5. O erro do Garantidor: erro de tipo ou erro de proibição?
Como já fora analisado, o erro é um vício da vontade que altera as razões que conduzem o agente à prática de uma determinada conduta. Deste modo, partindo de considerações respeitantes aos motivos que o levam à omissão do agente, quando o Direito lhe exige a atuação para evitar o resultado, analisaremos as possibilidades de erros sobre os quais pode recair a conduta do garantidor.
Partiremos do seguinte exemplo prático: João, tutor de Pedro, vê sua casa num princípio de incêndio. Todo o andar térreo é tomado pelas chamas, que, após alguns minutos, se alastram pelos demais pavimentos de sua residência. Após algum trabalho, os bombeiros saem com o corpo de Pedro das cinzas da casa. Verificando o ocorrido, um bombeiro questiona o tutor: o senhor não tentou salvar o menino? Imaginando situações diferentes, poderiam surgir duas respostas, dentre várias, por parte de João: a) Não sabia que o garoto estava em casa, pois o imaginava na escola; b) porque não sabia que era obrigado a fazê-lo.
Analisemos as duas respostas possíveis.
De acordo com a primeira resposta, a ausência de um elemento fático fez com que o agente se enganasse quanto a sua posição de garantidor. João possuía plena consciência de que detinha um dever de cuidado, proteção e vigilância em relação a Pedro. Detinha também plenas condições físicas de evitar o resultado, podendo retirar o garoto no início do incêndio. Mas por desconhecer a presença de seu tutelado no interior do imóvel incandescente, embora fosse previsível, não pôde exercitar tal obrigação a que estava incumbido, omitindo-se na prestação do socorro. Não possuía o tutor uma perfeita representação da realidade fática da situação, do que se conclui pela inexistência do elemento cognitivo do dolo: o conhecimento do fato que estava a praticar. Descaracteriza-se o dolo e com ele o tipo subjetivo doloso. Porém permanecem intactos o tipo subjetivo culposo e a culpabilidade, de forma que João poderá vir a ser reprovado e condenado pela modalidade culposa do homicídio, uma vez que foi negligente em não ter tomado o cuidado exigido em averiguar a presença do garoto na casa.
Na segunda hipótese, João deixa de prestar socorro ao seu tutelado porque acredita não estar obrigado a fazê-lo por acarretar-lhe risco pessoal. Desconhece seu dever de evitar o resultado. Erra sobre os limites do dever e não sobre a situação fática em si. Acredita não estar atuando de forma ilícita. Erra, portanto, acerca da ilicitude do fato imposto por uma norma mandamental, que o impunha o dever de proteção ao seu tutelado contra qualquer situação de perigo, mesmo que envolvesse risco a sua pessoa. Não tem consciência da ilicitude de sua conduta, embora possua pleno conhecimento do dano que está por causar ao seu tutelado.
O que se extrai da exposição feita é que, no primeiro caso, João atuou movido por um erro respeitante às circunstâncias de fato. Atuou em erro de tipo, que exclui o dolo, não obstante permita punição na forma culposa. Na segunda suposição, o tutor age movido pelo desconhecimento do dever imposto por norma preceptiva, desconhecendo a ilicitude do fato. Age, portanto, em erro de proibição, em sua espécie erro de mandamento, que possibilita a exclusão do delito, se for inevitável, ou a redução da pena a título doloso, quando evitável.
Do dito, observa-se a perfeita possibilidade de ocorrência de erro de tipo em situações que envolvem o garantidor, uma vez, que essa relação-dever de evitar o resultado é determinada por norma penal descrita de forma abstrata como um modelo de conduta exigida, tornando-a passível a enganos por parte do agente, seja ele garantidor ou não.
Já dizia Helmuth Mayer que aquilo que não pode ser razoavelmente exigido de um ser humano, não lhe pode ser imposto pelo Direito Positivo[13]. Dizer que só poderia haver erro de proibição nas condutas dos garantes, seria o mesmo que afirma que um ser humano não poderia cometer erros em relação a situações de fato. Excluir-se-ia a possibilidade de o agente formar falsas representações acerca da realidade dos fatos.
6. Conclusão
A teoria finalista da ação causou revolução na teoria do delito, principalmente ao incluir o dolo na ação, deixando a potencial consciência da ilicitude do fato na culpabilidade.
Dessa separação decorre a distinção quanto aos efeitos das modalidades do erro jurídico-penal: o erro de tipo exclui o dolo da ação, enquanto o erro de proibição exclui a culpabilidade e o delito, quando inevitável.
Sendo o erro de tipo aquele que incide sobre os pressupostos fáticos da situação, e erro de proibição o que se relaciona com a ausência de conhecimento do desvalor da conduta, conclui-se pela plena possibilidade de incidência de qualquer destas espécies de erro na conduta do garante, já que este pode deixar de praticar a conduta exigida seja por falsa representação da realidade ou de qualquer elemento do tipo penal, seja pela inconsciência em relação à ilicitude de sua conduta.
Equivoca-se, portanto, a parcela da doutrina que afirma a impossibilidade de ocorrência de erro de tipo no atuar daquele que tem o dever jurídico de evitar o resultado. Com isso, estar-se-ia por excluir do âmbito intelectivo do garantidor a possibilidade dele se equivocar quanto às situações de fato ou incidentes sobre elementos do tipo. Colocar-se-ia o garante acima das condições impostas a um homem-médio.
Doutrina acertada é a maleável, a qual, analisando a essência do erro incidente no caso concreto, aceita a possibilidade de ocorrência de qualquer de suas espécies.
7. Bibliografia
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8.Notas
1.TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 93.
2.TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 95.
3.BRODT, Luís Augusto Sanzo. Da Consciência da Ilicitude no Direito Penal Brasileiro. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 51/52.
4.BRODT, Luís Augusto Sanzo. Op. cit. p. 52.
5.MESTIERI, João. Manual de Direito Penal – parte geral. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 137.
6.BITENCOURT, Cezar Roberto & MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 401.
7.BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, parte geral. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 186.
8.BRODT, Luís Augusto Sanzo. Op. cit. p. 53.
9.TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 269.
10.FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – a nova parte geral. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 212.
11.TOLODO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 116.
12.ZAFFARONI, Eugenio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 1999. p. 543.
13.TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 180.