Sumário: 1. A patologia; 2. A incoerência da legislação do trânsito; 3. A adaptação da sinalização como um dever do Estado; 4. Conclusão.
A denominação de daltônico é atribuída àquelas pessoas portadoras da incapacidade oftálmica de identificação das cores ou tonalidades, sendo impedidas do exercício de alguns ofícios e da obtenção da carteira nacional de habilitação ou permissão para dirigir, supostamente, em virtude do entendimento de que as vias públicas não estariam adaptadas para acolher estes motoristas.
Apesar de se tratar de uma anomalia que não produz quaisquer dificuldades na interpretação dos sinais de trânsito, motivo pelo qual a proibição é inconstitucional, é inexplicável o fato de que não existe qualquer jurisprudência a respeito do tema, uma vez que esta enfermidade chega a atingir até oito por cento da população.
1. A PATOLOGIA
Os termos "daltônico" e "daltonismo" [1] [2] [3] se constituem na designação genérica relativa à discromatopsia ou discromopsia, sendo que os radicais gramaticais daquelas palavras são tributos ao cientista John Dalton que, como portador, descobriu e pesquisou esta deficiência.
A retina envia para o cérebro as imagens projetadas no globo ocular através dos bastonetes que captam a luminosidade e pelos cones que absorvem as cores, sendo a insuficiência ou ausência destes às causas desta moléstia.
Os graus de discromatopsia são variáveis e se classificam na protanopia, a mais comum, consistente na incapacidade de discriminação entre o vermelho e o verde; na deuterenopia, na confusão entre as tonalidades do vermelho e do verde; na tritanopia, com menor incidência, no conflito entre o azul e o amarelo e, por fim, na raríssima acromatopsia, na cegueira total em relação às cores, proporcionando apenas uma visão em preto e branco. Estes parâmetros se alteram em função da composição do espectro da luz ao redor ou incidente no objeto projetado.
A discromopsia atinge de 3% a 8% da população e pode ser congênita, quando é etiologicamente hereditária, ou adquirida, oriunda de lesões da retina ou nervo ótico causadas por exposição às substâncias tóxicas como o álcool, o tabaco e as drogas ou proveniente da progressão de enfermidades hereditárias como a retinis pigmenamentosa e a atrofia ótica, manifestando-se pela tritanopia na maioria dos casos.
O diagnóstico é obtido a partir das tábuas de Ishihara, cuja denominação rende uma homenagem ao cientista que concebeu este instrumento, um livro onde são dispostos mosaicos coloridos que subscrevem, numa combinação de cores, um algarismo perceptível pelos discromatas e outro numeral à vista das pessoas normais. Estes pratos pseudo-isocromáticos foram desenvolvidos a partir de uma técnica de comunicação da aeronáutica japonesa, onde, em tempos de guerra, eram inscritas na fuselagem das aeronaves as instruções verdadeiras, visualizada apenas pelos daltônicos, encoberta pelas falsas, perceptíveis por noventa e sete por cento das pessoas.
2. A INCOERÊNCIA DA LEGISLAÇÃO DO TRÂNSITO
O artigo 53 da resolução do Contran nº 734, de 20 de outubro de 1989, ainda sob a égide do antigo código nacional de trânsito [4], determinava que os examinandos portadores de discromatopsia poderão ser considerados aptos no exame oftalmológico, desde que distingam as cores básicas, da sinalização de trânsito em testes realizados com lanternas luminosas dispostas ou não na posição apresentada pelos semáforos, sendo que os inaptos ficariam, consoante o § único, impedidos de dirigir veículo automotor de qualquer categoria.
Os motoristas, segundo os artigos 50, II e 51, IV, ‘d’ da mesma resolução, teriam que possuir a visão cromática do verde, vermelho, amarelo, azul e do âmbar, examinados a partir das tábuas pseudo-isocromáticas.
Na comparação destes dois dispositivos, percebe-se a nítida contradição que havia entre os métodos de avaliação clínica, pois, naquele dispositivo, os testes eram realizados com lanternas luminosas, enquanto, neste, previa-se a utilização das tábuas pseudo-isocromáticas.
Uma outra dissensão era a definição do âmbar, haja vista que esta matiz não possui uma definição precisa que, segundo uma analogia com o dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira [5], tanto pode ser o pardo ou preto, quanto o amarelo-pálido ou simples amarelo, remetendo o oftalmologista a uma avaliação totalmente subjetiva.
O Contran, buscando a pacificação destas divergências e a compatibilização com o novel código de trânsito brasileiro, editou a atual resolução nº 51, de 21 de maio de 1998, mitigando o diagnóstico pela eliminação da exigência da identificação do azul e do âmbar e, concomitantemente, dificultando os testes de visão pelo condicionamento ao Livro de Ishihara.
