Artigo Destaque dos editores

Transação extintiva do crédito tributário

Exibindo página 2 de 4
07/05/2014 às 13:34
Leia nesta página:

3) A transação em matéria tributária e o princípio da legalidade

Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, brilhantemente lapidou que “a liberdade é o direito de fazer aquilo que as leis permitem” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.952). Com esse primado em mãos, e após a averiguação da compatibilidade entre a transação do direito privado e a indisponibilidade do direito público, estabelecemos o objetivo desse item, qual seja a investigação sobre como o princípio da legalidade afeta e restringe a adoção da prática transacional nos ditames tributários.

O princípio da legalidade é fundamental à manutenção do Estado de Direito (MELLO, 2008; MEIRELLES, 2009), tendo surgido a partir das atividades relacionadas à tributação. No passado, constituiu defesa dos súditos contra a voracidade arrecadatória dos impérios. Dessa forma, a exigência de se cobrar impostos apenas com supedâneo em lei atravessou os tempos, e, nos dias atuais, insurge como regra a limitar as ações governamentais e a proteger os aspectos mais intrínsecos à cidadania (GRECO, 2011). “A par do princípio da igualdade, o da legalidade assume papel de absoluto destaque em sociedades organizadas, influindo em todos os ramos do direito positivo” (CAIS, 1996, p.32).

O inciso I, do artigo 150, da Constituição Federal, estabelece a “legalidade estrita”, onde se determina que “é vedado à União, aos Estado, ao Distrito Federal e aos Municípios, exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça”. É este verdadeiro “princípio de reserva absoluta da lei”, impondo-se que a norma oriunda de qualquer uma das pessoas políticas dotadas do poder de tributar deve trazer os elementos para a identificação do fato imponível (KFOURI JÚNIOR, 2010), “o que veda o emprego da analogia, pelo Poder Judiciário e da discricionariedade, pela Administração Pública, na solução de conflitos” (CAIS, 1996, p.35). Com isso, se exige que os atos e procedimentos tributários, adotados e seguidos pelo Fisco e pelo Judiciário, devem ser previstos, regulados e consentidos pela lei. “Em razão desse princípio da indisponibilidade o Supremo Tribunal Federal já assentou que o poder de transigir ou de renunciar não se configura se a lei não o prevê (RDA, 128:178) [...]” (GASPARINI, 2007, p.18).

A Fazenda Pública deve velar pela arrecadação do Estado. Aplica, diante de um caso concreto, o que resta legalmente prescrito. Ruy Barbosa Nogueira (1990, p.311) nos ensina que “assim como vige o princípio nullum tributum sine lege scripta para proteção do crédito tributário, na extinção continua vigendo o correspondente princípio de que não há extinção sem previsão legal”. Nesse paradigma, para ganhar o mundo real, a transação tributária deverá ter base legal específica, com plena delimitação da materialidade e do procedimento a ser empregado, afora a discriminação da abrangência de suas implicações, apresentando uma ritualização compatível com os processos tributários vigentes, quer administrativo ou judicial, apenas se admitindo sua aplicação nos casos em que esteja realmente uma discórdia instalada, afastando-se a versão preventiva.

No Recurso Especial 85.984-5-RJ, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda no longínquo ano de 1977, o Relator do processo, Ministro Cordeiro Guerra, assim entendeu:

Acresce a isso, que o perdão da dívida é de setembro de 1974, f.114, e a ação fiscal de 1972, e, assim, para que pudesse por termo ao litígio seria necessário celebrar transação de litígio e, consequentemente, em extinção do crédito tributário, como dispõe o art. 171 do CTN.

Não tendo havido transação, a remissão da dívida, simplesmente administrativa, ainda que válida, não importou em transação capaz de pôr fim ao litígio.

Nada impede, porém, que face ao acórdão, a autoridade administrativa competente autorize a transação que ponha fim à execução – art. 171 do CTN, e art. 1025 do Código Civil. (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.224, grifos nossos).

De fato, não se modifica o instituto da transação na natureza, na sua definição, mas sim nas exigências extraordinárias feitas para que sua aplicação, na arena tributária, logre êxito. Afinal, essa é uma solicitação do próprio texto do artigo 171, que, literalmente, para permiti-la, ordena: “a lei pode facultar” (caput) e “a lei indicará a autoridade competente” (parágrafo único) (MACHADO, 2010).

