Criatividade judicial

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Um balanço sobre a criatividade judicial em meio a pós-modernidade jurídica.

Em uma concepção contemporânea de jurisdição, em que medida se pode falar em criatividade judicial? Para tratar deste questionamento o presente estudo adota como norte científico as ideias contemporâneas trazidas por Fredie Didier Jr.1, que em sua obra teve o cuidado de abordar os pensamentos (igualmente acolhidos) de autores como Celso Campilongo, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Humberto Ávila, Luiz Guilherme Marinoni e Niklas Luhmann2.


1. Introdução

É certo que a sociedade e o Direito passaram por densas transformações nas últimas décadas. A influência global mitigando a multicultura, o desenvolvimento tecnológico, a expansão virtual, a rapidez no tráfego de suas informações, bem como a facilitação da comunicação, são alguns dos numerosos exemplos. Os cientistas e os intérpretes do Direito contemporâneo não podem ignorar tais mudanças. Logo, é preciso “pôr em dia” (aggiornarmento) o entendimento sobre vários conceitos lógico-jurídicos, dentre eles a jurisdição (aqui embutida sua feição criativa).


2. Breves notas acerca das transformações advindas do Neoconstitucionalismo

A atual fase da ciência jurídica deu-se o nome de neoconstitucionalismo (neopositivismo ou pós-positivismo). O influxo das mencionadas mutações sociais reclamou a instituição de novas molduras para compreensão do fenômeno jurídico. Incumbiu ao neoconstitucionalismo sistematizar todas essas novas diretrizes.

Entre essas principais novidades destacam-se3:

  • i) o reconhecimento da força normativa dos princípios e da Constituição;

  • ii) o papel normativo da jurisprudência e a criatividade da função jurisdicional;

  • iii) mudança de técnica legislativa (modelo de cláusulas gerais);

  • iv) o desenvolvimento da jurisdição constitucional e da teoria dos direitos fundamentais; v) a distinção entre texto normativo e norma;

  • vi) as máximas da proporcionalidade e razoabilidade.


3. Jurisdição Criativa

Todo esse feixe de alterações vindas do neoconstitucionalismo impactou fortemente no conceito de jurisdição. Suas tradicionais noções tornaram-se, por isso, obsoletas. Necessária se mostra uma remodelação, um upgrade no que se entende por jurisdição. Mas ocorre que ainda há significativa resistência para tal. Ou seja, mesmo diante de tantas variações que eclodiram com o neoconstitucionalismo alguns estudiosos ainda teimam em reproduzir a velha compreensão sobre jurisdição. É o caso de Humberto Theodoro Júnior4, Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida, Eduardo Talamini5, Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco6, entre outros. Contudo, hoje é imprescindível moldar a jurisdição ao neoconstitucionalismo a fim de que se possa densificar seu novo conceito. É isso que fez Fredie Didier Jr. ao arquitetá-la como “a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo, reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para tornar-se indiscutível”7.

Assimilada esta nova concepção, tem-se que a criatividade é predicado da jurisdição tal qual a velocidade é atributo do guepardo. A falácia de que a lei é incólume e que cumpre ao juiz apenas aplicá-la sucumbe nos dias atuais. O Direito Positivo não é mais um fim. É somente o ponto de partida do magistrado. Até mesmo porque existem inúmeros casos (“hard cases”) em que sequer existe enunciado normativo regulamentando a situação deduzida (e.g., união homoafetiva; antecipação terapêutica do parto do feto anencéfalo; etc.). Nota-se que é impossível conciliar estas situações com a antiga concepção de jurisdição (como pode haver jurisdição em caso não previsto abstratamente pelo legislador se para a antiga vertente incumbe ao juiz apenas a aplicação do direito positivo?).