Assim, na norma vigente, consoante o item 3.8.1 do anexo desta resolução, restou apenas a necessidade de identificação do vermelho, do amarelo e do verde como aptidão oftalmo-cromática, o que evidencia que a finalidade desta norma foi dirigida exclusivamente à visualização dos semáforos.
O primeiro desconcerto normativo reside na ausência de distinção entre as espécies discromatópsicas. Na tritanopia, a visualização do azul não é obrigatória pela norma e não há confusão do amarelo com o verde e o vermelho. Ademais, a utilização do amarelo no trânsito possui o intuito de "advertência" sendo facultativa a sua utilização, uma vez que, na padronização dos sinais de trânsito, constante do item 4.1.3. ‘a’ do anexo II do código de trânsito brasileiro, existem outras opções de semáforos que desprezam esta coloração.
Ademais, basta observar que o amarelo, em regra, aparece apenas na progressão do verde para o vermelho, o que, inversamente, não ocorre na liberação da via pelo sinaleiro.
Quanto aos demais discromatas, há que se salientar que os sinaleiros compõem uma seqüência padronizada de cores pelo item 4.1.3. ‘a’ do anexo II do código de trânsito brasileiro, ordenando-se o verde, o amarelo e o vermelho, de baixo para cima no sentido vertical ou da direita para a esquerda no sentido horizontal, não sendo obrigatória a presença do amarelo. Em determinadas localidades existe a duplicidade da lanterna rubra.
A principal justificativa dos órgãos de trânsito para as restrições ótica-cromáticas é a existência de municípios que adotam sistemas díspares de sinalização semafórica, como, por exemplo, os sinaleiros que, em formato diferenciado, contém a progressão do tempo necessário para a abertura ou fechamento, semelhante aos utilizados nos circuitos de competição automobilística.
Neste caso, o administrador público estará violando o Princípio da Legalidade pelo desrespeito ao código de trânsito brasileiro que, no artigo 80, estabelece que sempre que necessário, será colocada ao longo da via, sinalização prevista neste Código e em legislação complementar, destinada a condutores e pedestres, vedada a utilização de qualquer outra.
Ademais, a utilização de modelos não homologados pela legislação poderá provocar acidentes a todos os motoristas, uma vez que, ao longe, e dependendo das condições atmosféricas, o semáforo poderá ser visualmente confundido com anúncios publicitários, placas de informações ou quaisquer apetrechos ao longo dos equipamentos públicos viários.
3. A ADAPTAÇÃO DA SINALIZAÇÃO COMO UM DEVER DO ESTADO
A discromatopsia, conforme abordamos alhures, não se constitui numa doença, mas numa deficiência da retina, sendo que os portadores, embora em pequeno grau, não deixam de ser considerados deficientes, uma vez que sofrem restrições no direito de dirigir e no exercício de determinadas profissões.
A Constituição da República, dentre as repetidas vezes que consolida o dever do Estado em promover os meios necessários à adaptação dos deficientes, disciplina nos artigos 227, § 2º e 24 [5] que a lei disporá sobre a adaptação de logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existente a fim de garantir o acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência (destacado).
O legislador, repise-se, já adaptou inconscientemente as vias públicas padronizando a posição vertical e a horizontal da sinalização semafórica no código nacional de trânsito.
Entretanto, esta padronização é insuficiente para atestar o cumprimento do dever do Estado na promoção dos portadores desta deficiência, uma vez que a lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que regulamenta os dispositivos constitucionais retrocitados, no artigo 17 reza que o Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação [6] e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação, para garantir-lhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer (destacado).
Ademais, o artigo 3º desta lei ainda reza que o planejamento e a urbanização das vias públicas, dos parques e dos demais espaços de uso público deverão ser concebidos e executados de forma a torná-los acessíveis para as pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
Este aperfeiçoamento da sinalização poderá ser executado através da sobreposição das figuras geométricas constantes do item 1.1.4 e 1.2.3 do anexo II do código de trânsito brasileiro [7] sobrepostas sobre os sinais luminosos. Assim, o vermelho seria sobrestado pelo sinal de "parada obrigatória", modelo R-1, que já possui, segundo o 1.1.1 do mesmo anexo, o encarnado ao fundo; sobre o verde seria utilizado os sinais de regulamentação compatíveis constantes do item 1.1.4 como, de acordo com a via, o "siga em frente" (R-26), o "vire a esquerda" (R-25a), o "vire a direita" (R-25b), o "siga em frente ou à esquerda" (R-25c), o "siga em frente ou à direita" (R-25d) ou o "sentido circular obrigatório" (R-33) e, por fim, o amarelo (facultativo) se serviria do conjunto dos sinais de advertência do item 1.2.3 do anexo II.