Os artigos 141 e 142 do Código Tributário Nacional sublinham a exigência de observância aos ditames da lei:

Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias.

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

 Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (grifos nossos).

Em suma, como o tributo acha-se preso à legalidade estrita, diante da indisponibilidade dos bens públicos, não se vislumbrando margem discricionária que permissione ao Fisco a discussão de valores, inadmissível será, portanto, falar-se em transação, uma vez que ao Estado não é facultado escolher forma de tutela diferente da determinada em lei.

É o que parte da doutrina alega, desaprovando a prática transacional, deixando-a a deriva no grande mar tributário, e “condenando o instituto a um triste exílio” (GOLDSCHMIDT, 1999, p.62). “Com efeito, o instituto há de corresponder a alguma finalidade pública, em direção à realização de algum valor consagrado pelas normas do sistema, sob pena de ser considerado inócuo, sequer havendo de se cogitar do mais acerca dele” (GALINARI, 2006).

Não obstante, o princípio da legalidade, limitador da transação no âmbito tributário, falece em outra vertente, e por uma simples constatação: a edição de uma lei, que venha a permitir essa prática nas matérias tributárias, resolveria tudo, pois a indisponibilidade dos bens da Fazenda Pública não necessariamente importa em total exclusão da viabilidade jurídica de negociar sobre eles, desde que haja autorização legal para a Administração assim proceder (BALEEIRO, 2005; MACHADO, 2010; DIFINI, 2008).

Na conceituação de Aurélio Pitanga Seixas Filho (1996, p.18), “a vinculação legal da função fiscal não impede, entretanto, que o legislador deixe à autoridade fiscal, em algumas fases do procedimento administrativo fiscal, a liberdade de escolher, entre algumas alternativas legítimas, qual a ação que deve ser adotada no momento oportuno e conveniente”. Até porque, “o princípio da legalidade no Direito Processual Civil adquire tamanha relevância que tem motivado a alteração de pensamentos sobre a natureza jurídica do direito processual, que não vem sendo entendido como instrumento técnico, porém, fundamentalmente, ético [...]” (CAIS, 1996, p.37).

Ora, a transação não é instituto que não tenha sido enxertado no Código décadas depois de sua elaboração; é sim disposição originária do CTN, que veio à luz juntamente com todos os outros dispositivos que nele se inserem, e com um propósito específico. Se o legislador originário o admitiu é porque pretendeu excepcionar o princípio da indisponibilidade. Parece ser um pouco forte pretender simplesmente ignorá-lo, como um filho espúrio, com base em dispositivos que se positivaram juntamente com ele, e que ostentam a mesma hierarquia (GOLDSCHMIDT, 1999, p.57).

Sobrepujado mais esse obstáculo, cogente se faz perquirir sobre os motivos determinantes da inserção da transação no projeto inicial do Código Tributário Nacional, além do modo como devem ser interpretados os dispositivos tributários abrangidos, de maneira que a configuração ideal seja alcançada.


4) As razões da presença da transação no Código Tributário Nacional

Na aplicação da lei à realidade, o operador do direito pode, diante da dificuldade interpretativa, buscar os fins sociais e os valores que lastrearam a edificação da norma em questão. O ato de interpretar jamais deve abrir mão do estudo do momento histórico que ocasionou a mudança legislativa. É de Miguel de Cervantes a belíssima frase a pontuar que “a história é a mãe da verdade, êmula do tempo, depositária das ações, testemunha do passado, exemplo e anúncio do presente, advertência para o futuro” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.630). Vejamos o que há para se falar.

Ives Gandra da Silva Martins, em parecer de sua autoria, relatou o seguinte:

Quando os pais do direito tributário – juristas de escol, todos eles – elaboraram, a partir do anteprojeto de Rubens Gomes de Sousa e das discussões no Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – hoje ABDF – a minuta do projeto levado ao Congresso Nacional, relatado por Aliomar Baleeiro, entenderam que, para dar agilidade à cobrança dos créditos tributários nas hipóteses de inadimplemento do devedor por falta de liquidez ou outro motivo relevante, a transação seria caminho. Tal instituto facilitaria, de um lado, o rápido recebimento dos pretendidos créditos e, de outro lado, a não inviabilização da atividade do pagador de tributos, que não teria suas atividades ou profissão atingidas por uma imediata despatrimonialização ou interferência no seu dia-a-dia funcional (MARTINS, 2007, p.77-78).