Assim, com amparo na garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CR/88, artigo 5º, inciso XXXV) e de acordo com essa nova visão sobre jurisdição, o juiz será o responsável por criar a norma jurídica do caso concreto, tanto a norma individual (estará no dispositivo da decisão), como a norma geral (estará na fundamentação da decisão – ratio decidendi). A norma jurídica individual regulará o caso concreto e possui potencialidade para tornar-se indiscutível. A norma jurídica geral servirá como precedente para futuras situações similares. É bem por isso que Fredie Didier Jr. reputa essa noção como sendo “indispensável para compreender a ‘súmula vinculante’, a repercussão geral no recurso extraordinário (arts. 543-A e 543-B, CPC), a súmula impeditiva de recursos (art. 518, §1º, CPC) e a possibilidade de julgamento imediato de causas repetitivas (art. 285-A, CPC)”8 9.


4. Aspectos conclusivos

A jurisdição não é mais guiada pela rigidez de seu conceito tradicional (flagrantemente defasado). Como visto, hoje “o Direito passa a ser construído a posteriori, em uma mescla de indução e dedução, atento à complexidade da vida, que não pode ser totalmente regulada pelos esquemas lógicos reduzidos de um legislador que pensa abstrata e aprioristicamente (...)”10. Niklas Luhmann sintetiza com clareza a ideia de criatividade na jurisdição contemporânea: “si no se encuentra el derecho, hay que inventarlo11.


REFERÊNCIAS

CINTRA, Antônio Carlo Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, 19 ed., São Paulo: Malheiros, 2003.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011.

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THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, coordenação Luiz Rodrigues Wambier, 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.


Notas

1 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1.

2 CAMPILONGO, Celso. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 165, com base no pensamento de Parsons; MIRANDA, Franciso Cavalcanti Pontes de. Tratado da ação rescisória. Campinas: Bookseller, 1998, p. 274-275; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2006, p. 34; MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, v.1, p. 90-97 e p. 99; LUHMANN, Niklas. “A posição dos tribunais no sistema jurídico”., cit., p. 162-163 e p. 160; El derecho de La sociedad. México: Universidad Iberoamericana, 2002, p. 379. e p. 373. In: DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.13ª Ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1, p. 92-96.

3 Sobre o neoconstitucionalismo e seus reflexos, com mais tranquilidade, DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1, p. 27-43; LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 51-64.

4 Para quem, seguindo os passos de Enrico Tullio Liebman, “jurisdição não é fonte do direito, isto é, não tende à formulação de normas abstratas de direito, ou não cria nem restringe, substancialmente, direito para as partes que dela se valem. (...) Exercita-se, de tal sorte, a jurisdição vontades concretas da lei nascidas anteriormente ao pedido de tutela jurídica estatal feito pela parte no processo, o que lhe confere o caráter de atividade ‘declarativa’ ou ‘executiva’, tão-somente” (Curso de Direito processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 41).

5 Wambier, Almeida e Talamini na mesma linha indicam que “a função dos órgãos jurisdicionais (juízes e tribunais) é essencialmente aplicar a lei (...).” (Curso avançado de processo civil, coordenação Luiz Rodrigues Wambier, 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, v. 1, p. 38).

6 Ainda com o mesmo enfoque entendem (Cintra, Grinover e Dinamarco) que a jurisdição serve para a pacificação do conflito “(...) mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado (...).” (Teoria geral do processo, 19 ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 131).

7 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1, p. 89.

8 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1, p. 94.

9 Vale lembrar que não se duvida da possibilidade de existir eventuais abusos no exercício da criatividade jurisdicional. É evidente que estes abusos devem ser combatidos, seja pelas vias recursais, seja pelas ações autônomas de impugnação, além de outros instrumentos possíveis.

10 ÁVILA, Humberto Bergmann. “Subsunção e concreção na aplicação do direito, cit., p. 429-430; MENKE, Fabiano. “A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, n. 103, p. 79; MARTINS-COSTA, Judith. “O Direito Privado como um ‘sistema em construção’. As cláusulas gerais no projeto do Código Civil Brasileiro”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado, 1998, n. 139, p. 7. In: DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1, p. 38;

11 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Universidad Iberoamericana, 2002, p. 379. In: DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.13ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011, v. 1, p. 93.

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