024.

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