Houve a preocupação governamental, em idos de 1960, em rever os métodos e os meios de cobrança do passivo fiscal federal, de maneira que as “reformas de base”, impulsionadas pelos militares, tiveram origem na alteração da estrutura arrecadatória do Estado. Prevalecia o entendimento de que o Fisco Federal não funcionava conforme as necessidades do país. “O próprio Ministro da Fazenda na época estimava que seria possível, apenas com a melhoria da administração fazendária, sem qualquer mudança nos tributos, arrecadar adicionalmente, no mínimo, valor equivalente a 2/3 da receita estimada para 1963” (VARSANO, 1996, p.7). Precisava-se inflar as receitas disponíveis para a União, e a maneira encontrada foi a edição de um Código Tributário que modernizasse a estrutura de todo o sistema, tornando-o expressão maior dessa vontade (OLIVEIRA, 2010).

Tendo ensejado a edição do Código Tributário Nacional, a supramencionada reforma encontrou no jurista Rubens Gomes de Souza seu maior expoente. A fundamentação que ele utilizou para implantar a transação no direito tributário brasileiro adveio na justificativa de que a prática já era autorizada, há mais de uma década, em sede de execução fiscal federal, consoante o artigo 23, da Lei nº 1.341/1951 (CHRISPIM, 2009). “Sobre esta lei, disse o professor [Rubens Gomes de Souza]: ‘é uma medida necessária quando se verifique que a Fazenda poderá perder parcialmente o processo, a fim de evitar a demora, pagamento de custas etc.’” (GOLDSCHMIDT, 1999, p.59).

Art. 23. Salvo quando autorizados pelo Procurador Geral, os órgãos do Ministério Público da União não podem transigir, comprometer-se, confessar, desistir ou fazer composições.

Parágrafo único. Sempre que julgarem conveniente, deverão representar confidencialmente ao Procurador Geral para que êste [sic], opinando a respeito, obtenha do poder competente a necessária autorização para transigir, confessar, desistir ou fazer composições (Lei nº 1.341/1951, grifos nossos).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Porém, não se tem como negar que houve, inicialmente, certa resistência à adoção da transação em matize tributário. As mudanças, facilitadas pelo período de exceção democrática, eram grandes, contudo não admitiam tamanha liberalidade com o direito público. As coisas tinham um limite. Posição que o próprio autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional manteve enfaticamente, até que, em 1967, quando veio a integrar a comissão responsável pela relatoria do “Modelo de Código Tributário para América Latina”, proposto pela OEA, Organização dos Estados Americanos, e pelo BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento, mudou o entendimento e assinalou esse instituto como uma das formas ideais de extinção do crédito tributário (CHRISPIM, 2009).

Anna Carla Duarte Chrispim (2009, p.78) pontua: “Neste sentido, vale reconhecer que o argumento de que a noção de transação em si é antitética ao conceito de tributo foi derrubado pelo Rubens Gomes”. Negociar para arrecadar mais e melhor pareceu, naquele momento histórico, ser uma proposta interessante. Daí que a inserção da possibilidade da prática transacional não se deu por acaso, mas visou, sim, o desenvolvimento posterior de um meio alternativo ao judicial, predisposto ao Estado, na execução dos créditos fiscais.

Portanto, a presença do inciso III, do artigo 156, e do caput artigo 171, na Lei n. 5.072/1966, a instituir o Código Tributário pátrio, atendeu a esses imperativos de fomento à arrecadação da Fazenda Nacional, na medida em que se fez crer que:

[...] o instituto da transação traz inequívocos benefícios à administração pública, sobre não inviabilizar o pagador de tributos, sendo o principal deles a imediatez na recuperação de recursos, o que, de outra forma, seria de difícil obtenção, em razão do exercício do direito de defesa pelo contribuinte, na esfera administrativa e judicial (MARTINS, 2007, p.78).

