Axiologia e o imperativo categórico nas intervenções das Nações Unidas

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Estuda-se a aplicação do imperativo categórico nas ações interventivas pela Organização das Nações Unidas.

DO IMPERATIVO CATEGÓRICO NUMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

No século XIX, o filósofo prussiano Immanuel Kant, para embasamento de suas teorias, tratou, inicialmente de três ideias opostas e discriminatórias para a compreensão do princípio da moralidade.

A primeira ideia seria a do motivo, relacionada diretamente à moralidade. O motivo para uma ação poderá ser, segundo o pensamento kantiano, uma inclinação pessoal ou o dever por si mesmo. A inclinação pessoal estará presente quando fizermos escolhas com o objetivo de satisfazer um desejo ou preferência pessoal. Neste sentido, deveremos agir utilizando nossa capacidade de, ao menos, procurar se colocar acima dos interesses pessoais, e agir pelo que é racionalmente correto.

A segunda ideia seria a da determinação da vontade, associada à liberdade, ou seja, espontaneidade e voluntariedade da ação. A partir deste pensamento, a determinação de um indivíduo diante de sua própria conduta poderia ser autônoma (espontânea e voluntária) ou heterônoma, ou seja, imposta por terceiros. Neste último caso não haveria liberdade. Dessa forma, o indivíduo deverá agir segundo o dever por si mesmo, conforme o que é racionalmente correto, porém espontaneamente, de forma que assim é determinada a liberdade, na capacidade de determinar autonomamente a própria vontade.

Neste sentido, a determinação da vontade deverá partir da razão individual, sendo esta a única maneira de se agir independentemente de vontades alheias. A razão, por sua vez, é determinada a partir de um imperativo, que seria a terceira ideia da sequência. Os imperativos comandam a razão hipoteticamente ou categoricamente. Hipoteticamente quando a ação será boa apenas como meio de conseguir algo mais, e categoricamente quando boa em si mesma.

Logo, temos como correto agir sob o motivo do dever por si próprio, de forma autônoma, o que nos guia a determinar nossa razão categoricamente, e não para o bem de outras ações.

Dessa forma, para a determinação categórica de nossa razão, ou seja, para que o imperativo de nossa razão seja categórico, Kant elaborou algumas fórmulas que servirão como ferramentas para identificar o imperativo de nossa ação, fórmulas estas que traduzem o conceito do imperativo categórico.

A primeira seria a fórmula através da qual se imaginaria aquele imperativo, ou seja, aquele princípio para determinação da vontade como lei universal. Assevera em sua obra “Crítica à Razão Prática” (1788):

Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se simultaneamente, por tua vontade, lei universal da natureza. (KANT, 1788.)

 

Mormente tal fórmula, deverá o ser racional agir fazendo, anteriormente, a análise da possibilidade de universalização daquela conduta. Ou seja, observar se a ação será certa ou errada a partir de seu extremo, extremo esse no qual aquela ação fosse corriqueira. Desse modo, porém, não se estaria refletindo sobre as consequências da ação, mas apenas avaliando sua retidão através de uma perspectiva mais extrema, e, por conseguinte, mais fácil de se visualizar.

O que seria universalizar uma ideia? No momento em que universalizamos um conceito que desenvolvemos, trazemos este a um rol maior ou infinito de possibilidades, e observamos se este conceito poderia ser aplicado, de forma justa, a todas as possibilidades. Podemos, assim, verificar a legitimidade da ideia, bem como sua proximidade da verdade. Podemos analisá-lo em sua forma mais nítida.

A partir do momento em que se universaliza um valor, por consequência, desprende-se este de quaisquer influências tendenciosas, sendo estas culturais, temporais, históricas, etc.

Sendo assim, pode-se observar que o método kantiano nos leva a uma noção muito próxima do direito natural, já que os valores que passarem pelo filtro da universalização seriam corretamente aplicáveis em quaisquer situações e possibilidades.

Ou seja, qualquer valor, para que seja verificada sua veracidade, deveria ser ampliado a todos os casos e observado se seu uso continua justo. Logo, tal valor poderia ser considerado inerente à condição humana.

