Área azul e responsabilidade: uma amostragem jurisprudencial
1.Da delimitação do tema e do problema
No amplo campo de estudo relativo aos serviços públicos, um dos temas mais recentes diz respeito ao revezamento de estacionamento nas vias públicas, que, de acordo com o que consta do art. 24, X, do Código de Trânsito Brasileiro, tem como objetivo principal evitar que tais locais sejam um privilégio ou exclusividade de poucas pessoas:
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
[...]
X - implantar, manter e operar sistema de estacionamento rotativo pago nas vias;
Claro que não é pacífico o enquadramento dos estacionamentos rotativos, “áreas azuis” ou “zonas azuis” como serviços públicos. Kyoshi Harada, em recente artigo, afirma que
[...] Penso não ser acertado esse posicionamento porque o Município não presta esse tipo de serviço, valendo-se de bem de uso comum do povo. Pode, entretanto, o Município manter um serviço de estacionamento, hipótese em que o imóvel ocupado pelo estacionamento passa a ter a classificação de bem público de uso especial.
Por outro lado, se o Município estivesse prestando algum tipo de serviço público ut singuli, o regime jurídico a ser observado é o regime tributário, isto é, de direito público.[1]
Antônio Carlos do Espírito Santo Filho faz a seguinte advertência:
[...] Em muitos Municípios brasileiros a cobrança em áreas de Zona Azul é feita como se preço público fosse, ou seja, uma espécie de relação contratual do cidadão com o Estado ou instituição privada aos olhos do Estado, com a finalidade única de ludibriar a ordem Constitucional. Não raros são os Municípios que fazem a cobrança nos estacionamentos rotativos lastreando tal exação em decretos ou portarias do Executivo, sem qualquer respeito aos direitos constitucionais dos cidadãos de não terem seu patrimônio ilegitimamente invadido.
É como se estivesse permitido o seguinte pensamento: se a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal quiserem colocar-se sob a égide do sistema constitucional tributário brasileiro, remunerem-se, pelos serviços públicos prestados ou pelos atos de polícia realizados, por meio de taxas; se, porém, quiserem operar com inteira liberdade, remunerem-se por meio de “tarifas.”[2]
Além disso, nas denominadas “redes sociais” seguidamente são divulgadas notícias acerca da responsabilização de ente federativo ou de concessionária, decorrente de furto de automóveis estacionados nas chamadas “áreas azuis” ou “zonas azuis”.
Ainda, como reforço para a pesquisa, há que ser citado o Decreto n. 18.313, de 10 de junho de 2013, do Prefeito Municipal de Porto Alegre, que, ao regulamentar a prestação do serviço de estacionamento rotativo em vias e logradouros públicos daquele município, estabeleceu em seu art. 13[3] a impossibilidade de qualquer responsabilização:
Art. 13. O Município de Porto Alegre, a EPTC e a Concessionária ficarão isento de qualquer responsabilidade por acidentes, danos, furtos ou prejuízos de qualquer natureza que os veículos ou usuários venham a sofrer nos locais delimitados para o estacionamento rotativo pago.
Portanto, o objeto da presente pesquisa é identificar quais os possíveis entendimentos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual terá competência para apreciar possíveis questionamentos sobre o referido Decreto Municipal n. 18.313/2013, bem como do Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de responsabilização do ente municipal ou da concessionária na prestação dos serviços de estacionamento rotativo.
2. Do lapso temporal, dos termos de pesquisa e dos resultados quantitativos
Em que pese alguns municípios já tivessem adotado o revezamento de estacionamento antes mesmo da vigência do atual Código de Trânsito Brasileiro, a presente pesquisa limitou-se a analisar os julgados posteriores à data de publicação do mencionado Código, qual seja, 24 de setembro de 1997, até a data da pesquisa, feita em 31 de janeiro de 2014.
Além disso, nas duas fontes[4] – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Superior Tribunal de Justiça – foram utilizados os seguintes termos para a pesquisa: “área azul”, “zona azul” e “estacionamento rotativo”.
Especificamente quanto ao tema objeto da pesquisa, foram encontrados 22[5] (vinte e dois) julgados no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e nenhum julgado no Superior Tribunal de Justiça.
3. Dos resultados qualitativos
Em relação às decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, das 22 (vinte e duas) encontradas, 21 (vinte e uma) delas diziam respeito a ações que visavam à responsabilização do ente federativo ou da concessionária por furto de veículo ou por furto de objetos em veículos estacionados nas “áreas azuis” ou estacionamentos rotativos.
Destaca-se que nessas 21 (vinte e uma) decisões afastou-se a responsabilização, das quais merecem transcrição as seguintes (com destaques nossos):
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. FURTO DE VEÍCULO EM ÁREA AZUL. ESTACIONAMENTO PAGO. Em se tratando de furto de veículo em área destinada a estacionamento, administrado pela Municipalidade garantindo o uso rotativo do mesmo, não há falar em dever de indenizar o furto do veículo de propriedade do autor, ocorrido na denominada "área azul. Dever de guarda e conservação dos veículos nesta estacionados que não se reconhece. Precedentes jurisprudenciais. Sentença modificada. APELAÇÃO PROVIDA.