Com a moldura estabelecida, sob os auspícios de expressões como “a lei pode facultar”, o legislador, propositalmente, inseriu a transação no rol dos métodos extintivos do crédito tributário. O artigo 171 fez a ponte entre a vontade da lei e a realidade, ao deixar para que uma lei específica, a versar sobre o tema, e exauriente quanto a tudo que lhe dissesse respeito, viesse a permitir a plena aplicação das “concessões mútuas” ao cotidiano da Administração Fazendária. Segundo esse raciocínio, o que vetaria a transação na área fiscal seria, exclusivamente, a ausência de legislação autorizativa competente a discipliná-la. E, sem que tenhamos percebido, avançamos mais ainda.


5) Regulamentação da prática transacional em Direito Tributário: lei complementar geral e lei ordinária específica

Permitindo-se abrir mais uma janela argumentativa, paira uma dúvida sempre que se menciona qualquer proposta de transação tributária, dado o reconhecimento da precisão de uma norma a autorizar o procedimento extintivo do crédito fiscal, indagando-se: a competência seria de lei complementar ou ordinária?

Cassone (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008) é quem nos socorre, interpretando o problema a partir do que sucedeu com o Código Tributário Nacional, que editado na década de 1960, como lei ordinária, fora recepcionado pela Constituição de 1988, como se lei complementar o fosse, ocorrência que, no entendimento desse autor, permitiria a convivência de leis ordinárias, de cada uma das pessoas de direito público interno, com um regramento maior e genérico, a abranger todo o território nacional. Essas legislações infraconstitucionais, e independentes entre si, não poderiam ultrapassar os ditames de uma lei complementar geral a operar em nível federal. Com isso, a transação, prevista no Código Tributário Nacional, há 47 anos, estaria devidamente regulamentada e apta a ser aplicada e gerar efeitos. E essa lei complementar não destinaria competências materiais, verificado que essa é uma atribuição exclusivamente constitucional, motivo pelo qual não seria o Código Tributário Nacional o maior empecilho à transação tributária, mas sim a Carta Magna.

O artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal, é expresso ao determinar que “cabe à lei complementar [...] estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária sobre [...] obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência [...]”. O que leva ao raciocínio de que seria preciso um dispositivo que trouxesse as diretrizes gerais, os princípios basilares, aptos a conferir máxima eficácia, algo que venha a adequar e normatizar a transação ao sistema tributário constitucional vigente, permissionando aos entes federados legislar e manejar o instrumento jurídico inovador predisposto, dentro de suas respectivas atribuições, com objetivos previamente traçados, a atenuar a discricionariedade, em face de situações peculiares de cada caso em concreto, o que evitaria questionamentos judiciais futuros sobre a transação realizada. “Assim, entre as interpretações possíveis, parece-me ser essa a que melhor se coaduna com a natureza jurídico-tributária que a Carta da República outorgou à norma geral tributária” (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.225).

Na justificativa de sua explicação, Vittorio Cassone transcreve as ADIns nº 1.917 e nº 2.405, discutidas pelo STF, que passamos a expor:

EMENTA: CRÉDITO TRIBUTÁRIO – EXTINÇÃO. As formas de extinção do crédito tributário estão previstas no Código Tributário Nacional, recepcionado pela Carta de 1988 como Lei Complementar. Surge a relevância de pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade considerada lei local prevendo nova forma de extinção do crédito tributário na modalidade civilista da dação em pagamento. Suspensão de eficácia da Lei Orninária do Distrito Federal de nº 1.624/97” [ADI-MC nº 1.917-DF, STF, Pleno, Marco Aurélio, unânime, 18.12.1998, DJU, p.15, 19 set. 2003]

