Resumo: O presente estudo tem como objetivo principal analisar de maneira breve, porém crítica, como o jurista brasileiro Tercio Sampaio Ferraz Jr. encara o modelo de justiça retributiva a partir de uma visão pragmática da justiça, com base em algumas culturas e períodos históricos mencionados pelo autor em sua obra. Aqui, o que se quer é discutir esses vários modelos de justiça retributiva (vertical e horizontal) que fizeram parte de algumas culturas consideradas tradicionais. Não se pretende fazer aqui uma análise minuciosa e detalhada acerca do seu pensamento original sobre o tema. Pretende-se, na verdade, simplesmente forçar e provocar uma reflexão crítica, observando como aqueles pensamentos desenvolvidos pelo autor em seu trabalho ganham relevo para a própria compreensão do conceito ideal de justiça.
Palavras-chave: Direito. Justiça. Retribuição.
Sumário:1 EXPOSIÇÕES E JUSTIFICATIVAS INICIAIS; 2 A IDEIA DE JUSTIÇA NO PENSAMENTO DE FERRAZ JR.; 3 A CONEXÃO ENTRE JUSTIÇA E RETRIBUIÇÃO; 4 O MODELO RETRIBUTIVO DE JUSTIÇA PRESENTE EM VÁRIAS CULTURAS E PERÍODOS HISTÓRICOS; 4.1 A representação simbólica e mitológica da justiça nas culturas grega e romana; 4.2 A retribuição como modelo de justiça na cultura e na filosofia grega; 4.3 O modelo peculiar e único de justiça que se encontra na tradição judaico-cristã; 4.3.1 Justiça retributiva como ato de vontade (voluntas): modelo vertical; 4.3.2 Justiça retributiva como amor (caritas): modelo horizontal; 4.4 O conceito moderno de justiça com raízes no Iluminismo; 5 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES; 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1 EXPOSIÇÕES E JUSTIFICATIVAS INICIAIS
O objetivo precípuo deste estudo é analisar de maneira breve como se dá a noção e o conceito de justiça retributiva a partir do pensamento construído por Tercio Sampaio Feraz Jr., em seu texto sobre os modelos de justiça retributiva[1]. O autor, em sua obra, analisa de modo peculiar como o modelo retributivo de justiça se enquadra em algumas culturas e períodos históricos. Em outras palavras, busca discutir o conceito e a noção de justiça a partir do estudo desses modelos retributivos de justiça, estabelecendo uma conexão nítida entre a justiça e a retribuição.
Diante desse panorama inicial, o que se quer aqui é trazer novamente à tona esse debate previamente iniciado em seu texto, analisando-se e discutindo-se os principais aspectos e pontos elencados pelo autor na construção do seu pensamento.
2 A IDEIA DE JUSTIÇA NO PENSAMENTO DE FERRAZ JR.
Antes de tudo, frise-se, o valor é sempre a meta ideal a qual a humanidade almeja. Valor esse que inspira e norteia uma cultura humana. Assim é que há em toda religião uma pretensão à santidade; em toda moral, uma tendência para o bem; em toda estética, a busca pelo belo; em toda lógica, persegue-se o verdadeiro, em toda economia, valora-se o útil; e, se o Direito é uma realidade que se refere ao valor do justo, além do valor da segurança e do bem comum, então não será em vão o estudo da justiça como valor a ser buscado e concretizado por meio do próprio direito (MIRANDA NETTO, 2001, p. 47).
A questão é que nossa atual concepção ideológica de justiça tem origem em Platão, Aristóteles e nos juristas da cultura romana, sendo que, os filósofos gregos lhe imprimiram um sentido ético e abstrato, enquanto os juristas romanos, ao revés, lhe conferiram um sentido jurídico e concreto. Para o filósofo grego Platão, por exemplo, a justiça é a virtude suprema, harmonizadora das demais virtudes. Por outro lado, Aristóteles a concebe como igualdade, proporção e equilíbrio, daí desenvolver a ideia de justiça comutativa e justiça distributiva, em razão justamente desses critérios. Todavia, com os romanos a justiça passou a ser entendida como a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é, de direito, seu (MIRANDA NETTO, 2001, p. 47).
