É como ter o velho calo pisado, quando nós magistrados ouvimos falar repetidas vezes que o Poder Judiciário é lento; que "receber" demora muito mais que a própria decisão; que é uma "Vitória de Pirro: ganhar e não levar". Uma lamentação constante. Muita vez com certa razão, a exemplo quando o devedor é a Fazenda Pública, isto é a União, Estado ou Município. Esclarecendo, parto do fato que existe uma decisão judicial e contra ela não caiba mais recurso. A culpa pela demora em "receber" – transformar a sentença em dinheiro - de regra não é do magistrado. A legislação reclama procedimento próprio para formalizar o pagamento: o chamado precatório, que não raramente é também descumprido pelo devedor. O precatório é requisitado pelo juiz da execução por intermédio do Presidente do Tribunal a que estiver vinculado, devendo ser apresentado até 1º de julho de cada ano. O valor devido deve ser incluído no orçamento da entidade pública devedora, para posterior pagamento até o final do exercício (ano) que segue. Não havendo pagamento, vai-se então ao seqüestro da quantia. Até aqui: requisição do precatório ao seqüestro – atos posteriores à sentença - vão-se pelo menos três anos... Assim também, pode "pisar" no calo!
Muita coisa porém tem mudado. A Justiça do Trabalho do Maranhão vem dando um grande exemplo que já é seguido por vários outros Regionais. Desde o ano de 1998, portanto há mais de três anos, os juizes estão determinando que a conta, quando o "valor for pequeno", seja paga sem os percalços tradicionais do precatório. Vale dizer: quando o crédito em execução for inferior a R$ 6.367,73 (seis mil, trezentos e sessenta e sete reais e setenta e três centavos) – valor atual - o pagamento deve ser imediato, como é feito em relação aos demais devedores: sem precatório, portanto. Antes porém o ente público é citado para opor embargos à execução, querendo. É uma nova oportunidade de defesa. Vencido este obstáculo, e só então, não cumprida a ordem de fazer o pagamento, determina-se o seqüestro da quantia junto à sua Conta Única.
Essa tomada de posição, em nosso TRT, nasceu com posicionamento do Juiz do Trabalho Antônio de Pádua Muniz, logo a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 20, de 16.12.98. Passou Ele a dar eficácia ao fixado no art. 100, § 3º, da CF/88: "O disposto no caput deste artigo, relativamente à expedição de precatórios, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor..." (negritamos), aplicando, por analogia, o disposto no art. 128, da Lei 8.213/91, que firma: "As demandas judiciais que tiverem por objeto o reajuste ou a concessão de benefícios regulados nesta Lei cujos valores de execução não forem superiores a R$ 5.180,25 (cinco mil, cento e oitenta reais e vinte e cinco centavos) por autor poderão, por opção de cada um dos exeqüentes, ser quitadas no prazo de até sessenta dias após a intimação do trânsito em julgado da decisão, sem necessidade da expedição de precatório." (Redação dada pela Lei nº 10.099, de 19.12.2000).
Aos poucos a posição foi ganhando corpo entre os demais juizes do 1º grau, aperfeiçoando-se, culminando com a primeira decisão favorável em 2ª. instância, acórdão da lavra do Juiz José Evando de Sousa (Ac. 1622/00 – Proc. AP n.º 0356/00 – DJ 23/08/00), de onde transcrevo a seguinte passagem: "(...) ao Juiz, quando no exercício da prestação jurisdicional, é defeso alegar lacuna ou obscuridade da lei, podendo recorrer à analogia, aos costumes e princípios gerais do direito (art. 4º da LICC c/c art. 126 do CPC), e, na seara trabalhista, também à eqüidade e à jurisprudência (art. 8º da CLT). Nos presentes autos, o juiz da execução, no intuito de dar efetividade à citada norma constitucional, utilizou-se corretamente de um dos princípios que socorrem o direito lacunoso ou em branco: a analogia." (grifamos).
As teses contrárias, ainda existentes e defendidas, reclamam a ausência de lei específica autorizando a dispensa de precatório. Dizem que a Lei nº 10.099, de 19.12.00, que regulamentou o disposto no § 3º do art. 100 da Constituição Federal, definindo obrigações de pequeno valor para a Previdência Social, deve ser utilizada apenas em relação ao crédito previdenciário. Ora, este crédito não é mais importante que o trabalhista. Ambos têm a mesma natureza jurídica: são créditos alimentares (CF/88, art. 100, §1º). São portanto indispensáveis à própria sobrevivência do credor. Este argumento fala por si.
Em outra quadra afirmam que a determinação de pagamento imediato sem prévia previsão orçamentária, além de inconstitucional, fere a Lei Complementar 101, de 04.05.2000 (estabelece normas de finanças públicas), causando ainda instabilidade ou mesmo paralisação da atividade administrativa, lesão ao erário, inviabilização de pagamentos, etc. Também não procedem os argumentos, visto que é de ordem constitucional a determinação de dispensa do precatório quando o crédito de natureza alimentícia (CF/88, art. 100, § 1º) for de pequeno valor (CF/88, art. 100, § 3º). A doutrina é pacífica em afastar a existência de contradição entre normas da Carta Federal. Também não pode haver inversão na ordem de prevalência da Constituição Federal à Lei Complementar. Esta deve guardar perfeita adequação e respeito àquela. Portanto, se houver algum descompasso, alguma "ilegalidade no ato", está na própria LC 101/2000, que inclusive é posterior à EC nº 20/98. Deve-se indiscutivelmente dar cumprimento à Constituição. Por fim, o próprio fato de estarmos adotando há mais de três anos o afastamento do precatório quando o crédito trabalhista for de "pequeno valor", sem ter havido "quebra" na ordem administrativa ou financeira de qualquer ente público, sem ter havido falência ou paralisação das atividades administrativas, evidentemente está também ratificado na prática a pertinência do instituto.
É também vencida de plano a questão sobre a ausência de lei dizendo quanto cada ente público pode dispor para cumprimento das decisões judiciais que determinam pagamento de débito sem o precatório. A um porque a própria constituição aduz, no seu artigo 100, § 4º: "A lei poderá fixar valores distintos para o fim previsto no § 3º deste artigo, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público." (negritamos). O verbo está exprimindo uma atitude para o futuro, além de faculdade, mera possibilidade, não uma obrigação. A dois porque o bom senso tem prevalecido, e as situações que apresentam risco para as administrações públicas têm sido superadas através de limitações nos valores seqüestrados, acordadas entre as partes e os operadores do direito.
Entendimentos contrários são respeitados e até necessários como em toda boa discussão jurídica, afinal o Direito é uma Ciência, necessita do exercício da dialética, assim como nós do ar que respiramos. Estamos dando nossa contribuição e exemplo, esperando que a justiça se realize plenamente.
Determinar que a Fazenda Pública cumpra decisão judicial de pagar o seu débito, quando for "pequeno o valor", sem o precatório, é dar efetividade à norma constitucional que reconhece a natureza alimentar do crédito trabalhista e por conseguinte a necessidade da sua pronta satisfação. Permitam-me dizer: é como calçar o sapato do tamanho certo, confortável, que não machuque os calos, que invariavelmente vão se curando...