EMENTA: Ação direta de incosntitucionalidade: medida cautelar: L. estadual (RS) 11.475, de 28 de abril de 2000, que introduz alterações em leis estaduais (6.537/73 e 9.298/91) que regulam o procedimento fiscal administrativo do Estado e a cobrança judicial de créditos inscritos em dívida ativa da fazenda pública estadual, bem como prevê a dação de pagamento como modalidade de extinção de crédito tributário. I - Extinção de crédito tributário, criação de nova modalidade (dação em pagamento) por lei estadual: possibilidade do Estado-membro estabelecer regras específicas de quitação de seus próprios créditos tributários. Alteração do entendimento firmado na ADInMC 1917-DF, 18.12.98, Marco Aurélio, DJ 19.09.2003: consequente ausência de plausibilidade da alegação de ofensa ao art. 146, III, b, da Constituição Federal, que reserva à lei complementar o estabelecimento de normas gerais reguladoras dos modos de extinção e suspensão da exigibilidade de crédito tributário. II – Extinção do crédito tributário: moratória e transação: implausibilidade da alegação de ofensa dos artigos 150, § 6º e 155, § 2º, XII, g, da CF, por não se tratar de favores fiscais. [...]” [ADI-MC nº 2.405-1-RS, STF, Pleno, relator Min. Carlos Britto, redator p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, maioria, DJU, p.54, 17 fev. 2006] (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.227, grifos nossos).

Para correta compreensão do que tratamos acima, Heleno Taveira Tôrres (2002, p.16), em brilhante artigo, recorda que a função de um código tributário é a “sistematização de todo o esquema dos procedimentos de tributação, a coordenação dos distintos tributos e a regulação dos direitos dos contribuintes”. As “normas gerais”, nesse campo, ao abranger determinados assuntos e conceitos, para além do que um código desse tipo contempla, visa atender à judicialização de certos temas e às escolhas políticas realizadas em dado momento evolutivo. O legislador, então, ao julgar como válida a construção de um novo estatuto, fica preso a esse arranjo legal, onde o “produtor” de regras inovadoras deve obediência não somente à Constituição Federal, mas também às normas gerais dessa área. Fala ele sobre a expansão concêntrica da legislação, a propiciar segurança para os partícipes da relação jurídica tributária, garantindo à Fazenda Pública “certeza, celeridade e eficiência na percepção dos créditos tributários, e aos particulares, os meios necessários para que estes possam fazer valer os seus direitos” (TÔRRES, 2002, p.17). Abreviando, uma “norma geral” exerce a atribuição de “baliza da natureza do código”, agindo rumo à compreensão da sua ação em relação às demais leis e atos tributários.

E não é tarefa impossível se alcançar os raciocínios de Cassone e de Tôrres. Para tanto, temos que visualizar que, se pode a Administração conceder o “mais”, em casos envolvendo remissão, que é o “perdão do valor devido pelo contribuinte, de forma total ou parcial, sendo uma das formas de extinção do crédito tributário, já constituído por meio de lançamento” (KFOURI JÚNIOR, 2010, p.236), porque seria vedado ao legislador, com a edição de uma lei, conceder o “menos”, o qual seria a autorização ao Fisco para negociar e abrir mão de relativa parcela do direito estatal ao crédito de que é titular, com a vantagem de receber, de imediato, o montante que restasse. O problema, nesse caso, não seria outro senão de sopesar se vale ou não a pena efetivar isso.

Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008), em respeitável posicionamento, externa atitude contrária à ideia. Adverte ele que se trata de hipótese absolutamente excepcional em direito público, pois não existe autonomia de vontade da parte de nenhum ente da federação para extinguir obrigação tributária sem supedâneo em lei que autorize especificamente a prática da transação. A discussão em torno da precisão ou não de lei complementar geral, para esse autor, é coisa menor, haja vista que é inadmissível que qualquer autoridade administrativa possa se utilizar de critérios gerais, abertos e, portanto, essencialmente discricionários, para acertar o término de um litígio executório fiscal, extinguindo, dispensando ou diminuindo crédito, conforme alto grau de liberdade que um texto legal por demais genérico, e, por que não dizer, irresponsável, pode vir a conferir, mesmo que em favor do Estado.

Ainda consoante ele, caso fosse possível que a Fazenda Pública tivesse poderes maciçamente gerais para transacionar, princípios administrativos importantes ao contencioso tributário, restariam irremediavelmente abalados e diminuídos. Subsistiriam notórios prejuízos à legalidade e à indisponibilidade dos bens públicos, sem falar na contrariedade a outros, como a impessoalidade, isonomia de tratamento, moralidade etc. (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008). Por conta disso, a opinião de Cassone sobre uma lei complementar federal, e a delegação legislativa para que estados, distrito federal e municípios, disciplinassem as condutas de suas procuradorias com essa finalidade, seria arriscado, uma vez que poderia conduzir o Fisco a uma atuação com excesso de discricionarismo e consequentes perdas econômicas.