Entretanto, tais concepções não passam de uma verdadeira ideia semântica do próprio conceito de justiça. Em virtude de ser o professor Ferraz Jr. um estudioso do discurso jurídico, é evidente que lhe parece mais relevante a visão pragmática em detrimento da noção sintática e semântica. Sendo assim, Tercio busca analisar visivelmente o conceito de justiça a partir de uma abordagem mais pragmática, ou seja, de acordo com o valor prático considerando o aspecto objetivo e real das coisas e tomando, assim, o valor prático como critério para a sua análise.
3 A CONEXÃO ENTRE JUSTIÇA E RETRIBUIÇÃO
A nexoque existe entre justiça e retribuição deita fundas raízes na cultura do ocidente (FERRAZ JR., 1998, p. 369). Essa nítida conexão permite que se discuta a ideia de justiça a partir do estudo dos modelos de justiça retributiva encontrados em diversas culturas e épocas distintas.
Parece, entretanto, que a noção do conceito de justiça antecede e, por conseguinte, é anterior à própria discussão sobre a retribuição. Prova disso, é quando se discute o caráter justo ou injusto de determinada pena (punição), por exemplo. Ou então, quando se discute as consequências jurídicas ou sociais atribuídas a um comportamento individual, considerado ofensivo para a sociedade. Ou ainda, quando se discute se determinada norma jurídica é justa ou injusta. Em outras palavras, percebe-se nitidamente que, ao se debater a natureza justa ou injusta de uma pena, ou das consequências de um crime, ou do caráter justo ou injusto de uma norma jurídica, existe previamente, dentro de cada um de nós, uma noção prévia daquilo que vem a ser chamado, por nós, de justiça (senso de justiça).
Como bem ressalta o autor, em seu texto (FERRAZ JR., 1998, p. 369):
Embora, usualmente, as discussões sobre a noção de justiça precedam a questão da retribuição, como é o caso do problema referente ao caráter justo ou injusto de determinada pena ou de consequências atribuídas a um comportamento, o que pressupõe um conceito prévio de justiça, o estudo dos modelos retributivos, a contar da famosa regra de Talião, está na base da discussão da própria justiça. A concepção aristotélica da justiça como virtude de distribuição e comutação com base na igualdade proporcional tem a ver, sem dúvida, com a questão da retribuição.
Há, também, uma forte conexão entre a justiça retributiva e a proporcionalidade, ambas, se complementando. Nesse sentido, afirma Ferraz Jr. (1998, p. 369):
A proporcionalidade do valer um pelo outro é, neste sentido, um fator essencial nas discussões sobre a justiça. Mesmo quando o termo deixa o estrito campo de uma ética da virtude e passa, por exemplo, a uma ética de valores, ou ainda quando é tratado em sentido estrutural ou funcional (justiça como instituição, realização social da sociedade justa), o papel da proporcionalidade nas equiparações e diferenciações não deixa de ser relevante.
A proporcionalidade em um sistema retributivo de justiça aponta para uma espécie de “racionalização” e tem como limite a presença concomitante de emoções e razões nos modelos retributivos tradicionais.
Em virtude dessa presença da emoção e da razão nos sistemas retributivos de justiça tradicionais o autor observa atentamente que existem, na verdade, dois modos de retribuição. Segundo Ferraz Jr., o primeiro modelo visa à equiparação de uma pretensão e de uma contra-pretensão. O segundo, por sua vez, fixa-se numa hierarquia a ser mantida e protegida. O primeiro chama-se horizontal; o segundo, vertical. Ambos podem aparecer numa mesma regra: “Concilia-te com quem te infligiu um dano, vinga-te de quem te ofendeu”, diz Quilon de Esparta, um dos sete sábios da filosofia e da cultura grega (FERRAZ JR., 1998, p. 373).
O modelo vertical de justiça retributiva parece estender um modelo antecedente ao modelo humano, o qual pressupõe hierarquia e retribui agressivamente uma ameaça agressiva. Por outro lado, o modelo horizontal parece pertencer exclusivamente ao gênero humano, na medida em que se liga à língua e a um mundo objetivamente construído. Desse modo, as grandes emoções vinculam-se ao modelo retributivo vertical. Já a razão, se liga diretamente ao modelo horizontal (FERRAZ JR., 1998, p. 373).
Ocorre, entretanto, que na prática, ou seja, numa visão pragmática, os dois modelos implicam-se. Como exemplo, no prólogo do Código de Hamurabi está dito que, o rei ali está “para que o forte não esmague o fraco” (FERRAZ JR., 1998, p. 374). Ou seja, a figura do rei representa o modelo vertical de justiça baseado numa hierarquia pela qual o rei encontra-se em cima, e logo abaixo, portanto, estão seus súditos. Já, o fato de que o forte pode vir a “esmagar” o fraco representa as relações comuns entre as pessoas em um plano horizontal de justiça. Portanto, o rei busca garantir por meio de sua justiça que o mais forte não seja injusto com o mais fraco. Isso quer dizer que o modelo retributivo horizontal, para existir e se manter existindo, necessita da existência do modelo vertical ao qual até se subordina a ele. Diante disso, há uma interpenetração entre ambos os modelos.
Para Ferraz Jr., essa interpenetração — ou interdependência — entre os dois modelos de justiça retributiva (horizontal e vertical) explica as dificuldades experimentadas ao se definir o próprio conceito ideal de justiça (FERRAZ JR., 1998, p. 374). Um bom exemplo que ilustra bem essa dificuldade na definição do conceito de justiça é a maneira como as culturas grega e romana representavam simbolicamente a justiça de maneira semelhante, mas ao mesmo tempo, de maneira distinta.
4 O MODELO RETRIBUTIVO DE JUSTIÇA PRESENTE EM VÁRIAS CULTURAS EPERÍODOS HISTÓRICOS
4.1 A representação simbólica e mitológica da justiça nas culturas grega e romana
Desde as mais antigas tradições e culturas ocidentais a simbologia representativa da justiça traz a balança (equilíbrio e igualdade) como um de seus símbolos mais representativos simbolizando a equidade, sempre exigível ao direito. Para Ferraz Jr. (1998, p. 374), o equilíbrio dos pratos da balança parece trazer para a justiça seu sentido nuclear, essencial. A balança, todavia, não apenas demonstra o equilíbrio, mas é também um instrumento apto, tecnicamente, a alcançá-lo. Ou seja, a balança não serve apenas como forma de representação do equilíbrio e daquilo que é justo, mas torna-se igualmente um mecanismo ensejador de tal equilíbrio no âmbito da justiça.
Nesse panorama, faz parte do sentido essencial da justiça o procedimento de sopesar os atos e as compensações; portanto, o processo de dar e receber. Para o autor, a balança traz para a justiça o ritual da retribuição conforme o modelo horizontal, implicando, assim, a palavra, a discussão, e a negociação (FERRAZ JR., 1998, p. 374). Diante disso, torna-se evidente o caráter emocional (modelo vertical) em contraposição à natureza racional (modelo horizontal) na representação simbólica da justiça em ambas as culturas.
O autor, em seu texto, alude para a importância da palavra na negociação das compensações com o intuito precípuo de se obter o equilíbrio. Segundo ele (FERRAZ JR., 1998, pp. 374-375):
A importância da palavra na negociação das compensações, em vista da obtenção do equilíbrio, é ressaltada na representação romana da Justitia, cuja estátua apresenta a deusa sentada, segurando a balança com as duas mãos e de olhos vendados. Este último detalhe, se contrastado com as estátuas gregas, em que Dike tem os olhos abertos, mostra a importância do ouvir para o romano e, portanto, do exercício da palavra na discussão das retribuições. Por sua vez, o equilíbrio se alcança quando o fiel da balança está reto de cima a baixo (de recto, palavra que, no baixo latim, substituía o termo jus, dando origem às palavras direito, droit, diritto, wríght, Recht, derecho).
Em outras palavras, a deusa romana da justiça (Justitia) é representada como uma deusa que está sentada, segurando com suas mãos a balança, e de olhos vendados. Já a deusa Dike, filha da deusa grega Themis, em contraste com a deusa romana, está com seus olhos abertos. Isso representa a importância que os romanos davam ao ato de ouvir, e, por conseguinte, como afirma Ferraz Jr., para o exercício da palavra na negociação das compensações e na discussão das retribuições, com o intuito de se alcançar o equilíbrio da balança.
Continua o autor afirmando o seguinte teor (FERRAZ JR., 1998, p. 375):
Na representação grega de Dike há um outro detalhe significativo: a deusa segura a balança com a mão esquerda e tem, na direita, uma espada. Em nossa cultura é corrente tanto a expressão “balança da justiça” como “espada da justiça”. Se a balança traz para a noção de justiça o modelo horizontal da retribuição, a espada parece ter a ver com o modelo vertical. Afinal, “fazer justiça” é o que se pede ao julgador, ao patriarca, ao rei, ao juiz, ao tribunal. A presença da espada, na simbologia da justiça, enfoca a retribuição de um outro ângulo.
É fácil notar aí os dois modelos de justiça retributiva (horizontal e vertical). A balança enseja uma ideia de justiça em um plano horizontalmente retributivo; a espada, por sua vez, dá lugar a uma compreensão verticalizada de justiça. Percebe-se, além disso, que sempre que se fala em um modelo vertical de justiça retributiva constata-se a presença de um ente superiorou supremo (autoridade, entidade divina, rei, juiz, tribunal, patriarca,etc.).
Em outras palavras, o que se quer dizer é que, ao que parece, o fundamento do modelo vertical de justiça retributiva está sempre pautado na presença ou na existência de um ente hierarquicamente superior aos demais sujeitos. Assim, sempre nos modelos verticais de justiça retributiva existirá alguém superior hierarquicamente, que tenha força, autoridade, poder, ou competência para aplicar e promover a justiça nos moldes verticais, impossibilitando, com isso, que — nos moldes horizontais — o mais forte “esmague” o mais fraco.
Nas duas representações da justiça (Dike e Justitia) existe uma coadunação entre os dois modelos de justiça retributiva (vertical e horizontal), ao mesmo tempo em que, há, também, uma nítida separação entre os mesmos modelos de justiça.
Todavia, a discussão da interpenetração entre o modelo horizontal e o vertical da retribuição no conceito de justiça é ainda mais intensa na própria disputa sobre o equilíbrio, sobre a igualdade, dita proporcional por Aristóteles e por ele vista como o núcleo da própria ideia de justiça (FERRAZ JR., 1998, p. 375).
4.2 A retribuição como modelo de justiça na cultura e na filosofia grega
O filósofo grego Aristóteles concebia a justiça como uma virtude do ser humano. A virtude, para os gregos, relaciona-se a uma noção direta de equilíbrio e moderação que implica na capacidade de o indivíduo saber equilibrar de forma moderada os aspectos da sua vida. Dito de outra maneira, tal virtude deve ser tida como uma ação que aperfeiçoa a conduta (natural) do homem na busca do bem que lhe é devido, sobretudo daqueles bens que se relacionam com a convivência e em que o excesso deve ser evitado (FERRAZ JR., 1998, p. 376). Nesse particular, a justiça de índole virtuosa relaciona-se com a ação de retribuir e seus correlatos: atribuir e distribuir. A busca mais por um, do que por outro, baseia-se, portanto, no critério da proporção (FERRAZ JR., 1998, p. 376).
No pensamento de Aristóteles, segundo Ferraz Jr., sobrevalece o modelo horizontal de justiça retributiva na determinação do equilíbrio (FERRAZ JR., 1998, p. 376):
A justiça tem, assim, ostensivamente, algo a ver com a “razão proporcional” (ratio, logos) e exige deliberação, escolha deliberada. Sente o filósofo, contudo, a dificuldade que surge no modo distributivo da justiça que pressupõe hierarquia e, portanto, o reconhecimento de dignidades diferentes entre os cidadãos. A ordem hierárquica traz para dentro da igualdade proporcional o modelo vertical da retribuição. Mais ligado à emoção, este modelo perturba o equilíbrio proporcionado pela retribuição horizontal.
“Por sua vez, a manutenção da justiça legal ou universal, que em Aristóteles tem a ver com o exercício conjunto de todas as virtudes, pressupõe uma harmonia política”, diz o autor, ao enfatizar e necessidade da lei para a sustentação desse modelo de justiça retributiva, segundo a compreensão aristotélica (FERRAZ JR., 1998, p. 376).
4.3 O modelo peculiar e único de justiça que se encontra na tradição judaico-cristã
Ferraz Jr. ressalta, da mesma maneira, que na tradição judaico-cristã (sistema cultural bíblico) existe também a coexistência — ou a existência simultânea — de dois tipos ou modelos de justiça retributiva. Ressalte-se, igualmente, que nesse caso, os modelos de justiça encontrados na Bíblia são especiais e únicos, devido a sua peculiaridade.
Na visão do autor, na tradição judaico-cristã, a qual engloba o judaísmo e o cristianismo, existe a justiça como ato de vontade (voluntas), de índole vertical, mas existe também a justiça como amor (caritas), no plano horizontal.
4.3.1 Justiça retributiva como ato de vontade (voluntas): modelo vertical
Nas tradições judaica e cristã —que se baseiam na Torá e na Bíblia —a justiça é também encarada como uma virtude, da mesma forma como considerava Aristóteles[2]. Todavia, essa virtude é, na verdade, um ato de vontade e implica na vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu. Ou seja, a justiça é tida como um ato de vontade (voluntas), de modo que,é a mesma um atributo da vontade oriundo do livre arbítrio dado por Deus aos homens, seus filhos.
A mútua implicação dos modelos — vertical e horizontal —, porém, é mais dramática aqui. Tornada um atributo da vontade enquanto querer solitário e íntimo, portanto, do livre arbítrio (quer ou não quer), a justiça particular de Aristóteles passa a depender da justiça legal e, em última instância, da lei divina (FERRAZ JR., 1998, p. 378).
O fato é que a justiça retributiva no modelo vertical presente na Bíblia é tida como um ato de vontade, um atributo da vontade humana, oriunda do livre-arbítrio, implicando, justamente, em dar a cada um o que é seu.
Alguns exemplos que ilustram bem esse modelo de justiça vertical podem ser retirados das próprias escrituras sagradas. O apóstolo Paulo, em uma de suas várias cartas enviadas às Igrejas, no primeiro século d. C., escreveu o seguinte: “Pois conhecemos Aquele que disse: Minha é a vingança, Eu retribuirei. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo” (Carta enviada aos Hebreus, Capítulo 10, Versículo 30). Outra vez, o mesmo autor — Paulo —escreve em sua carta enviada aos romanos (Capítulo 12, Versículo 19): “Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, Eu retribuirei, diz o Senhor”.
O apóstolo dos gentios certamente quis se referir a uma outra passagem bíblica do Antigo Testamento. No livro de Deuteronômio (Capítulo 32, Versículo 35) encontra-se a seguinte advertência: “Minha é a vingança e a recompensa, ao tempo em que resvalar o seu pé; porque o dia da sua ruína está próximo, e as coisas que lhes hão de suceder se apressam a chegar”.
Assim, como se percebe, a justiça aqui é concebida como uma vontade virtuosa (virtude), de retribuição equilibrada, sob o amparo e a dependência hierárquica da ordem divina, ou seja, da justiça divina. Só que a virtude da justiça pertence igualmente a Deus. A vingança do Deus da Bíblia seria, portanto, a simples confirmação do seu poder sobre tudo e sobre todos, pois a justiça divina é uma justiça punitiva, na qual a retribuição é vertical implicando, desse modo, em um modelo de justiça retributiva verticalizado (FERRAZ JR., 1998, p. 379).
Se no Antigo Testamento a esperança requer a hierarquia vertical, também o Novo Testamento, de certo modo, vive na expectativa do reino celeste e do juízo final. Com isso, a justiça divina é uma justiça punitiva, em que a retribuição é vertical: não se trata de compensar os maus com o mal e os bons com o bem, mas de manifestar o bem como ordem divina de Deus (FERRAZ JR., 1998, p. 379).
4.3.2 Justiça retributiva como amor (caritas): modelo horizontal
A justiça como voluntas, mais vertical que horizontal, conhece, entretanto, um temperamento importante: a justiça como amor (caritas). Na justiça como amor (caritas) recupera-se a dimensão da retribuição horizontal, conquanto num sentido muito peculiar que afeta a noção de equilíbrio (FERRAZ JR., 1998, pp. 379-380).
Consoante afirma o autor (FERRAZ JR., 1998, p. 380):
O amor-caritas tem o sentido de renúncia, mas de uma renúncia que não é privação, mas plenitude. O amor cristão não tem, assim, uma compensação no amor do outro, mas na plenitude do amor divino. E a plenitude do amor divino explica que um Deus onipotente ofereça o sacrifício de seu Filho pela salvação dos homens. O Deus punitivo dos cristãos (e dos judeus) conhece, então, uma outra dimensão retributiva no Deus misericordioso. Ao contrário dos deuses homéricos, amorais, moralmente neutros, o Deus bíblico possui uma qualidade moral: [somente Ele] é justo e misericordioso.
Assim, como se vê no exposto acima, a justiça retributiva como amor horizontal (caritas) possui características significativamente distintas da justiça retributiva vertical, pautada na vontade (voluntas). Por meio desse modelo retributivo de justiça, recupera-se a dimensão de retribuição horizontal por meio da renúncia, que não é privação, mas plenitude. O amor cristão não tem compensação no amor do outro, mas no próprio amor divino. E este amor divino consiste no fato de que Deus enviou o seu Filho para salvar a humanidade. Na justiça como amor-caritas, o perdão torna-se uma forma retributiva peculiar que implica uma retribuição horizontal descompensada.
Um bom exemplo que ressalta esse raciocínio pode ser tirado do Evangelho escrito por Lucas, um dos doze discípulos de Jesus Cristo (Capítulo 6, Versículos de 27 a 30):
Mas a vós que ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei aos que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, não lhe negues também a túnica. Dá a todo o que te pedir; e ao que tomar o que é teu, não lho reclames.
Como se percebe, Jesus Cristo, o Messias, Filho de Deus, buscou cortar o mal pela raiz, exigindo aos seus seguidores um novo estilo radical de vida. Há, com certeza, nítida diferença entre este modelo horizontal e o anterior, vertical. A exigência de “amar os nossos inimigos”, de “fazer o bem aos que nos odeiam”, de “bendizeraos que nos maldizem”, de “orar por aqueles que nos caluniam”, de “oferecer a outra face”, de “dar a todo aquele que nos pede” implica, mesmo no plano econômico, um comportamento extremamente radical.
Embora esta justiça-caritas encontre na justiça divina a sua retribuição exemplar (perdoem como Deus vos perdoa, amem como Deus vos ama), a justiça retributiva de Deus tem uma dimensão em que o modelo horizontal se reduz a um modelo vertical: o amor de Deus é infinito, sem medida, por isso perdoa tudo (FERRAZ JR., 1998, p. 380).
Com isso, concluindo, o Deus punitivo da Bíblia passa a conhecer concomitantemente outra dimensão retributiva no Deus misericordioso, ou seja, Deus é justo, mas é igualmente misericordioso.
4.4 O conceito moderno de justiça com raízes no Iluminismo
O conceito de justiça se altera significativamente quando se observa o contexto iluminista onde o homem era o centro daquela revolução intelectual. Para Hobbes, por exemplo, a justiça estava ligada à ciência dos contratos, consistindo em cumprir o contrato social tal como ele foi pactuado e assegurando a punição daqueles que se desviassem de cumpri-lo. “O fundamento da justiça está na lei da natureza, que obriga a cumprir o pactuado”, diz, Thomas Hobbes, em sua obra, “O Leviatã”.
Nesse sentido, o pacto social seria um ponto de referência pelo qual se pudesse distinguir o justo do injusto. Para o iluminista, segundo Ferraz Jr., a retribuição vertical é mais importante do que a horizontal, visto que, o leviatã, no uso de suas prerrogativas de punir os desvios, estava garantindo a continuidade da sociedade civil e a própria possibilidade de existência de uma retribuição horizontal (1998, p. 381).
Para Rousseau, entretanto, a sociedade civil nasceu concomitantemente ao surgimento da propriedade privada e da desigualdade entre os homens. Logo, a justiça seria, nesse sentido, o reequilíbrio das desigualdades por meio de retribuições horizontais baseadas no contrato social, que segundo ele é a expressão da vontade geral, sempre correta e justa.
Em virtude desse pensamento, Rousseau afirma que o homem não tem o direito de se rebelar contra a ordem estabelecida, visto que, ela é justamente a expressão da vontade geral que prevalece sobre a vontade individual ou particular sendo, portanto, legítima. Desse modo, nota-se que por trás das ideias de retribuição horizontal, mesmo assim, está igualmente presente a noção da verticalidade (FERRAZ JR., 1998, p. 381).