Tratando-se de direitos, ao se usar desse método para se verificar sua veracidade, chega-se a uma conclusão sobre estes, seja de que ele é verdadeiro e aplicável a qualquer ser humano em qualquer parte do mundo, independentemente de cultura, ou de que ele não é universal. Chega-se, assim, a um direito inerente à natureza do ser humano, à parte de qualquer influência tendenciosa.

Seria, portanto, real, o valor no qual fosse aplicável o imperativo categórico, de forma que ele existisse como um fim em si mesmo, e não aquele valor que existe como meio de garantia de outro valor.

Nesse sentido, pode-se observar que quanto mais uma norma ou um valor se aproxima da universalidade, mais abstrato se torna, sendo então flexível para quaisquer condições, sendo este valor, porém, sempre o norte. Caso se observe que o valor universal não mais está norteando a ação, não se tem mais uma ação moral.

Nesse ponto, pode-se observar como as idéias kantianas importantes no direito internacional e em quaisquer áreas que disserem respeito ao contato entre diferentes culturas, principalmente quando uma, no atual mundo globalizado, tenta se sobrepor à outra.

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Para a intervenção por organizações internacionais de proteção, tais como as Nações Unidas, deve-se verificar se o preceito ou o valor que motiva essa intervenção é algo universal, do contrário, poder-se-á desmembrar uma cultura sem motivos plausíveis, apenas para estabelecer forçosamente uma mudança cultural.

Tomando como exemplo a questão acerca da possibilidade de intervenção das Nações Unidas no país africano da Somália, seria correto intervir na sua tradição da mutilação da genitália feminina?

Aos olhos dos países ocidentais contemporâneos, a mutilação é algo repugnante. Porém, devemos refletir se essa visão estaria contaminada de influências tendenciosas, uma vez que a ONU, como majoritariamente ocidental, é facilmente levada pelos valores ocidentais, correndo o risco de interpretar a tradição da cultura somali com os olhos de uma cultura totalmente adversa.

Portanto, o certo seria realizar um estudo antropológico sobre a cultura somali, de forma que se pudesse verificar se o valor motivador dessa intervenção seria realmente um valor universal, podendo ser aplicado também à cultura somali, levando em consideração todo o seu aspecto cultural.

O que ocorre é que as diferentes culturas possuem diferentes formas de proteger os valores universais, abstratos. Cada cultura tem valores aparentes diferentes, que servem para proteger valores reais, valores núcleos, que são universais, fins em si mesmo.

O ritual de mutilação feminina acontece por um determinado motivo na cultura somali, motivo esse ligado à sua própria cultura. O ritual não é um valor por si só, com um fim em si mesmo, mas ele existe como forma de proteção de um valor, sendo este valor a honra, ou qualquer outro que a cultura somali procure proteger, mas um valor que, em seu nível mais abstrato, é relevante para qualquer sociedade, por ser um fim em si.

Portanto, o ritual poderá ser uma tentativa de proteção de um valor real, sendo necessária, portanto, uma profunda reflexão sobre a causa, para que não se renda toda uma cultura, deixando-a de mãos atadas, mas para que sejam mostradas a esta formas alternativas de proteção daquele valor.

Sendo assim, para uma melhor convivência entre as diferentes culturas e para que se possa criar normas supranacionais para o combate da prática de atos criminosos em âmbito internacional (tais quais os atos de terrorismo nos países que compõem a União Europeia), se fazem necessárias normas que não firam quaisquer culturas, ou seja, normas que possam ser universais, abstratas, que sirvam como interseção entre as diferentes culturas e as quais sirvam de fundamento para este combate.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

KANT, Immanuel. Kritik der praktischen Vernunft. Munique: Beck`sche Reihe, 2012.

KANT, Immanuel. Critique of pratical reason. (Edited by Mary Gregor). Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

FOOT, Philippa. Morality as a System of Hypothetical Imperatives. The Philosophical Review, Vol. 81, No. 3,1972. pp. 305-316.

SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 6ª Edição, Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2012.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. São Paulo: Renovar, 2003.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. Ed. ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2010.

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