CONCLUSÃO
A vedação à obtenção da carteira nacional de habilitação pela resolução do Contran nº 51, de 21 de maio de 1998, conforme discorremos, é inconstitucional, uma vez que impossibilita o exercício de um direito garantido pela Constituição da República e pelo código de trânsito brasileiro que contém a padronização dos semáforos.
É inconcebível que um órgão normativo do trânsito tenha editado uma norma restritiva de direito fundada apenas em presunções, tendo em vista que não há quaisquer estudos, estatísticas ou registros prévios que comprovem um potencial risco de acidentes de trânsito por parte dos discromatas.
O maior agravante, ainda, está no fato de que experientes motoristas profissionais, após anos de trabalho e sem qualquer envolvimento em infrações, delitos ou acidentes de trânsito, vêm sofrendo a com a rescisão de seus contratos de trabalho em virtude da cassação da habilitação devido a inaptidão clínica por discromatopsia que, congênita em 99% dos casos, jamais foi detectada nas inúmeras renovações deste documento.
Causa estranheza, também, o grande número de mulheres inaptas por discromatopsia, sendo que as pessoas do sexo feminino são apenas portadoras e não sofrem quaisquer influências na percepção das cores.
Os médicos peruanos Randy Flores Aparcana, Raúl Swayne Barrios, Ana Luisa Sánchez e Ronald Cadillo Chávez [2], em 1998, elaboraram uma proficiente tese acerca da discromatopsia a partir da bibliografia médica e de um estudo de campo através da realização de exames clínicos em 735 aspirantes à Marinha Peruana, de ambos os sexos, entre 17-19 anos, constataram 25 casos (3,4%) de daltônicos, todos do sexo masculino, resultados similares aos obtidos pelo cientista Ishihara.
Segundo estes estudos, respaldados pela Sociedade Peruana de Medicina Interna, la mayor afección del sexo masculino es explicado por el hecho de que el defecto es heredado, siendo trasmitido como herencia recesiva ligada al cromosoma X, por la que la mayoría de mujeres que son portadoras del cromosoma X ligadas al defecto tienen visión de colores normal, pero sutiles anormalidades han sido reportados por algunos test, las estadísticas sugieren que el 15-20% de mujeres son portadores del defecto (destacado).
Por derradeiro os portadores da discromatopsia possuem o direito absoluto de dirigir veículos, uma vez que a disposição das cores nos semáforos não importa qualquer dificuldade na interpretação do tráfego por estes condutores.
No plano legislativo, existe a necessidade urgente da revogação por inconstitucionalidade dos itens 3.3.4 e 3.8 do anexo da resolução do Contran nº 51, de 21 de maio de 1998.
Sugestivamente, a fim de garantir o interesse coletivo dos daltônicos contra um novo cerceamento ao direito de guiar veículos pelo Contran, faz-se mister, ainda, a modificação da sinalização luminosa pela alteração do item nº 4.1.3, ‘a’ do anexo II da lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, conforme detalhado anteriormente, modernizando, destarte, o direcionamento do tráfego brasileiro. Tendo em vista que os órgãos executivos do trânsito possuem sua própria e farta fonte de recurso, porquanto o artigo 320 do código de trânsito brasileiro o privilegia pelo estabelecendo que a receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito, um prazo plausível para a conformação deste sistema seria de cinco anos, sem detrimento, na vacatio legis, da obtenção da carteira nacional de habilitação ou da permissão para dirigir dos portadores de discromatopsia.
NOTAS
Almanaque Abril. São Paulo: Abril cultural, 1986.
Aparcana, Randy A. Flores; Barrios, Raúl Swayne, Sánchez, Ana Luisa; Chávez, Ronald G. Cadillo. Estudio de discromatopsia en postulantes a la Marina de Guerra del Perú. Disponível pela internet: www.spmi.net/boletin/soci122t03.htm.
O livro da saúde, enciclopédia médica familiar. Lisboa: Selecções do Reader’s Digest, 1980, 517.
Denominação dada à lei nº 5.108, de 21 de setembro de 1966, revogada pelo Código de Trânsito Brasileiro.
Substância sólida, parda ou preta, de cheiro almiscarado, proveniente do intestino do cachalote; âmbar-gris; resina fóssil, proveniente de uma espécie extinta de pinheiro do período terciário, sólida, amarelo-pálida ou acastanhada, transparente ou opaca, utilizada na fabricação de vários objetos; âmbar amarelo, súcino.
Artigo 2º da lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000 [...] d) barreiras nas comunicações: qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa; assim a sinalização é um meio de comunicação por transmite de forma gráfica a norma contida na legislação de trânsito.
A nova regulamentação ficaria:
ANEXO II
[...]
4.1.3 – TIPOS
a) PARA VEÍCULOS
composto de três ou quatro luzes dispostas em seqüência pré-estabelecida.
composto de duas luzes dispostas em seqüência pré-estabelecida.