(Apelação Cível Nº 70030030514, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Romeu Marques Ribeiro Filho, Julgado em 25/11/2009)
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. FURTO DE VEÍCULO ESTACIONADO EM ZONA AZUL. RESPONSABILIDADE DA CONCESSIONÁRIA NÃO RECONHECIDA. EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. SERVIÇO PÚBLICO DE GUARDA E VIGILÃNCIA NÃO CARACTERIZADO. Atentando-se ao conteúdo da norma que instituiu a "zona azul" na cidade de Rio Grande/RS, verifica-se que se trata de exercício do poder de polícia administrativa, remunerado mediante o pagamento de taxa, verdadeira limitação imposta aos administrados com o objetivo de alcançar o bem comum, consistente, na hipótese, em implementar sistema rotativo de vagas. Prestação de serviço público de guarda e vigilância não caracterizado. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70051349231, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini Bernardi, Julgado em 12/12/2012)
RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. FURTO DE OBJETOS DO INTERIOR DE VEÍCULO ESTACIONADO NA ÁREA AZUL . 1. Pretensão indenizatória com base em furto de objetos que se encontravam no interior do veículo estacionado em "área azul". Ausência de responsabilidade dos requeridos. A exigência de pagamento à ocupação de vagas para estacionamento ao longo da via pública não acarreta o dever de indenizar. Precedentes desta Câmara. Sentença de improcedência mantida. 2. Verba honorária objeto de majoração pela ré. A remuneração do advogado deve atentar à atividade desenvolvida pelo causídico, retribuindo de forma adequada o trabalho do profissional. Atenção às operadoras dos §§ 3º e 4º do art. 20 do CPC. Majoração [R$ 600,00]. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DO AUTOR E PROVERAM O APELO DA RÉ. UNÂNIME.
(Apelação Cível Nº 70055190250, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 29/08/2013)
Como se pode verificar, a Quinta, Nona e Décima Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul adotam a tese de que o serviço prestado é apenas de controle da rotatividade nos locais delimitados, indo de encontro à tese defendida pelos usuários, que entendem que, ao ser cobrado valor pelo município, diretamente ou mediante concessão ou permissão, seria responsável pela segurança e guarda dos automóveis estacionados nas áreas azuis.
Apenas no outro julgado[6], que tratava de agressão de funcionário de concessionária a usuário de estacionamento rotativo, houve a condenação.
No que se refere ao Superior Tribunal de Justiça, as poucas decisões encontradas não diziam respeito ao tema relativo à responsabilização. Tal fato pode ser explicado pela barreira encontrada na Súmula n. 7[7], desse Tribunal, que veda o reexame de provas, elemento essencial no caso de responsabilização estatal.
4. Das conclusões
Ante o exposto, é possível concluir que o Tribunal de Justiça Gaúcho é unânime no sentido de que a atividade de fiscalização do uso correto e do pagamento correspondente ao período em que utiliza o estacionamento rotativo não dá ensejo à responsabilização do ente federativo, da concessionária ou da permissionária, em razão de furto de veículos ou de objetos dentro de veículos ali estacionados.
Assevera-se, porém, que, da leitura dos julgados, poderá haver responsabilização, desde que o autor comprove a existência de ato praticado pelo ente ou pela prestadora de serviços que tenha possibilitado o dano (nexo causal).
Sendo assim, o disposto no art. 13, do Decreto n. 18.313, de 2013, do Prefeito Municipal de Porto Alegre, não encontra amparo na jurisprudência, uma vez que há possibilidade de condenação por danos causados a usuários do serviço público, como no caso de agressão praticada pelos fiscais das “áreas azuis”.
NOTAS:
[1] Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26171/zona-azul-sua-natureza-juridica#ixzz2pfaNJpmD>. Acesso em 06 jan. 2014, às 22h57min.
[2] Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24191/cobranca-em-zona-azul-uma-possivel-inconstitucionalidade/2#ixzz2pfnMpZnQ>. Acesso em 06 jan. 2014, às 23h51min.
[3] Disponível em: <https://www.leismunicipais.com.br/a/rs/p/porto-alegre/decreto/2013/1831/18313/decreto-n-18313-2013-regulamenta-a-lei-n-10260-de-28-de-setembro-de-2007-que-rege-o-estacionamento-temporario-de-veiculos-mediante-pagamento-em-vias-e-logradouros-publicos-de-uso-comum-revoga-as-leis-n-6-002-de-2-de-dezembro-de-1987-6-806-de-21-de-janeiro-de-1991-7-775-de-27-de-marco-de-1996-7-919-de-16-de-dezembro-de-1996-8-895-de-24-de-abril-de-2002-8-897-de-30-de-abril-de-2002-e-9-418-de-6-de-abril-de-2004-e-libera-a-criterio-da-secretaria-municipal-de-transportes-smt-nos-horarios-e-dias-da-semana-que-determina-os-locais-onde-o-estacionamento-e-proibido-revogando-os-decretos-n-13-183-de-5-de-abril-de-2001-13-646-de-25-de-fevereiro-de-2002-15-339-de-27-de-outubro-de-2006-e-17-393-de-19-de-outubro-de-2011-2013-06-10.html>. Acesso em: 01 fev. 2014, às 23h17min.
[4] www.tjrs.jus.br e www.stj.jus.br
[5] Recursos n. [70051349231], [70014141345], [70017106501], [70013050158], [70011022589], [70004003745], [70055190250], [70052048048], [70052301447], [70050737311], [70040264194], [70034998476], [70025751736], [70030030514], [70027824531], [70024248247], [70026095711], [70026215236], [70023544091], [70023243157], [70010218857], [70046150702]
[6] Responsabilidade civil. agressão em estacionamento. ausencia de justificada à atitude do funcionário da empresa que explora o estacionamento rotativo. dano moral reconhecido. quantum reduzido. Recurso provido em parte. Unânime.
(Apelação Cível n. 700461550702; Décima Câmara Cível; Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana; data do julgamento: 15/12/2011)
[7] Súmula n. 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”