Respeitamos cada uma das opiniões acima colacionadas, quais sejam as de Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, adverso ao conceito de uma lei geral, e de Vittorio Cassone, favorável, mas é a posição assumida por Hugo de Brito Machado (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008) que “reluz na noite escura”. É esta, a nosso ver, a ideia mais acertada, à medida que chama o feito à ordem, pois, com a inteligência que lhe é peculiar, esse autor consegue encerrar a discórdia. Nas suas palavras, o caráter plenamente vinculado do agir da Administração tributária somente seria contrariado se a eventual lei ordinária atribuísse ao agente público, ou às autoridades que representam a Fazenda em juízo, competência para fazer transações. “Mas, neste caso, o defeito será da lei ordinária, e não do art. 171 do Código Tributário Nacional” (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.114).

Compreende Machado (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008) que a uma lei complementar federal genérica não pode ser atribuída a responsabilidade pela transação tributária mal efetivada pelos demais entes federados. É em obediência a essa reflexão, que as leis ordinárias de estados, distrito federal e municípios não podem fugir aos preceitos da norma transacional geral, devendo estabelecer, em minúcia de detalhes, tudo o que possa regular a prática, no campo de seus poderes e competências, afastando o fantasma da livre autonomia funcional do Fisco e das Advocacias públicas, respeitando a legalidade no agir dos servidores estatais e a indisponibilidade do crédito tributário, de maneira que, se alguma discricionariedade restar, seja mais fácil o controle do ato que haverá de ser praticado, sempre no interesse da sociedade, diminuindo a litigiosidade, aumentando a arrecadação, pacificando as situações conflituosas, com economia de tempo e de recursos.

Carlos da Rocha Guimarães discorre:

Com efeito, para começar, mesmo as normas gerais, quando criam o direito, não o criam com total liberdade. Têm de criá-lo dentro das limitações impostas pela norma de grau superior. Assim, no desenvolvimento do que prescreve a norma superior, também as normas gerias de grau inferior são, dentro desses limites, meramente declaratórias. Quanto mais elevado é o grau de prevalência da norma, tanto mais poder criador tem ela; em contrapartida, tem menos objetividade, no sentido de ser mais abstrata e, portanto, menos concreta. À medida que descemos na gradação das normas, vai-se restringindo o campo de criatividade destas, e aumentando a sua particularização, de modo que podemos estabelecer, como corolário do princípio da pirâmide jurídica, que: o campo da criatividade da norma jurídica está na razão direta da sua maior generalidade e no universo da sua particularização. Assim, o próprio movimento de criatividade da norma jurídica, do geral para o particular, obedeceria ao movimento dialético hegeliano, pois conteria, em si, como contradição inerente à sua natureza, a sua própria destruição, diminuindo-lhe cada vez mais a capacidade criadora, a qual tenderia para o limite zero. A sentença, ponto final dos planos sucessivos da pirâmide jurídica teria, assim, a criatividade nula (GUIMARÃES, 1991, p.138).

É preciso compreender que a transação, para vingar em matéria tributária, há de ter um regime geral em nível federal, criador das diretrizes básicas acerca do que pode ou não ser realizado, efetivando o instituto, em primeiro lugar, para a União. Posteriormente é que, por via transversa, estados, municípios e distrito federal poderiam edificar suas próprias legislações ordinárias, presas às restrições e garantias da lei complementar maior e prevalecente sobre todas as demais, disciplinando apenas o que lhes dissesse respeito, constitucionalmente falando. Só depois disso tudo é que as respectivas autoridades fazendárias poderiam atuar. Nesse estratagema legal, a discricionariedade restaria, conforme se decrescesse nos patamares legislativos, devidamente tolhida, por leis cada vez mais específicas, reduzindo a possibilidade de desvios na finalidade maior da prática transacional, edificando o procedimento na segurança jurídica e no direito adquirido, e propiciando sensível ganho arrecadatório.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Thiago Nóbrega Tavares

Advogado, Especialista em Direito Tributário, Mestre em Ciências Jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Thiago Nóbrega. Transação extintiva do crédito tributário . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3962, 7 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28179. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos