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O Parquet na defesa dos direitos individuais homogêneos

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01/07/2000 às 00:00
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DA INCONSTITUCIONALIDADE DO RACIOCÍNIO INVERSO

Poder-se-ia asseverar, lado outro, que inconstitucional seria o entendimento que negasse tal legitimidade ativa ao Parquet ou as respectivas associações.

Explico.

A Constituição Federal de 1988 tem profundo cunho socializante, já que em diversos dispositivos avulta o caráter social de seus comandos, programáticos ou não, de seus princípios, não olvidando, por óbvio, da iniciativa privada, base do capitalismo liberal-burguês que a Carta Política abraçou.

Tal enfoque, na época de sua feitura, ficou evidenciado sobremaneira, ganhando a Carta o apelido de "Constituição Cidadã".

De efeito, acolitando as palavras do Min. Carlos Mário da Silva Velloso, podemos entender que constitui direito adquirido da sociedade ter seus representantes judiciais para a defesa dos seus interesses individuais homogêneos, condicionada, é claro, à relevância social de referidos interesses, tendo em vista que a Constituição exsurgiu no bojo de movimentos sociais impacientes com os desmandos praticados pelos militares presidentes.

Eis as palavras do Ministro, verbis:

          "O povo é, então, convocado a eleger uma assembléia constituinte. Num caso ou noutro – movimento revolucionário ou convocação –, uma idéia de direito está subjacente, ou uma idéia de direito liberal, por exemplo, ou uma idéia de direito socialista. Evidentemente que, se uma sociedade faz opção pelo socialismo, e esta é a idéia subjacente ao movimento revolucionário ou à convocação, elaborada a constituição em tais termos, ninguém poderá, com base nos seus títulos de propriedade, opor à nova constituição a alegação de direito adquirido.

"Todavia, se a idéia de direito que fez eclodir o movimento revolucionário, ou que resultou na convocação, é uma idéia democrática-liberal, ela, a constituição, produto do poder constituinte que veio no bojo desse movimento ou dessa convocação, está limitada por essa idéia. É dizer, exemplificando: se uma constituição que vem no bojo de um movimento liberal, que proclama o liberalismo político, impõe a um grupo de indivíduos o confisco, a disposição constitucional que o institui é ilegítima.

"É claro que essas questões, que são de teoria geral da constituição, sem nenhum embasamento de direito positivo, somente serão bem compreendidas num Estado cujo povo, cujos líderes e cujos juízes têm consciência do que seja uma constituição. Se isto não ocorre, vira adágio o que não passa de slogan, o de que ‘não há direito adquirido contra a constituição’". (grifei) (In Reforma Constitucional, Cláusulas Pétreas, especialmente a dos Direitos Fundamentais, e a Reforma Tributária, artigo inserido na obra Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba, 2, Direito Administrativo e Constitucional, organizador Celso Antônio Bandeira de Mello, 1997, ed. Malheiros, p.165/166)

Em compêndio, restando, portanto, provado o cunho social da demanda posta em juízo, satisfeita a condição da legitimidade anômala.

Mas não é só.

Dispõe o artigo 82 e inciso I do Código de Defesa do Consumidor que:

          Art. 82 – Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público;

II, III, IV - omissis

Neste passo, temos que, por força de disposição expressa de lei federal, o Parquet possui legitimidade para a propositura de ações coletivas na defesa dos interesses individuais homogêneos (art. 81, parágrafo único, III do CDC).

Pois bem.

Qualquer interpretação que deixe de reconhecer legitimidade à Instituição do Ministério Público deverá, obrigatoriamente, reconhecer a inconstitucionalidade do preceptivo transcrito, ou seja, sua incompatibilidade com a Carta Política, posto que tal requisito para o exercício do direito de ação emana daquele dispositivo legal.

Sem embargo, e como visto no início desta pesquisa, não é deferido ao julgador reconhecer ou declarar a inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública porquanto a decisão aí proferida terá efeito erga omnes.

Nesta linha de raciocínio, os próprios arestos do egrégio Superior Tribunal de Justiça asseveram não ser permitido a declaração de inconstitucionalidade de lei na ação civil pública.

Ora, o que fazem, então, os tribunais que não reconhecem a legitimidade do Parquet para a propositura de ação civil pública na defesa de interesses individuais homogêneos senão a declaração de inconstitucionalidade do artigo 82, I e parágrafo único do artigo 81, todos do CDC, já que esta, repise-se, advém daquele dispositivo?

Estariam tais tribunais usurpando competência privativa do Supremo Tribunal Federal, qual seja, a de declarar inconstitucionalidade de lei com efeito erga omnes?

A resposta afirmativa novamente se impõe.

Ao não reconhecer a legitimidade para a propositura de ações coletivas na defesa de interesses individuais homogêneos às associações e ao Ministério Público nada mais fazem senão reconhecer a inconstitucionalidade dos preceptivos do Código de Defesa do Consumidor que dão legitimidade para a causa a estes entes, na seara de ações que possuem decisões – também por força de lei – com efeitos erga omnes.

Dessarte, como afirmado no início deste trabalho, é vedado, face ao efeito que possuem as decisões aí proferidas – o reconhecimento ou a declaração de inconstitucionalidade de lei em ações coletivas ou ações civis públicas.


DA TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA COMO RELAÇÃO DE CONSUMO

Diversos arestos, bem como parte da doutrina, têm propugnado pela distinção existente entre os conceitos de contribuinte e consumidor.

Assim, adverte José Geraldo Brito Filomeno:

          "Quando aqui se tratou do conceito de fornecedor, ficou consignado que também o Poder Público, enquanto produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados não mediante a atividade tributária em geral (impostos, taxas e contribuições de melhoria), mas por tarifas ou ‘preços públicos’, se sujeitará às normas ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos dispositivos do novo Código do Consumidor, sendo, aliás, categórico o seu art. 22." (Cf.: Código Brasileiro....., p. 87/88).

Tal distinção merece mitigação, no nosso entender, no tocante à taxa de iluminação pública.

Senão vejamos.

A Constituição Federal, em seu artigo 145, II, afirma que:

          Art. 145 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

          I – omissis....;

          II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

E o Código Tributário Nacional, em seu artigo 77, reafirma:

          ART. 77 - As taxas cobradas pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal ou pelos municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

Em ambos dispositivos fica explícito que a taxa é uma contraprestação paga pelo consumidor-contribuinte pelo exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis.

No mesmo diapasão, o Código de Defesa do Consumidor determina que:

          Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

O olhar perfunctório sobre o dispositivo leva o intérprete a entender que o Poder Público, quando vendedor de produtos ou prestador de serviços, traduz-se em fornecedor para o CDC.

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Na exata observação do doutrinador citado, a "taxa" de iluminação pública não constitui, às escâncaras, verdadeiramente uma taxa, posto que, e aí reside sua ilegalidade, não é serviço público específico e divisível.

Tal tese tem amparo na maestria de Sacha Calmon Navarro Coêlho, verbis:

          "O nosso posicionamento já foi antecipado. A nós interessa o regime jurídico adotado pelo legislador com escora, é claro, constitucional. Assim:

          a) quando o Estado exerce poder de polícia é de taxa e só dela que se pode cogitar;

          b) quando o Estado diretamente presta serviço público stricto sensu, o caso é, também, de taxa;

          c) quando o Estado, porém, engendra instrumentalidades, para em regime de Direito Privado, embora sob concessão, prestar serviços de utilidades tais como fornecimento de gás, luz, transporte, energia, telefonia etc. (atividade econômica), admitimos em casos tais a adoção do regime de preços. (grifei) (In Curso de Direito Tributário Brasileiro, Ed. Forense, 1999, p. 417)

          "Por outro lado, considera-se específico o serviço que pode ser destacado em unidades autônomas para a sua prestação, e divisível o que suscetível de utilização, separadamente, por parte de cada usuário. Não pressupõe a cobrança de taxa a prestação de serviços em caráter geral...." (grifei) (Cf.: Manual de Direito Tributário, Adilson Rodrigues Pires, Ed. Forense, 4ª edição, p. 26)

Dessarte, tratando-se de adoção de métodos para o fornecimento de energia elétrica e não sendo a contraprestação proveniente de atividade pública divisível, a "taxa" de iluminação pública não passa de mero preço público em cujas relações jurídicas incide as normas do Código de Defesa do Consumidor.

Neste sentido, já houve pronunciamento do STJ:

          TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA – ILEGALIDADE – É ilegal a cobrança de taxa em razão da prestação do serviço de iluminação pública, por seu caráter genérico e indivisível, prestado à coletividade como um todo, sem benefício direto para determinado contribuinte. (STJ – REsp 38.186 – RJ – 2ª T – Rel. Min. Peçanha Martins – DJU 24.03.97)


II. CONCLUSÃO

Por conclusão, podemos vislumbrar que, no tocante à taxa de iluminação pública, não se tratando de relações jurídicas tributárias, e, sim, de relações de consumo, ante a sua descaracterização como espécie de tributo, incidente o Código de Defesa do Consumidor.

No que concerne a legitimidade do Ministério Público, assim como das associações, para a propositura de ações coletivas na defesa de interesses individuais homogêneos, da mesma forma, havendo relevância social na demanda, legítimo o Ministério Público para aviar ações pertinentes para a defesa de tais interesses posto que espécie de interesses sociais.

Mesmo que configurando-se inconstitucional o pedido de inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública, nada obsta a sua argüição como mera causa de pedir ou questão prejudicial, porquanto tais matéria não estão sob o manto da coisa julgada.

A outro giro, não posso olvidar um aspecto fundamental que se extrai desta pesquisa.

A despeito do fato em si do não reconhecimento de legitimidade ao Parquet para a defesa dos interesses individuais homogêneos já constituir gravame social desmesurado, importa vislumbrar que o entendimento que leva à extinção do processo por faltar requisito para o exercício do direito de ação – legitimatio ad causam – estará violando, na mesma medida, o direito de um efetivo acesso à justiça, tema tantas vezes propugnado pelos operadores do Direito.

Será que não chegou a hora de enxergarmos o lado social do Direito para que a sociedade – diretamente ou através de instituições constitucionalmente previstas – tenha um acesso efetivo à Justiça?

À consideração dos doutos.


BIBLIOGRAFIA

  • Calmon de Passos, José Joaquim
  • – Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III, Forense, 8ª edição, 1998.
  • Guasque, Luiz Fabião
  • – O Controle Cautelar de Inconstitucionalidade nas Ações de Interesse Difuso, artigo jurídico publicado na Revista dos Tribunais, dezembro de 1997, vol. 746.
  • Paula, Alexandre de
  • – Código de Processo Civil Anotado, vol. 2, Revista dos Tribunais, 7ª edição, 1998.
  • Barbi, Celso Agrícola
  • – Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Forense, 10ª edição, 1998.
  • Mancuso, Rodolfo de Camargo
  • – Interesses Difusos, Conceito e Legitimação para Agir, Revista dos Tribunais, 3ª edição, 1994.
  • Cappelletti, Mauro
  • e Garth, Bryant – Acesso à Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, trad. Ellen Gracie Northfleet.
  • Grinover, Ada Pellegrini, Vasconcellos e Benjamin, Antônio Herman, Fink, Daniel Roberto, Filomeno, José Geraldo Brito, Watanabe, Kazuo, Nery Júnior, Nelson, Denari, Zelmo
  • – Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos Autores do anteprojeto, Forense Universitária, 4ª edição, 1995.
  • Meirelles, Hely Lopes
  • – Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e "Habeas Data", Malheiros Editores, 15ª edição, 1994.
  • Velloso, Carlos Mário da
  • Silva – Reforma Constitucional, Cláusulas Pétreas, especialmente a dos Direitos Fundamentais, e a Reforma Tributária, artigo publicado em Direito Administrativo e Constitucional, estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, 2, Bandeira de Mello, Celso Antônio (organizador), Malheiros Editores, 1997.
  • Coêlho, Sacha Calmon
  • Navarro – Curso de Direito Tributário Brasileiro, Forense, 1ª edição, 1999.
  • Pires, Adilson Rodrigues
  • – Manual de Direito Tributário, Forense, 4ª edição, 1992.
  • Bastos, Celso Ribeiro
  • – Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 18ª edição, 1997.
  • Soares, Orlando
  • – Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil, Forense, 9ª edição, 1998.
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Sobre o autor
Renato Franco de Almeida

promotor de Justiça em Governador Valadares (MG), pós-graduado em Direito Público, professor da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Renato Franco. O Parquet na defesa dos direitos individuais homogêneos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/275. Acesso em: 22 nov. 2024.

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