Além disso, com o surgimento, e, posteriormente, com o desenvolvimento do capitalismo e da competitividade (livre iniciativa e livre concorrência) a justiça passou a ser encarada como a retribuição aos esforços e ao trabalho de cada indivíduo.
O Autor, em sede conclusiva, assinala que nas diversas definições de justiça que conhecemos, algumas pendem para o modelo vertical e outras, no entanto, para o modelo horizontal, combinado, assim, razão e emoção, não sendo possível, em alguns casos, distingui-las. Mesmo assim, para Ferraz Jr., a justiça talvez seja apenas um topoi utilizado pelo discurso jurídico (FERRAZ JR., 1998, p. 382).
5 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Concluindo, bem acima da discussão dos modelos ou tipos de justiça encontrados em várias tradições e culturas, encontra-se a discussão do próprio conceito ideal de justiça. Afinal, o que é justiça? O que é justo? O que é certo? Existe um conceito que defina satisfatoriamente a justiça? De fato, poucas vezes se teve tanta dificuldade em se definir um conceito como se tem quando sebusca definir a noção de justiça.
Como bem se ressaltou no início, a justiça parece ser algo intrínseco a cada um, algo prévio e anterior que se encontra no interior de cada ser humano (senso comum de justiça). Isso fica claro quando se discute se algo é justo ou injusto. É como se em cada ser humano houvesse uma noção prévia, particular ao senso comum, sobre aquilo que vem a ser justiça.
Toda sociedade, toda cultura, toda tradição e toda religião possuem sua representação sobre aquilo que vem a ser tido como justiça. Seja a lei, seja a vontade, seja o amor, seja o contrato, qualquer desses elementos representativos da justiça nas tradições busca algo em comum: o equilíbrio e a equidade.
Talvez, uma palavra que possa ser tida como sinônimo de justiça seja, justamente, o termo “equilíbrio”. É essa palavra — equilíbrio — que parece manter unidos a justiça e o direito: a justiça como sendo um ideal de equilíbrio nas relações humanas que deve ser buscado; o direito, por sua vez, como o instrumento por meio do qual esse equilíbrio nas relações humanas (justiça) pode ser alcançado.
Enfim, seja como for, a justiça, o equilíbrio e o direito formam um triângulo imaginário, mas ao mesmo tempo, real: justiça como ideal a ser buscado; equilíbrio como ideal a ser alcançado; e o direito como instrumento pelo qual se alcança a justiça através do equilíbrio das relações humanas no meio e no convívio sociais.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Justiça como retribuição da razão e da emoção na construção do conceito de justiça. In: Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 44, n. 192, pp. 369-389, out.-dez., 1998. Disponível em: <http://groups.yahoo.com/group/metodologiaUFBA/message/1859>. Acesso em: 27 jul. 2013.
MIRANDA NETTO, Fernando Gama. A justiça no pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Jr.. In: Revista Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, pp. 47-54, 2001. Disponível em: <http://www.ugf.br/files/editais/Artigo 3 Vol 7 n2.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2013.
Notas
1 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Justiça como retribuição da razão e da emoção na construção do conceito de justiça. In: Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 44, n. 192, pp. 369-389, out.-dez., 1998. Disponível em: <http://groups.yahoo.com/group/metodologiaUFBA/message/1859>. Acesso em: 27 jul. 2013.
2 Tanto o judaísmo quanto o cristianismo, frise-se, compartilham da mesma manifestação divina. Ambos compartilham do mesmo Deus, possuidor de diversas denominações, retiradas das escrituras sagradas (Deus, Javé, Jeová, Senhor, Altíssimo, Criador, Pai Celestial, etc.). O judaísmo se baseia na Torá (Lei), que é basicamente o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia Sagrada cristã (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). A Torá também é conhecida como “Pentateuco” e é, além disso, o texto central do judaísmo tradicional. O Cristianismo, por sua vez, tem como parâmetro a Bíblia Sagrada que, além de conter os cinco livros da torá (Pentateuco), possui, ao todo, cerca de setenta livros. A Bíblia é o fundamento da fé cristã, é o instrumento por meio do qual Deus fala aos homens através de sua Santa Palavra.